Gonzáles estava preso por cordas, sentado, a um
grosso carvalho. Foi posto ali pelos seus dois irmãos mais velhos.
—Malditos traidores! Confiei em vocês,
ajudei-os e agora me pagam desta maneira! – praguejou, mesmo sabendo que os
seus irmãos já deviam estar a quilômetros dali.
—Já devem estar se deliciando com o meu vinho agora – pensou.
Aquela terra era amaldiçoada e ao cair da
noite qualquer criatura sensata sequer pensaria nela, pois diziam que aqueles
que eram tolos o suficiente para isso, amanheciam mortos, consumidos por um
pesadelo atroz.
O poço a sua frente era o cerne da mácula, o
refúgio dos três demônios que outrora foram reis sonhadores e bondosos, mas que
degeneraram, embriagados pelo poder e ganância, até o ponto em que começaram a
apodrecer ainda vivos e foram condenados a assombrar qualquer ser vivo que se
aproximasse assim que a lua beijasse a terra.
Neve caia, fazendo a paisagem ficar
predominantemente branca e Gonzáles tiritar, visto que suas vestes eram de um
tecido vagabundo que não aquecia. Não dava mais para ver o preto de seus
cabelos e barba.
Começou a rezar para que o frio o levasse
para o outro lado antes que os demônios despertassem, mas o seu desejo foi
frustrado ao escutar um bramido que fez todo o local tremer diante da emanação venenosa
daquele som tétrico.
Não demorou a ouvir o som de algo raspando a
pedra do poço, eles deviam estar subindo, sedentos pela sua carne e sangue que
lhes aquecia um pouco os corações de gelo.
Gonzáles tentou ignorar o que os seus ouvidos
captavam, mas não tinha como bloquear a agonia de imaginar as garras, que agora
arranhavam pedras frias, abrindo o seu corpo.
Primeiro viu as mãos das criaturas na borda do
poço, elas possuíam grandes garras da mesma cor que suas peles, cinzas, o que
dava a impressão de que na verdade os seus dedos se prolongavam até ficarem
agudos como agulhas.
Os corpos magérrimos não diminua o poder de
intimidação delas.
As línguas, anormalmente grandes, se
moviam fora da boca descontroladamente e às vezes lambiam os inúmeros dentes
pontudos e sujos, fazendo saliva escorrer pelos seus queixos. Quando a neve
entrava em contato com o cuspe, enegrecia, tornando aqueles minúsculos pedaços
de terra estéreis. Sequer capim iria crescer.
Elas não articulavam sons além de gemidos,
chiados e o que talvez fosse algum idioma próprio de sua espécie.
Lentamente, elas chegaram ao lado de
Gonzáles. Como sabiam que a sua presa não poderia escapar, deliciavam-se com
movimentos lentos, ora lambendo o rosto dele, ora tocando-o com as suas garras
afiadas.
Para evitar que as coisas tivessem ainda mais
prazer ao enxergarem o medo em seus olhos, Gonzáles os fechou. Entretanto, foi
uma tentativa vã, uma vez que uma delas lhe cortou as pálpebras, forçando-o a
testemunhar todo o horror.
Uma das abominações o encarou de tão perto,
quase o beijando, e disse claramente:
—Id e Superego (1),
abandonaram você, Gonzáles? Teme os teus demônios? Iremos te consumir em
pequenas porções, caso insista em manter a esperança, e quando achar que vai
morrer, cuidaremos de teus ferimentos para que viva um pouco mais e possa
sentir mais dor no dia seguinte! Ego,
desista, ceda, se você contribuir com as nossas intenções, acabaremos com a tua
dor!
Com o coração acelerado e a visão embaçada
pelo sangue, respondeu:
—Sim, eu cedo! Eu cedo! Acabem logo com isto!
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[1] Fonte elucidativa sobre a estrutura do aparelho
psíquico – modelo proposto por Sigmund Freud (Id, Ego e Superego): http://www.brasilescola.com/psicologia/o-aparelho-psiquico.htm
Quando somos abandonados pelo id, que é o princípio do prazer, e pelo superego, que é a fonte dos sentimentos de culpa e medo de punição, o ego, onde os desejos da realidade são reprimido de consquências indesejáveis, fica completamente perdido. Acho que foi o que aconteceu com o seu personagem. Se for realmente isso que você tentou mostrar, conseguiu. Parabéns. Se entendi errado, me perdoe.
ResponderExcluirAbraços,
Ana Luisa
Sim, Ana, foi precisamente isto que ocorreu com o meu personagem. Fico feliz em saber que o texto conseguir ser claro. Agradeço a sua constante presença por aqui.
ExcluirAbraços!