Por: Hermínio Neto
O cheiro inebriante de sangue é um tormento nos momentos
finais do duelo. Enquanto os ferros se incendeiam a cada encontro violento e a
multidão de plebeus furiosos urra desejando ardentemente mais e mais mortes
desde a manhã em que o primeiro torso foi atravessado por um gládio, eu me
contorço de fome e desejo.
Aperto meus rosto contra a grade grossa e enferrujada do
corredor que leva até a arena, tentando prever o resultado da batalha pelos
espaços losangulares. Todos os cadáveres de gladiadores mortos durante o dia já
foram recolhidos, e o sangue deles, sugado pela areia, está perdido para mim,
mas agora, no ocaso arroxeado, sei que conseguirei capturar minha presa.
Rufina e Porcius, meus escravos imprestáveis, se agarram em
minha túnica com suas mãos sebentas e encrostadas de imundície e merda, por
medo dos tigres e ursos nas jaulas que margeiam o corredor. Mal sabem eles que
sou muito mais perigosa que qualquer dessas feras, que se encolhem com um
simples olhar de minha íris amarelada, e que os desmembraria aqui mesmo se não
precisasse momentaneamente de seus braços para me servir. Os dois malditos
asnos de carga se urinam de medo e o odor de seus dejetos turva meu olfato que
estava concentrado no sangue da arena.
Finalmente o gigantesco thræx derruba o dimachærus com um
golpe de sua falx que atravessa a barriga de seu oponente, derramando suas
tripas ensanguentadas para fora das gorduras e músculos que as prendiam ali.
O pavoroso gigante, com elmo que cobre todo o seu rosto,
dando-lhe um ar ainda mais pavoroso no cair da noite, circunda como um lobo a
sua vítima que agoniza em violentos estertores, pisa-lhe o pescoço, vira-se
para o prætor, financiador deste festival, e recebe sem demora o sinal para a
execução. Desce a pesada lâmina sobre a garganta daquele que um dia fora um
glorioso vencedor de muitos jogos, e separa a cabeça do corpo, mas os olhos do
moribundo continuam a se revirar e ele ainda espuma saliva sangrenta tentando
balbuciar algo que ninguém nunca ouvirá.
Quando o thræx suspende para o alto a cabeça do perdedor
como um troféu, percebo que a fonte turbilhonante de sangue que sai do pescoço
decepado está enfraquecendo, então cravo minhas mãos no teto de pedra da
masmorra que dá acesso à arena, agarro a grade com minhas garras negras e
brilhantes como obsidiana de meus pés, e suspendo aquela montanha de ferro
rangente.
Plano velozmente acima da areia vermelha até o corpo do
dimachærus, enquanto os escravos correm com as ânforas e odres na mesma
direção. Sugo vorazmente o último delicioso jato cor de vinho que seu coração
ainda ejacula pela enorme ferida, sem me importar com a multidão berrando como
um coro de mênades lunáticas em comemoração à vitória surpreendente. Os jovens
escravos, já contaminados pela minha nefasta influência, sugam avidamente os
cortes nos braços do defunto buscando o pouco sangue que ainda corre ali.
Nós só então arrastamos o cadáver para a masmorra cheia de
feras de onde viemos, deixando um rastro vermelho e parte do precioso hidromel
da morte embotando a lama da arena. Os tigres ficam ainda mais agitados com o
odor do cadáver. Despimos rapidamente o corpo para aproveitar o lucro que as
preciosas armaduras, armas e vestes de um antigo campeão podem me dar em breve.
Aproveito a ferida que extripou o gladiador e a escavo com
meu pé de coruja até arrancar seu fígado. Saboreio o sangue de gosto
especialmente delicioso que o irriga e guardo o resto, quase seco e gosmento
pela bile, em um odre. Meus servos, espantosamente fortes para dois pirralhos,
suspendem o gladiador parrudo e rechonchudo pelos pés, sobre umas ânforas de
alabastro e, sacudindo o corpo, recolhem o sangue que ainda escorre da degola e
das tripas. É deprimente que um guerreiro de grande fama acabe assim, com as
bolas e as tripas sacudidas por dois escravos nojentos e estúpidos, só para
matar minha fome, mas é o que me resta.
Ouço um gemido de pavor e me viro. A criança que nos olha,
trêmula e chorosa, poderia ser tomada por um nobre por suas ricas vestes de
linho, não fosse o colar com um retalho de couro onde se lê o nome do prætor e
um anel de ferro no pulso por onde o acorrentam à noite. Ele me entrega uma
tira de pergaminho e eu o enxoto antes que o desejo pelo seu sangue jovem se
torne forte demais, e ele corre como se visse a verdadeira face de minh’alma.
