Por: Rodrigo C. Cittadino
Oto trincava os dentes enquanto as ratazanas
pretas roíam-lhe as unhas dos pés. Faziam-lhe cócegas. “Malditas Criaturas.”
Por um instante se arrependeu de ter desovado suas botas num lixão, mas elas já
pouco lhe serviam, esburacadas que estavam e com as solas pela metade, e afinal
não teriam durado por muito mais tempo. Os animais infames as tinham mordiscado
a cada vez em que ele tinha se atrevido a deixar a casa. Provavelmente mal
restava couro na vizinhança ou mesmo no raio de uma vintena de quilômetros. Nem
sequer calçados. As Criaturas consumiam tudo com sua voracidade desvairada.
Mas Oto não podia mais se esconder, agora que o
luto tinha passado, assim como toda gente e todas as coisas passam. “Menos a
peste”, refletiu. Eis a única regra daquele novo mundo caótico: a peste não
passava, devia ser permanente. Eterna. Imortal. E ele agora precisava expor-se
a ela, se quisesse reencontrar sua doce e querida Helena. Sentiu uma alfinetada
nos dedos: as Criaturas ansiavam por sua carne e sangue. Sempre abusadas,
sempre famintas. No rapaz, não provocavam dor nem angústia. Só mais cócegas.
Oto se empertigou e, ainda sentado de pernas
cruzadas no chão, tentou flexionar os pés, chegando até a ensaiar um chute
desengonçado, a fim de espantar seus predadores. Não deu resultado, nenhum
deles se afastou. Tinham ficado mais audazes e impacientes desde que tinham
adquirido o domínio sobre a vida e a morte em Vilarrocha. Oto
suspirou, enfastiado. O jeito era tolerar as Criaturas, ou ao menos ignorá-las.
Talvez elas enfim se empanturrassem com seus mindinhos e fossem embora
satisfeitas, e ele por seu turno não sofreria grande perda: já andava de cajado
mesmo, para resistir aos cambaleios da fadiga. (O cajado era de metal, e os
animais não comiam metal.)
Tornou a concentrar-se em sua leitura. “Pelo bem
de Helena e por minha sanidade.” O perfume de cera derretida embriagava a
alcova, mas não conseguia exorcizar os fedores mais pungentes: urina e fezes
das Criaturas (também de homens e mulheres em suas horas derradeiras), sem
mencionar o constante ar putrefato, que rastejava por entre qualquer fresta.
Todavia a penumbra mortiça das velas bastava para denunciar as paredes
salpicadas de tinta escura e veludo carmesim, ambos já desgastados; outrora
tinham conferido sobriedade à biblioteca da Abadia dos Santos Esquecidos, mas
agora lembravam sua decadência. Tudo era ruína e vazio ali dentro, um fiel microcosmo
do mundo lá fora. Oto certamente estava sozinho naquele antro de fantasmas e
umidade, comungando com as Criaturas. A certa altura abaixo de si repousavam as
catacumbas.
Sentiu um arrepio apesar do recinto abafado. A
luz fria roçava nas páginas encardidas do livro que o rapaz folheava; e nelas:
a caligrafia rebuscada inconfundível de um escriba membro do sacerdócio,
intercalada por figuras horrendas de cadáveres reféns dos mais diversos tipos
de assassínio, moléstia ou causas naturais. Era um tomo de necromancia. Oto não
se impressionava: as imagens, algumas caricaturais ou rascunhos a carvão,
simplesmente não faziam jus à mortandade nauseante em Vilarrocha. Além
do mais, ele seguia um propósito: Helena aquecia-lhe a esperança em meio ao
desespero imperante na realidade; e ao lado desse calor reconfortante: uma
obstinação febril.
O Padre Leonardo tinha lhe dito com sua
irritante serenidade: “Minha criança, o que foi levado pela terra não retorna”.
Oto não era criança nenhuma (sabia disso), e com ou sem fé o religioso tinha
falecido, vítima da peste. O rapaz interpretou o fato como sinônimo de que o
Padre estava enganado; ou era isso, ou nada – nada mais do que outra morte
seca, privada de sentido, jamais pranteada. Oto leu até seus olhos arderem. Se
existisse uma chance, a mais ínfima, ele haveria de recuperar Helena. Somente
ao fechar o livro reparou que as Criaturas tinham sumido. Avaliou com
desinteresse o estrago: um rombo no dedão do pé direito e o mindinho do
esquerdo faltante. Imaginou que poderia ter se precavido se tivesse escolhido
um lugar elevado para sua leitura. Talvez se tivesse escalado uma estante...
