Por: Rodrigo C. Cittadino.
Dr. Ilusão estava
recostado contra a barricada improvisada na frente de seu
laboratório. Pálido e fedendo a éter e a pestilência, estampava
no rosto as pestanas cerradas e um esgar de asco que semelhava
curiosamente um sorriso. O rapaz lhe sorriu de volta: com ele morto
não teria de lidar com barganhas inconvenientes. Mas achava – ou
uma parte ainda escrupulosa de si achava – que não devia ignorá-lo
ali, jogado, à mercê das aves carniceiras. Carregou-o para dentro
do laboratório. Pegou o que necessitava: seringas e frascos com a
Substância, bisturi, estilete, colher e uma lâmpada-acendedora, que
produzia fogo. Depois empilhou mais barris e caixas junto à porta do
local de trabalho do doutor. Assentiu satisfeito: o túmulo estava
fechado. E rumou para o cemitério, para escancarar outro túmulo.
Atravessou ruas
familiares, as mesmas que tinha atravessado meses antes, quando
teimava em depositar flores sobre a cova de Helena. As flores estavam
mortas, ressequidas como a flora daninha das redondezas, mas, afinal,
o que contava era a intenção – e a intenção devia bastar. Com o
tempo tinha parado de visitar sua amada, por causa da angústia, do
medo, do cansaço, da preguiça. E porque a mulher inerte e de pele
desbotada sob a terra nada mais era do que uma imitação fajuta de
Helena, que sempre tinha esbanjado vivacidade. Agora Oto caminhava
para uma última visita, a que traria sua arduamente planejada
reconciliação.
Cuspiu para expurgar
os maus agouros. As Criaturas na estrada lhe eram familiares também,
e ele, a elas. Nenhuma o incomodou, nenhuma se desgarrou dos
montículos em que disputavam a carne dos últimos tombados. Oto
raciocinou que, se aquela gente tinha desfalecido justo no extremo
oeste da cidade – recanto desolado, sem casas à vista, sem abrigo
contra os predadores senão um ou dois troncos retorcidos,
inatingíveis para mãos e pés debilitados –, então deviam estar
no curso de uma procissão desiludida para o cemitério quando o
sopro fatal tinha irrompido de suas traqueias ranhosas e por entre
seus lábios rachados. Havia algo de remotamente digno em morrer no
cemitério. Soava civilizado resgatar antigos valores e ritos que
tinham caído em desuso quando, um dia, as entranhas do solo tinham
superlotado em função do número exorbitante de cadáveres. Não
obstante, muitos enfermos ainda buscavam consolo em seus antepassados
e, às portas do sono eterno, se arriscavam para conquistar uma vaga
no leito deles; embora fosse péssimo o cheiro, parecia correto agir
assim. O rapaz, todavia, não estava indo render-se à peste.
Chegou à ponte de
alvenaria que demarcava a fronteira ocidental de Vilarrocha. Ponte
das Almas: um nome já bastante apropriado à época em que ela
encerrava a única via de acesso ao cemitério. Hoje era ainda mais
apropriado. Atrás de Oto, na estrada, o chão se remexia, infestado
das Criaturas que se refestelavam com os que tinham sucumbido na
travessia. Abaixo de si, no rio, o rapaz captava relances de corpos
inchados boiando na água poluída. A maioria tinha sido despachada
ali para que fosse tragada pela correnteza, quando a população
mortuária era limitada, mas já extensa demais para ser absorvida
por túmulos e covas. Alguns tinham se atirado voluntariamente ao
afogamento, no afã de escapar das Criaturas. E isso tudo antes de o
volume maciço de restos humanos amontoar-se num vau a jusante do rio
e obstruir-lhe o fluxo. Daí o nível da água tinha subido, as
margens tinham se desgastado, e a lama decorrente da erosão tinha
gestado um pântano sob a ponte.
Anoitecia. O rapaz
avistava as luzes fantasmagóricas com seu pisco inconstante pairando
entre as névoas do brejo. As crianças – quando ainda viviam
crianças e quando elas ainda dispunham de senso de aventura –
desafiavam umas às outras a tacar pedrinhas no que consideravam
aparições: as almas a que se referia a Ponte das Almas. Diziam que
o melhor lugar para se mirar era uma borda do cemitério que se
projetava sobre o rio pantanoso, bem atrás do mausoléu de uma
família rica; e por uns meses o cemitério tinha se enchido de risos
e gritaria pueril. Depois as Criaturas tinham se multiplicado e agora
havia silêncio quase sempre – salvo durante os rompantes de
loucura do coveiro Hector.
Oto enxergava a
figura dele a distância, no fim da ponte, como um guardião
cabriolante. Estava nu: a tez no amarelo da doença, encardida como
couro, repleta de cicatrizes e feridas recém-abertas pelas Criaturas
– ou por suas próprias unhas num surto de automutilação
qualquer. A barba longa e desgrenhada, pegajosa, grudava-se-lhe no
peito até os pelos pubianos. Comentavam que ele tinha pirado assim
que seu trabalho tinha se tornado mais relevante que o das parteiras.