POLYPHONTE.MALDICTA.SEIAS.MAIS.DISCRETA.ET.STEIA.EM.MEV.PALA-TIUM.ESTA.NOCTE.CONFORME.COMBINADO.MINHA.SPOSA.SPERA.ANSIOSA
POLYPHONTE.MALDICTA.SEIAS.MAIS.DISCRETA.ET.STEIA.EM.MEV.PALA-TIUM.ESTA.NOCTE.CONFORME.COMBINADO.MINHA.SPOSA.SPERA.ANSIOSA
O anão esnobe pensa que pode me repreender! Tolo! Eu poderia
destroçar ele e todos aqueles filhos catarrentos dele em um instante! Ele
realmente ainda põe fé nos humanos como ele e pensa que eles poderiam ter se
horrorizado com o que fiz na arena depois de passarem um dia inteiro vendo
queimarem fiéis da seita nova de judeus, tigres e ursos devorando criminosos, e
gladiadores causando degolas e eviscerações? Mesmo assim preciso do dinheiro
daquela gorda com cara de placenta podre de elefante, tenho planos para meu
futuro despertar.
Antes, porém, preciso ocupar a tenda no mercado que aluguei
antes que algum gatuno se aproveite do vazio. Trocamos de roupa para não
sairmos banhados em sangue nem atraírmos moscas, e largamos o cadáver, já
totalmente drenado, com os escravos do circus. Não que eu me importe se ele tem
família que queira enterrá-lo, mas não quero receber mais nenhuma carta
desaforada do verme desprezível que pensa que manda nessa cidade, quando mal
sabe que é manipulado por tantas criaturas da noite, da minha linhagem e de
outras.
Chagamos na tenda e arrumamos os produtos. Meus olhos
finalmente param de doer, pois a noite está plena e não há mais nem um traço da
maldita luz solar que os fere tanto. Antes que os clientes cheguem, separo um
frasco para vender para Laurentia mais tarde. Meu contato no mercado negro
recolhe rapidamente a armadura do gladiador, me livrando do risco.
Ainda me impressiono com o fato de tantas damas da alta
sociedade de Feroniæ me procurarem na tenda em busca de sangue ou de nacos do
fígado daquele gordo infeliz. São tão supersticiosas que pensam que podem
transformar esses restos cadavéricos em cosméticos para prender magicamente
seus maridos, e ainda pensam que podem desprezar os antigos Punici por eles
serem exageradamente superticiosos, mas não percebem que são meros canibais.
Eu digo, com a certeza de quem já viajou, nesses últimos
séculos, começando pela Grécia, passando por Carthago e ficando longas décadas
na Gália, que nenhum povo chegou a ser mais sádico e monstruoso do que os
pretensos civilizados romanos, com suas guerras eternas e seus espetáculos de
extrema violência e crueldade. Nem mesmo os gregos com seus criminosos assando
dentro de touros de bronze, nem os cartagineses carbonizando seus bebês dentro
da boca de Moloch, nem os gauleses com seus homens de palha, nada supera os
romanos cruxificadores e mutiladores. E exatamente por isso minhas filhas, as
medonhas Stryxii, escolheram estas terras para se fixar e espalhar o terror,
dilacerando e devorando as crianças dese reino maldito que merece ser engolido
pelas chamas do Tártaro.
Mais desprezíveis ainda são os velhos impotentes que me
procuram em busca de suor, sangue e até mesmo esperma dos gladiadores, pensando
que poderão voltar a meter em suas esposas que já há muito tempo se afogam em
orgias com escravos e até os próprios gladiadores que, por ironia do destino, também
exalam porra para vender aos maridos cornos dessas lobas.
Falando nisso, tenho que recolher minhas coisas e me dirigir
ao palácio de Maximianus. Destransformo meus pés de coruja, me lavo e perfumo,
de forma a estar mais apresentável.
Chegando lá, os guardas permitem minha entrada mediante
apresentação de uma carta com a marca do sinete do prætor em cera vermelha. Sou
observada pelo busto narigudo de mármore do nanico enquanto espero minha
cliente, que ao chegar, não me agrada mais as vistas do que faria uma montanha
de esterco gosmento de crocodilo do Nilo.
Trocamos longos cumprimentos tão falsos quanto a virilidade
e potência de seu marido, e então partimos para as negociações. Ela exige que
eu descreva o corpo nu e degolado de onde se originou a mercadoria,
principalmente seu membro viril já frio e cinzento pela perda excessiva de
fluidos, e só então suga e lambe em êxtase o frasco de sangue, que parece
deixá-la estafada e com vertigens, como quem desfruta de um potente orgasmo.