Não vinha racionando com clareza ultimamente.
Apoiou-se no cajado para levantar-se (e só sua
obsessão, disfarçada de coragem, o impediu de desabar) e carregou o tomo
consigo. Era uma espécie de milagre que tanto pergaminho tivesse sobrevivido,
se é que ainda se podia falar em milagres. “Não. Não foi milagre, e sim a
previdência dos sacerdotes.” Porque a biblioteca era impenetrável, talvez tivesse
sido arquitetada com esse objetivo. Conquanto forrados de tinta, veludo e
madeira, por baixo seus muros eram de pedra, sem janelas, e seu piso era de
cerâmica, e não de terra batida. As Criaturas nunca lograram (nem lograriam)
abrir caminho a garras e dentes; três ou quatro apenas tinham se esgueirado
recinto adentro no breve lapso em
que Oto tinha entreaberto a porta de ferro rangente, com a
chave recolhida das vestes de um padre moribundo.
Arrastou-se para fora da Abadia. Estava de volta
sob aquele céu imutável, de um cinza envenenado, e à paisagem descarnada, de
areia alcalina e árvores raquíticas. Fazia meses que o sol não rompia aquelas
nuvens artificiais, que tampouco se dissipavam em chuva. O bafo que o rapaz
aspirava era tóxico e pesado, e suas pernas suavam à medida que avançavam em
passadas curtas e inseguras. As Criaturas o rodeavam, mas em geral mantinham
distância e raras ousavam morder-lhe os calcanhares e tornozelos. Oto lhes
atribuía uma inteligência rudimentar, do contrário não haveria motivo para a
indiferença delas. Deviam saber da maldição que ele portava, deviam ter
aprendido que ele era imune à peste.
Encarnar o último personagem saudável (ou algo
próximo disso) de um juízo final torturantemente longo: que honra o destino lhe
tinha reservado! Mas ele tinha suportado a miséria até então, e tudo estava
prestes a mudar. Com o livro, ele agora possuía o conhecimento, a técnica.
Porém a necromancia exigia um sacrifício medonho do corpo e do espírito, e a
Oto cabia arranjar uma maneira de contornar esse pequenino detalhe. Já tinha
uma ideia do que fazer: precisava ver certo homem, e negociar certa substância
a que não tinham se preocupado em dar nome. Era somente a Substância, e era o bastante. Tão logo munido dela, quebraria o
tabu. Seu segundo tabu.
Gostava de pensar que o primeiro tabu concernia
ao amor, mas não tardava para que uma voz interior, velhaca e desiludida, o
ridicularizasse: o amor era tema para filósofos e poetas, e em Vilarrocha não
vivia mais ninguém que desperdiçasse tempo filosofando ou poetando. Daí Oto
insistia argumentando que, se de amor não se tratava, era algo mais intenso que
uma fagulha de prazer e mais duradouro que a paixão, algo que o povo daquela
cidadezinha tinha abandonado. Pois, no início, quando ainda havia quem se
rendesse ao sono a despeito das Criaturas rondando à noite com guinchos
lamuriosos, elas aproveitavam para subir às camas dos desavisados e enfiar-se
sob seus lençóis e por entre suas roupas, mutilando-lhes as faces, os ventres e
os genitais. De então em diante poucos dormiam de verdade (só cochilavam, e se
revezando), e as mulheres passaram a acusar os maridos de perder a virilidade,
os membros impotentes, e os homens revidavam, alardeando que não trepariam com
esposas de úteros contaminados. E os laços se esfacelaram, e a esterilidade do
solo invadiu as pessoas.
Mas não Oto.
Ele tinha encontrado em Helena alguém com quem
compartilhar cada segundo restante: alguém que lhe permitia esquecer que
restava tempo (tantos dias, tantas horas) e que o tempo passava. Cada orgasmo
mútuo proporcionava a ambos uma paz e amnésia abençoadas: panaceia contra a
apatia generalizada. Bem podia ter sido para sempre! Mas à época o rapaz sabia
que a união havia de terminar, porque tudo menos a peste terminava. Perduraria enquanto
perdurasse. Enquanto eles
perdurassem, tinha remarcado Helena com um risinho infantil. À época ele sabia,
tinha rido em retorno.