Com tantos buracos a cavar e os caixões e mortalhas se avizinhando
um após outro, Hector tinha começado a delirar, tinha passado a
falar consigo mesmo, com as vozes dentro de sua cabeça, e aos
fantasmas que ele jurava ver no brejo se somavam agora os que
apareciam em meio às lápides. De nada tinha adiantado a intervenção
do Dr. Ilusão, com suas drogas (que só tinham se prestado a agravar
a insanidade do coveiro) e suas palavras (“Seus pretensos fantasmas
são gases brilhosos, paspalho! Fogos-fátuos, expelidos a partir da
decomposição de matéria orgânica, e toda gente sabe que nunca
houve em Vilarrocha tanta matéria orgânica em decomposição quanto
hoje”).
Oto torcia para que
Hector não o importunasse em seu intento. Não queria ter de
matá-lo, mas se fosse forçado a isso tampouco hesitaria. Acercou-se
do coveiro sorrateiramente, para não sobressaltá-lo. O infeliz se
entretinha balbuciando incoerências para o vento e mal reparou no
rapaz que se esgueirava como uma sombra a seu lado. Oto prendia a
respiração e conservava a mão boa dentro da bolsa em que levava os
instrumentos e o livro; e entre os dedos: os contornos do cabo do
estilete, se precisasse recorrer à violência para defender-se. E
eis que, de repente, do nada, Hector uivou para as trevas, como se
pressentisse a ameaça, como se pudesse ler a mente do outro, e o
rapaz agarrou a arma e já ia cravá-la no pescoço de seu agressor
maluco quando percebeu que ele não mais emitia só grunhidos
ininteligíveis. Havia palavras em seus berros dissonantes. Frases.
Profecias. Hector se metia a profetizar desgraças para ninguém em
especial, ainda ignorante sobre a presença do recém-chegado no
cemitério.
E o rapaz se afastou
sem empecilho, a palma que segurava o estilete escorregadia de suor.
Oto riu do susto. Riu das profecias. Elas falavam do futuro, mas
Vilarrocha não tinha mais futuro; falavam de desgraças, mas em
Vilarrocha elas já faziam parte da realidade presente. Retomou o
fôlego e sacou a lâmpada-acendedora. Conhecia de cor o percurso até
o túmulo de Helena, mas não devia expor-se ao risco de cometer
enganos: se violasse o descanso de um morto qualquer, tinha certeza
de que seria amaldiçoado – se é que já não o estava. Apenas
Helena devia ser perturbada, ninguém mais, e para certificar-se ele
verificaria o nome inscrito na lápide. Aproximou a luz da pedra:
Helena, de Oto e de
si mesma.
Doce e querida
companheira.
< 1813 – 1833 >
O coração do rapaz
apertou. “De Oto e de si mesma” tinha sido ideia dele, uma
maneira de distinguir sua
Helena, tão forte e independente, tão senhora de
si,
num momento em que os sobrenomes tinham se perdido. Ao redor o escuro
adensava: o céu era ébano imaculado, sem lua, sem estrelas. Oto se
muniu de uma das pás do coveiro e cavou. Escancarou o caixão. E a
contemplou. O rosto dela era cera, o cabelo definhava e poucos vermes
desfilavam pela carne. Bom, bom – ou, pelo menos, não tão mau. A
necromancia devolvia a essência da vida a um cadáver, mas não lhe
restaurava o viço. Era recomendado aplicá-la somente em corpos
ainda... frescos – e o de Helena estava.
Agora aos
preparativos. Os necromantes definiam a vida como a antítese da
não-vida. Viver se resumia em experimentar tudo que o mundo tinha a
oferecer: era sentir com os sentidos – e algo mais. No livro de
Oto, para simplificar a teoria chamavam esse “algo mais” de alma.
E o princípio-guia da necromancia era o sacrifício: o necromante
devia abdicar de todos seus sentidos em favor do renascido. Tudo
simbólico, decerto: não se esperava que o necromante acabasse cego
para o renascido recuperar a faculdade da visão. Mas se exigia que o
sacrifício fosse custoso, para se demonstrar a seriedade do
comprometimento. Na interpretação do rapaz, para que atingisse seu
objetivo, cada ato de amputação devia ser deliberada e imensamente
doloroso. E ao final restaria um último sacrifício: o do “algo
mais”.
Oto carregou nos
braços o cadáver de Helena até uma clareira no limiar do
cemitério. Pousou-a sentada contra o tronco de uma árvore: desse
jeito, Helena parecia estar só desacordada. A balbúrdia de Hector
entoando suas predições continuava, mas agora longínqua. O rapaz
ajuntou galhos secos no entorno de um segundo tronco e a seguir,
tomando-o como centro, desenhou com a pá uma estrela de cinco pontas
na terra fofa. Para terminar, ateou fogo à madeira com a
lâmpada-acendedora. As chamas manteriam as Criaturas longe dali.
Iniciou o primeiro sacrifício.
Paladar. Amarrou com
firmeza um pedaço de trapo no antebraço, dificultando a circulação
sanguínea. A veia azulada inflou na tez branca. Injetou a primeira
seringa da Substância e aguardou uns minutos até o efeito se
consumar. Não. Não era o suficiente: Oto tinha ficado grogue, mas
ainda se sabia consciente demais. Mais uma seringa. Esperou...