Ela me paga com uma quantidade fabulosa de jóias de estilo
oriental, provavelmente nabateu, e então me pede que fique para um novo serviço
quando eu já me preparava para sair.
Quando pensei que a depravação dessa espécie nojenta não
poderia ser maior, ela ordena que seus guardas arrastem até ela o thræx, que
era escravo do seu marido, lanista muito antes de obter escusamente o cargo de
prætor, e ele ainda estava imundo de sangue, suor e areia grudada no corpo,
para começar novo espetáculo de devassidão e selvageria.
O rosto do gigante gladiador causa ainda mais medo sem seu
elmo fechado brilhando ao luar, suas cicatrizes me fazem pensar em como ele
teria sobrevivido a tantos ferimentos. Laurentia ordena que o guerreiro se
dispa e deite para que ela cavalgue sua enorme espada, o que deixa Rufina
fazendo juz ao seu nome de tanto pudor. Ao receber o sêmem da criatura brutal,
ela retira uma adaga do cinto e rasga as vísceras do pobre escravo que mal pôde
aproveitar a glória de ter derrotado um dos maiores campeões de Feroniæ, e faz
uma tentativa pífia de estrangular sua assassina antes de se contorcer e morrer
em meio à sujeira e fluidos.
Laurentia se levanta de cima do cadáver, arruma as roupas,
sorri como se fosse tudo perfeitamente natural e cotidiano, e exige que eu
transforme o fígado do gigante em cosméticos afrodisíacos, então ela me pagaria
o dobro das jóias que já havia me dado.
O cheiro do poderoso sangue do lutador hercúleo não me deixa
raciocinar, eu apenas avanço para ele e enfio a mão no ferimento. É então que o
estouvado e linguarudo Porcius assina sua sentença de morte ao me perguntar em
alto e bom som:
- A Senhora não acha mais fácil tirar o fígado dele com seus
pés de Strix como fez antes?
Percebo que Laurentia e os soldados ficam lívidos de medo,
então agarro os dois escravos pela gola e voo pela janela com moldura de
granito negro para fora dos muros da cidade.
Porcius se debate implorando por sua vida e sua irmã agarra
meu outro braço gritando e chorando desesperada, e não consegue me demover
mesmo que meus fluidos tenham feito com que eles se tornassem mais fortes que o
gigante prostituído e morto há instantes.
O reflexo nos olhos aterrorizados de Porcius mostra minha
verdadeira natureza, a aparência da minha alma macabra, conforme eu assumo a
forma a qual fui amaldiçoada a ter. Vejo surgirem ali dois enorrmes olhos cor
de âmbar, um corpo imenso de coruja marrom, asas negras de morcego, quatro
patas de rapina com potentes garras afiadas e brilhantes que agora esmagam os
escravos contra o chão, e um longo bico sorvedor.
Cravo meu bico letal
no fundo do coração de Porcius, que morre imediatamente, e eu deliro com o
cheiro e o sabor de deu sangue delicioso, sugado através do bico, ressaltado em
seu aroma pelos sentidos aguçados de minha forma animalesca. No meio do êxtase
do canibalismo da carne do mancebo inocente, deixo Rufina escapar sem perceber.
Ela se agarra a minha asa e bate em minha cabeça com uma pedra, mas sequer
consegue me arranhar.
Decido, pela ousadia de agredir sua possuidora, que não
permitirei que ela tenha uma morte rápida como a do irmão. Com um movimento
violento da minha asa direita ela é lançada contra uma árvore, eu voo sobre
ela, agarro cada um de seus membros com uma de minhas patas e arranco
lentamente seus braços e pernas, enquanto ela urra e se debate, seu sangue
perfumado espirra aos cântaros sobre minhas penas, o que me excita ainda mais,
e eu aproveito seu resto de consciência para mutilar seu rosto e seus seios
intocados e revolver suas vísceras, para lhe dar o último merecido castigo.
Devoro os fígados desnutridos dos dois jovens defuntos e
finalmente o abismo famélico em minhas entranhas amaldiçoadas é saciado. Vem-me
o torpor aliviante e libertador do meu espírito maldito, e eu me escondo no
fundo de um grande ôco de uma árvore podre até a próxima lua nova, quando a
fome voltará a me atormentar com dor lancinante, me forçando a destruir mais um
quinhão dessas criaturas tão degeneradas quanto o meu âmago.
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