A TV anuncia mais uma
vítima. Ela está ligada a mais de dois dias, mas sua luz não cessa, parece ter
vida própria. Nela, um homem diz que a contagem de corpos já atingiu o número
de cinco pessoas. Sem vínculos, sem pistas, apenas um nome: nimbus.
Quantos mais morrerão até que se chegue ao autor desta carnificina? - questiona o âncora do noticiário.
Quantos mais morrerão até que se chegue ao autor desta carnificina? - questiona o âncora do noticiário.
- Quantos? Não sei dizer. O
que interessa não é o número, mas a mensagem que deixo. Vou morrer logo, mas
meu legado continuará por gerações.
O homem caminha pelo
apartamento e olha para a TV. Seu trabalho está sendo bem divulgado, pensa.
Com a voz sussurrada, ele
diz:
- Eu sou Nimbus. Eu sou a
nuvem que traz a sombra e a brisa, o acalento e a serenidade. Porém também
trago a tempestade, o frio e o desalento. Eu carrego a paz e a calamidade em mim. Venho sem avisar e
parto ainda mais sorrateiramente.
Então, sorrindo, ele aponta
o controle-remoto para a televisão e, com um toque, a silencia. O apartamento é
tomado pela escuridão.
- É hora de dormir. - pensa.
- Amanhã há muito a fazer. Eles têm que compreender o quanto a dor pode ser
intensa, o quanto o medo pode se entrelaçar em suas espinhas. Eles irão me
temer e me respeitar... ainda tenho muito a fazer.
Abro os olhos lentamente.
Meu quarto está com as janelas fechadas, sujas. Mas ainda assim elas permitem a
entrada da luz do letreiro de uma oficina próxima. Nada que me incomode, penso.
Olho para o lado e vejo
minha TV, minha velha companheira. Fico parado frente a ela por longos minutos,
sem que nada seja dito a meu respeito. Sinto raiva pelo descaso.
Estico o pescoço, alongando-o. Há dor em meus ossos e minha bexiga dói pelo acúmulo de urina. Fiquei muito tempo deitado, preparando o corpo e o espírito para o que virá. Sei que valerá a pena.
Estico o pescoço, alongando-o. Há dor em meus ossos e minha bexiga dói pelo acúmulo de urina. Fiquei muito tempo deitado, preparando o corpo e o espírito para o que virá. Sei que valerá a pena.
Tomo uma longa ducha quente.
O calor da água sempre me revigora, quase tanto quanto o calor do sangue. O
banho acaba e atravesso a sala nu, sentindo o frio suave que vem lá de fora,
junto com o barulho que insiste em não acabar jamais.
Lá fora, meus olhos
contemplam as pessoas que passam. "Em breve, um de vocês morrerá", comento, entre
lágrimas.
Olho para meu apartamento e
fico imaginando o que seria minha vida sem ele. Tantas vezes ele ficou ao meu
dispor, pronto a me ouvir e a chorar comigo. Um verdadeiro e leal amigo.
Descalço, ando bem devagar
até meu guarda-roupa (odeio esse papo de "closet" e outras
frescuras). Abro sua porta e fico longos segundos avaliando minhas roupas. Hoje,
não sei se já citei, será um dia especial e, para tanto, preciso de um traje
adequado à data. Sem desleixo! - cobro de mim, mentalmente.
Como em um ritual de
suicídio, disponho as peças organizadas em minha cama, seguindo a ordem em que
pretendo pô-las em meu corpo. Vou desde a camiseta interna, até os sapatos
Timberland. Não sou um cara de luxos, porém faço questão de ter os pés
confortáveis.
Já arrumado, vou apagando
cada lâmpada de cada cômodo. Não desperdiçar sempre foi uma das minhas formas
de manter o autocontrole.
Chego à porta, olho
atentamente ao que me cerca e, impassível, encosto-a. A chave gira, fazendo um
desagradável som de fechadura velha. Tão velha quanto meu espírito, vale
ressaltar.
