Qualquer um, independente de como as use, sabe que há algo
de maligno e corrosivo nas estradas (e no mundo). Principalmente, naquelas que
seguem em linha reta, cruzando várias vidas e lugares diferentes e, assim,
permitindo que homens e mulheres em seus veículos esqueçam-se daquele conceito
antiquado e pueril chamado de “limite de velocidade”.
Contudo, Rodney não era assim. Trabalhando como motorista há
dezesseis anos, aprendeu a respeitar o próximo (carro ou caminhão) e ter paciência
(com os idiotas). A vida é importante e, se levar duas horas para fazer um
trajeto que, normalmente, se varia em vinte e cinco minutos, qual o problema?
Ele era uma pessoa que tinha bons motivos para não se incomodar com uma coisa
pequena (e de gente pequena) como essa e o tempo (parado) poderia ser usado para
algo construtivo e válido...
...Como enigmas.
No carro pessoal de Rodney, você os encontraria às dezenas,
mas, no da empresa, ele carregava apenas um – um de 420 páginas. Enigmas,
fossem eles lógicos, matemáticos ou sensoriais, eram o que separava os homens
dos meninos (selvagens), na concepção dele. E era um hobby para qualquer hora e
lugar, com toda a certeza. Mas a maioria das pessoas que realmente aprecia esse
tipo de atividade precisa, às vezes, de algum tempo para solucionar os mais
complexos.
Rodney terminava um livro do “Nível: Gênio do Mal” de cem
páginas em oito minutos.
Era um prodígio. E nem se dava conta disso. Afinal, para
ele, era natural... Se alguém reparasse nisso, entretanto, era mais provável
que acompanhasse a história da vida e das habilidades de Rodney em um programa
televisivo de domingo, com toda a dramaticidade requerida – e os acontecimentos
das próximas horas poderiam nunca vir a acontecer. Provavelmente, ele ficaria
muito popular e muitos usariam sua origem pobre no sertão para desmitificar ou
exagerar fatos. Tanto faz.
Entretanto, em resumo, para ele, os enigmas eram não só um
desafio mental: eram narrativas, eram lendas e, principalmente, eram como os
deuses deviam se comunicar entre si. Na cabeça de Rodney, ele estava apenas
fazendo algo mundano, feito por pessoas para outras pessoas – e ignorava que,
certamente, as primeiras pessoas eram matemáticos ou físicos com muito tempo e
computadores para criar os “quebra-cabeças” que ele terminava em instantes.
Afinal, Rodney era um bom rapaz. E humilde em um nível tão
ilimitado quanto sua capacidade. Portanto, nunca se daria conta – ou usufrutuaria
– de sua dádiva.
Até hoje.
Como afirmado anteriormente, o trânsito em lugares tão
cheios de pessoas (más, hedonistas e mal intencionadas) é algo complicado e
estressante... Algo que pode estragar o dia do melhor dos homens em poucos
minutos...
Do melhor dos homens... Ou da melhor das crianças.
Quando aconteceu, Rodney estava terminando o último desafio
do almanaque. Com isso, foi obrigado a voltar seus olhos para a estrada. A
interestadual estava repleta de veículos de tamanhos e cores diferentes e
totalmente inertes – como as peças de um jogo esperando para, finalmente, serem
utilizadas. Os últimos cinquenta e seis minutos foram assim, com alguns lentos
e indiferentes avanços.
Até que alguém achou que era melhor (um lixo melhor) do que
todos os outros motoristas.
Para variar, o carro era de origem europeia e, para
ressaltar a riqueza (de imoralidades) do proprietário, só possuía dois assentos
sob o teto conversível. Vindo não se sabe de onde, começou a avançar pelo
acostamento como se fosse o próprio Vin Diesel. Como se não houvesse amanhã.
Como se sua necessidade fosse tão valiosa quanto seu carro.
Como se não houvesse, porventura, alguém parado no
acostamento.
Micael tinha aproveitado a saída da escola e o trânsito
lento para, com suas perninhas curtas, correr até o outro lado e comprar alguns
doces de banana. Sua mamãe adorava doces de banana, e ele tinha encontrado dois
reais em sua mochila, mais cedo. Era uma forma de agradecer pela roupa nova,
uma pequena camisa polo destacando seu herói favorito, o Homem-Aranha – e era
nova de verdade, não doada por alguém que já não tinha mais uso para ela, como
acontecia com mais frequência! Estava feliz demais com isso! E já estava
voltando, contente com seu ato, quando o impacto ocorreu.
Na cabeça de Rodney, algo girou mais rapidamente e se
encaixou com outro, como nas engrenagens de uma máquina.
Poucos metros a sua frente, um borrão prateado gerou um
borrão vermelho ao atingi-lo a 352m/s.
O borrão prateado não reduziu a velocidade ao avistar um
obstáculo pequeno e sorridente.
O borrão vermelho – pesando, originalmente, 48 quilogramas –
foi lançando ao ar com 2/3 da velocidade do borrão prateado.
Nas imediações, o mundo se reduziu ao som de um único motor
e, em 2min33s, ao último suspiro do borrão vermelho.
Em 2m34s, o borrão vermelho já não era um borrão. Parte do rosto
jamais seria reconhecido e alguns membros estavam em ângulos impossíveis – um dos
antebraços formava 143º em relação ao cotovelo –, mas, curiosamente, o par de
tênis pretos e muito usados estavam intactos, ainda no ponto original do impacto.
Micael conseguirá entregar os doces à sua mãe?
SOLUCIONE ESSE ENIGMA
Não há solução.
E isso despertou algo que, antes, era só um jeito de uma
mente poderosa demais para este mundo encontrar uma válvula de escape.
O supracitado borrão prateado parou logo após o impacto
original. E quem relatou a cena, posteriormente, sugeriu que o proprietário estava
mais preocupado em detectar avarias no próprio carro do que prestar socorro.
Fato comprovado logo em seguida quando, aparentemente, tentou deixar o local.
Tentou.
Afinal, é muito difícil acelerar novamente um carro quando
um simples olhar pode erguê-lo do chão.
E é difícil respirar quando uma pressão comparável à das
fossas das Marianas começa a se precipitar sobre você, após ser arrancado por
uma força invisível através do teto conversível do seu importado europeu.
(O seguro nunca vai cobrir isso, vai?)
Assim, quando seus órgãos internos e fluidos começam ser
expelidos por todos os orifícios existentes ou não no seu organismo (afetado por
uma pressão de oito toneladas por metro quadrado), é necessário uma
concentração incrível ou um desprendimento inumano para reparar no homem de
baixa estatura, mas de traços fortes, locomovendo-se acima de todos os veículos parados.
Se você reparar nisso, vai reparar que o homem está
chorando, mas que seus olhos são, agora, incandescentes.
Brilhando com fúria ilimitada.
Porém, é preciso estar olhando para o lugar certo – com em
um enigma visual – para reparar nisso enquanto é esmagado contra o asfalto com
a mesma intensidade que envolveria placas tectônicas.
Isso tudo, claro, é hipotético: a dor gerada por tamanha
força – enquanto a mesma força lhe mantém vivo, aliás – nublaria todos os
sentidos de forma irreversível. Dor tamanha que não pode ser quantificada ou
explicada – é a dor que os deuses deviam causar entre si.
Uma dor sem solução.
Sem limites.
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