Agora não mais. Por que tinha acabado? Oto marchava
encurvado, aos tropeços, e ânsia de vômito assomou-lhe à garganta ao se
recordar dela. Ah, como se sentia solitário! Mordeu o lábio para afugentar a
fraqueza. Tinham quebrado um tabu antes, tinham se unido quando as gentes não
mais acreditavam nessa bobagem: por que Oto não podia quebrar um segundo tabu?
Adiante se abria a viela que buscava, espremida
entre duas fileiras de barracos, como uma fenda rasgada na pedra; e à boca da
passagem: as sentinelas, com mil pares de olhos opacos e asas negras. Imóveis
como estátuas, grasnando baixinho como se respeitassem o decoro num velório, os
corvos se concentravam ali, talvez porque na viela-fenda não enfrentassem a
concorrência das Criaturas, que evitavam o lugar. Oto desbravou a passagem sem
temor: ainda não era carniça, de modo que as aves não se interessaram por ele.
Não sabia precisar exatamente quando os bandos
tinham chegado; só se lembrava de ter despertado certa manhã nublada como todas
as demais, e lá estava a cortina de penas espraiada por Vilarrocha, com as
silhuetas se aprumando ao longo dos varais, nas janelas da Abadia, no parapeito
dos telhados. E por um momento ele e Helena tinham se alegrado, crendo que
aquele exército de anjos esquálidos tinha vindo exterminar a peste; mas não: os
corvos apenas estavam com fome também. Consigo traziam uma nova mortalha. Logo
tinha ficado claro que vigia um acordo de cavalheiros entre os pássaros e as
Criaturas: elas, pioneiras na matança, assenhoreavam-se com direito do maior e
melhor pedaço do butim; eles, retardatários, espiavam e esperavam e esperavam e
se contentavam com as sobras – e com sorte reclamavam para si a gelatina das
órbitas injetadas de suas vítimas.
Na viela-fenda, contudo, o banquete era
exclusivamente dos corvos, pois a viela-fenda era o lar do Dr. Ilusão, o homem
que Oto vinha ver. Logicamente ele não se chamava Ilusão, mas os nomes não
tinham mais importância – e ademais o título combinava com seu jeito
excêntrico. Tampouco era médico: no máximo, outrora tinha sido químico ou
enfermeiro – mas isso importava ainda menos. O que importava era o resultado
brilhante de sua pesquisa: a partir do sangue infectado das Criaturas, ele
tinha conseguido fabricar um alucinógeno potente – um bálsamo, conforme uns. A Substância. E desde então muitos o
procuravam, a fim de desfrutar de algumas horas daquela paz artificial. O doutor
cobrava caro desses: comida, bebida, sexo, proteção ou matéria-prima para seu
trabalho. Mesmo assim havia quem alcançasse a proeza de se chapar ao limite de
desmaiar e nunca mais acordar. Já aos que se arrastavam até ali sentindo a
morte se aproximar e não querendo deixar os corpos para as Criaturas, o Dr.
Ilusão dava alento gratuito, e em seus minutos finais eles viajavam em cores,
luzes e música. Estes e aqueles serviam de alimento para os corvos. E, Oto
constatou, agora o próprio doutor também servia.
(Continua...)
E aí Rodrigo, para alguém que diz não ser o terror o seu estilo o texto está muito bom. Adorei essas criaturas, ainda não li o segundo, espero que você nos diga o que é, porque elas não parecem ser o básico e isso é mais interessante ainda. Logo leio a segunda e última parte. Ah, tem uns errinnhos de escrita no texto ok. Abraço e obrigado por compartilhar o texto.
ResponderExcluirFala, Juliano! Cara, muito obrigado pela leitura e pelo comentário!
ResponderExcluirSobre as Criaturas, eu mencionei o que elas são bem rápido já no primeiro parágrafo, e depois não voltei a tocar no assunto, porque acabei escolhendo como tema central a necromancia, não as Criaturas. Por isso acho que ficou mal esclarecido o que elas são, mas gostei de criá-las.
Verdade, tem uns erros de escrita, obrigado por apontar! Vou corrigir no original.
Mais uma vez, obrigado pela leitura! Abraço!