Desço alguns andares a pé. O
exercício sempre será salutar, sempre me manterá alerta para minhas atividades.
Estar alerta, relembro, é questão de sobrevivência.
Já fora do prédio, respiro um ar poluído e, ao mesmo tempo, cinco mil vezes
melhor que o do meu apartamento.
Alguns transeuntes me olham,
mas é meu olhar que os acompanha sem medo, louco para lhes mostrar o quanto
posso ser gentil... ainda que esteja matando.
Ando
por longas horas, sem me preocupar com quem me cerca. A vida dos outros não é
nada para mim. Eu não tenho vínculos ou sentimentos com ninguém e, acreditem,
isso me facilita demais no que faço.
Conforme ando ou estou
parado, percebo pessoas me olhando. Há curiosidade em seus olhares, há desejo,
receio, incompreensão, rancor. São tantos os sentimentos emanados, tantas
ambições e dúvidas... todos me atingindo a uma só vez.
Por fim, já abalado por tanto tempo em contato com outros, encontro meu material de trabalho. Vejo uma pessoa, uma mulher magra e triste. Ela não me percebe (e eu gosto disso), está com a cabeça baixa, ostentando um olhar sofrido e vago. Sua face chega a lembrar a minha própria nos momentos de angústia. - Ela não irá mais sofrer, prometo a mim mesmo.
Por fim, já abalado por tanto tempo em contato com outros, encontro meu material de trabalho. Vejo uma pessoa, uma mulher magra e triste. Ela não me percebe (e eu gosto disso), está com a cabeça baixa, ostentando um olhar sofrido e vago. Sua face chega a lembrar a minha própria nos momentos de angústia. - Ela não irá mais sofrer, prometo a mim mesmo.
Eu vou acompanhando-a.
Nossos passos têm o mesmo ritmo, o que me facilita ficar próximo a ela. Como
sempre, não sou detectado. Será uma boa noite...
Acelero o passo e,
rapidamente, estou à frente dela. Como das outras vezes, as preocupações dela
(similar aos outros alvos) sobrepõem sua atenção ao que lhe acontece ao redor.
Eu passo como se fosse um fantasma, sem que ela me notasse.
Quase uns quinhentos metros
à frente, paro e começo a pensar no que fazer. Minhas decisões são rápidas e
não devem despertar suspeitas. E é isso que faço.
Quando ela está quase passando por mim, eu acelero e me ponho à frente dela. O restante correu de acordo com as prévias: ela esbarra em mim, eu peço desculpas e pergunto o que posso fazer para compensar.
Quando ela está quase passando por mim, eu acelero e me ponho à frente dela. O restante correu de acordo com as prévias: ela esbarra em mim, eu peço desculpas e pergunto o que posso fazer para compensar.
Inicialmente,
a mulher demonstra certo receio por causa da cordialidade excessiva. Mas eu
aprendi uma coisa muito importante: todas podem te odiar. Todas elas podem te
amar.
Nossos olhares se encontram.
Há dúvida e receio em seus olhos castanhos. Mas também posso ver solidão e
amor. Ela é um verdadeiro anagrama, uma profusão de letras pedindo para serem
reorganizadas.
- Peço desculpas pelo
atrevimento – digo, sem que permita a ela desviar o olhar. - Estou com alguns
problemas e, para ser sincero, acabei andando pela calçada sem me dar conta das
pessoas. Porém, acho que estou sendo um tanto indelicado. Não me apresentei
educadamente: sou o Dr. Flavius, seu humilde servo.
Abaixei a cabeça em sinal de
mesura, sem desviar nossos olhares. Ela gostou, percebi, do tratamento que
estava recebendo. No fim, todas gostam.
- Bem, Doutor, eu agradeço
pela gentileza, de verdade. Porém tenho outros deveres e não há tempo para
paqueras. Por favor, me deixe passar.