Pronto: agora achava que lograria aguentar. Pôs a língua boca
afora, mordeu com vontade e espremeu-lhe a borda entre o indicador e
polegar esquerdos. Estava bem presa. Empunhou o estilete na mão
direita e começou a cortar. Tarefa minuciosa, desajeitada,
repugnante, pois Oto salivava em excesso (a sede consistia numa das
consequências da droga que tinha usado) e, à laceração
preliminar, o sangue já tinha entrado a escorrer por entre seus
dedos. Necessitou serrar o músculo milímetro por milímetro. Não
sentiu nenhuma dor, apenas um leve formigamento. A anestesia tinha
funcionado. Depositou a língua no solo, numa das pontas da estrela,
enquanto o vermelho tingia-lhe os dentes e beiço.
Audição. Fixou o
estilete abaixo da orelha direita e repetiu o procedimento até
decepá-la, rompendo cartilagem e ossículos. Mas não era o
bastante. Os autores de seu tomo de necromancia afirmavam que a fonte
da audição se escondia dentro do crânio. A orelha meramente
facilitava a captação de sons. Oto vasculhou sua bolsa à procura
do bisturi e com a mão trêmula o ergueu à entrada do canal
auricular. Hesitou: aquele também seria um trabalho lento e
delicado. Se o executasse rápido como extrair o curativo de um
ferimento, podia acabar enterrando fundo demais a lâmina. Inspirou
alguma coragem. “Por Helena.” Foi-se a terceira seringa, e o
bisturi penetrou o ouvido até encontrar resistência, pressionar
mais e, enfim, rasgar e rasgar. O rapaz colocou a orelha numa segunda
ponta da estrela, a face impassível, com o lado direito gotejando
mais sangue.
Olfato. Dispensável.
Os necromantes desconheciam como operava esse sentido, logo Oto nada
tinha a sacrificar. Deu de ombros. “Tudo bem.” Uma das pontas da
estrela restaria vazia, mas a verdade era que privar Helena do olfato
equivaleria a prestar-lhe um favor: assim ela não teria de encarar a
podridão que empestava o ar. Ao tato, então. Limpou o estilete na
camisa e o conduziu à base do indicador esquerdo. Era preciso um
corte raso e contínuo em torno do dedo, mas... tudo girava. O
equilíbrio do rapaz já tinha se abalado quando ele tinha jogado a
bengala a um canto, uma vez que necessitava de ambas as mãos livres.
E agora a tonteira tinha piorado. Talvez tivesse algo a ver com o
ouvido estraçalhado, porque Oto sentia dormência naquela parte da
cabeça, que semelhava flutuar. Tratou de não vomitar e aplicou a
quarta seringa, agora para concentração. Sentou-se no chão: o
mundo ainda rodava, mas menos do que antes. Completou a incisão ao
longo do indicador. E se pôs a raspar a pele com o estilete. E a
puxar, admirando a carne viva aflorar com atenção clínica.
Concluído o esfolamento, ajeitou a pele em seu devido lugar na
estrela, à medida que o dedo latejava amigavelmente, como se
mordiscado por um filhote. (Não podia ter simplesmente decepado o
indicador, pois teria sido muito fácil, e o sacrifício não era
para ser fácil.)
Visão. Quinta
seringa. Oto pegou a colher e a estendeu ao calor da fogueira, após
gatinhar até ela. O livro sugeria que se adotasse metal quente no
procedimento seguinte, a fim de se encobrir as sensações mais
desagradáveis. O rapaz riu desdenhoso ao se lembrar da recomendação.
“Não pode ficar pior do que já está.” Aproximou a colher do
olho esquerdo, e a quentura bafejou-lhe nos cílios. As pestanas
insistiam em se fechar. “Frescura.” Abriu-as com o médio e o
polegar, como alguém prestes a pingar colírio, e cerrou o olho
direito, de sorte que a pupila dilatada do esquerdo só enxergasse
aço ardente. Enfiou-o com cuidado entre a pálpebra e o glóbulo, e
foi como se todo seu sangue entrasse em ebulição instantânea, mas
Oto não parou. Agora gemia de nervoso, não de dor, mas não parou.
Cutucou até partir os nervos que conectavam o olho ao crânio e,
quando eles arrebentaram, um estampido ecoou em sua mente delirante.
E depois: escuridão. O rapaz descerrou o olho direito e postou o
esquerdo na estrela.
Para o último
sacrifício, Oto rastejou até Helena e a tomou nos braços, se pondo
de pé aos cambaleios. Entorpecia, a vista turvava. Caminhou aos
tropeços para perto da árvore em chamas. Suava, e o suor se
misturava ao sangue. O último sacrifício se referia ao “algo
mais”. À alma. Era o maior e o mais importante deles: simbolizaria
o comprometimento derradeiro. Se desse certo, o necromante e a
renascida viveriam. “Por Helena.” Se não...
E por ela e com ela,
Oto mergulhou no fogo.
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