Por: Sandro Quintana.
A primeira coisa que Camila
percebeu ao despertar foi a escuridão, tão intensa que ela não conseguia ter
certeza se estava de olhos abertos ou fechados.
A segunda coisa que ela percebeu
foi a dor lacerante em seu peito, como se algo o tivesse atravessado. Ao passar
a mão, por cima da roupa, sentiu duas cicatrizes no peito. Uma grande, passando
entre seus seios, e outra menor, do lado esquerdo.
Tentou se mover, mas não havia
muito espaço. Sua respiração começou a ficar acelerada, o que só fez aumentar a
dor que sentia. Tentava se lembrar de como chegara ali, enquanto suas mãos
procuravam e forçavam, em busca de alguma brecha em sua minúscula prisão.
Imagens da noite anterior, a
festa aonde fora com o namorado, Lucas, começaram a brotar em sua mente. Ela
não queria ir, mas ele insistiu. Chegou a dizer que iria sozinho se ela não
fosse, e isso ela não permitiria. Não com aquelas amiguinhas dele ciscando ao
redor.
Não havia qualquer fresta, então
começou a bater nas paredes de madeira a sua volta. Madeira! Estava em um
caixão! Tentou gritar, mas a garganta estava seca e ardia.
Bebeu muito enquanto via as
periguetes se oferecendo para o seu namorado. E Lucas ainda dava trela para
elas. Dançando e rindo. A pior de todas era a Márcia, "marcinha" como
Lucas a chamava, o que fazia seu estômago revirar de raiva. A cara de boazinha
não a enganava. Aquela garota era uma sonsa. Via os olhares dela para Lucas.
Aquela vaca tinha posto alguma coisa em sua bebida?
Munida de uma nova força oriunda
da raiva, Camila conseguiu atravessar as barreiras de sua prisão. Sentiu sua
mão envolta por terra úmida. Fora enterrada viva! Seria possível que alguém
fosse tão doente a ponto de fazer isso com ela?
Começou a enxergar pontos de luz
e sentiu as forças escoarem. Não! Não podia deixá-la vencer assim. Tinha
vontade de gritar para ela: "Ele é meu!" E gritou, ou ao menos
tentou, mas a voz saiu rouca e fraca.
Na noite anterior também gritara
sua posse. Lembrava de não ter apenas gritado, mas de ter enfatizado de maneira
física. Ela merecera os bons tabefes que recebera. E, se as outras
"amiguinhas" não tivessem se juntado contra ela, teria batido ainda
mais.
Talvez elas também estivessem
juntas nesta trama doentia, pensava enquanto continuava se movendo através da
terra, em busca da liberdade, reenergizada pela fúria. Não via mais pontos
luminosos.
Lucas a arrancara da festa,
carregado-a no ombro, como algum homem das cavernas. Nunca sentira tamanha
vergonha na vida.
Mordeu os lábios, sentindo um
gosto ruim, como de algo estragado, enquanto prendia as lágrimas que tentavam
transbordar conforme era inundada pelas lembranças da viagem de volta para casa
naquela noite. Lucas gritando como se fosse uma menininha estúpida.
A imagem a assombrava conforme
rastejava pela terra fria. As palavras dele querendo terminar tudo ressoando em
seus ouvidos e a atingindo como uma faca fincada em seu peito.
Suas mãos tocaram algo sólido.
Ele a levou pra casa e disse que
estava tudo acabado.
Ela golpeia a última barreira que
a separa da liberdade.
Quando ele se virou para ir
embora, ela se jogou em cima dele.
Nem percebera a faca até que ele
a tomou de si.
Novamente via os pontos de luz, e
lutava com uma sensação de se perder de si mesma.
Uma dor lancinante em seu peito.
Um último golpe desesperado com o
que sobrava de suas energias.
E... estava livre!
Sim, livre para se vingar
daquelas que a tinham feito sofrer. As que tentaram roubá-lo. E dele por tê-la
feito sofrer tanto.
Camila olhou por um instante para
seu túmulo de mármore imaculado, flexionou as garras, e saiu do cemitério para
o breu da noite sem que seus pés tocassem o chão.
A escuridão não a incomodava
mais.
Contatos com o autor:
Contatos com o autor:
twitter: @andarilhor
Sandro, meus parabéns pelo conto! Ilustrou muito bem o quanto uma obsessão pode ser perigosa, para quem é portador, para o alvo e quem se colocar no caminho. Obviamente Camila não terá mais o descanso, continuará a existir como um ser errante entre a vida e o além. No final das contas, ela foi seu próprio carrasco.
ResponderExcluirObrigado, Ed!
ExcluirA ideia foi muito essa mesma. Além de apresentar uma pessoa que não assume a responsabilidade sobre seus atos e sobre as consequências destes. :)
Grande Abraço!
Muito bom, fui lendo esperando por uma coisa, e de repente, outra situação aparece. Gostei.
ResponderExcluirOi Tânia,
ExcluirFico feliz que tenha gostado. :)
A ideia era essa surpresa mesmo, mas colocando pequenos detalhes da segunda situação ao longo do desenvolvimento da trama.
Abração!
Legal, Sandro! Depois escreva outra sobre o que a Camila fez após deixar o túmulo, que tal?
ResponderExcluirSabe que é uma boa ideia? :)
Excluir