Os olhos dela eram
elétricos, contrastando com o resto do corpo visivelmente abatido. O desânimo
que ela tinha, o descontentamento, não transparecia em seus olhos. Ali, no
brilho deles, eu pude ver o quanto ela era boa. Como a maioria das pessoas. Foi
a partir daí que decidi realmente agir.
- Kátia. Meu nome é Kátia,
mas ainda não posso ser chamada de senhora. Não sou casada.
- Hum... eu entendo. Não
quis ofender, apenas ser cordial - disse, já mais animado pelo desenrolar da
conversa. - Que tal, para compensar o inconveniente, uma xícara de café ou chá?
Apenas para tirar esta má impressão que deixei.
Kátia me fita, pensativa.
Sinto nela uma dúvida muito grande, como se estivesse pondo em votação a
decisão a ser tomada. Não esboço qualquer reação, pois sei qual será sua
resposta.
- Veja, - ela inicia - não
quero namoros, flertes nem nada do gênero. Apenas uma xícara de café, dois
minutos de conversa e nunca mais nos veremos. Estes são meus termos.
Eu virei as costas para ela e, em voz alta, disse:
- Seu desejo, minha
diretriz. Assim será, então. Vamos?
Apontei a mão direita à
frente, em sinal de pedido de passagem. Ela se adiantou e ficou ao meu lado.
- Vamos... mas lembre-se das
regras.
- Eu jamais esqueço as
regras, Kátia. Elas são os pilares que sustentam minha vida.
Então, sem mais nada dizer, nos dirigimos a um cyber-café. Para os que nos viam, aparentávamos ser apenas conhecidos, pois não nos tocamos um só segundo. A distância era rigorosa, muito formal. Afinal, o que se poderia esperar de um encontro tão repentino? Beijos?
Então, sem mais nada dizer, nos dirigimos a um cyber-café. Para os que nos viam, aparentávamos ser apenas conhecidos, pois não nos tocamos um só segundo. A distância era rigorosa, muito formal. Afinal, o que se poderia esperar de um encontro tão repentino? Beijos?
Entramos
para o café. O lugar era muito calmo, apesar da movimentação dos dedos nos
teclados dos laptops ao redor. Muitas pessoas plugadas e atentas ao seu mundo
particular, ao seu mundo virtual.
Eu puxei uma cadeira para
que ela se sentasse. Não houve agradecimentos.
Um homem, na verdade um garoto, se aproximou e disse:
- Desculpem incomodar, mas
desejam algo para beber? Já conhecem nossa locadora de DVD e Blu-ray? - questionou,
sorrindo de modo simpático.
- Estamos com pressa. Mas
pode trazer dois capuccinos. Quer o seu com pouca ou muita canela?
Ela elevou o queixo e
respondeu:
- Traga os dois com muita
canela.
- Sim, senhora - respondeu o
atendente.
Permaneci quieto, enquanto o
garoto se afastava e, só então, perguntei a ela como havia descoberto minha
predileção no capuccino.
- Veja, - ela começou - sua
entonação ao final da frase entregou sua opção. Quando disse pouca, disse com
desprezo. Logo, muita canela era a opção correta.
Aproximei meu rosto dela. Havia mais naquele olhar do que aparentava, isto era
definitivo. Ela era bem perspicaz, o tipo de vítima que iria trazer muito
trabalho. Um desafio...
- Suas conclusões estão corretas. Parabéns. Fico imaginando o que seria capaz
de descobrir se nossa pequena amizade se estendesse por mais algumas horas.
- É. Quem sabe o que ocorreria, afinal? - ela respondeu.
Nossa
conversa transcorreu normalmente. Ela era perfeita. Um perfil psicológico
frágil, mas uma personalidade forte, um verdadeiro enigma... e eu precisava
decifrá-lo.
Olhei atentamente para ela e senti algo diferente. Ela me atraía, concluí. Sua
simplicidade, sua complexidade, me atraíam muito. Mas isto não lhe impediria de
ser minha próxima obra. Ela só estava esperando ser moldada.
(Continua...)
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