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sábado, 23 de março de 2013

Deixandos as profundezas.



Por: Sandro Quintana.

A primeira coisa que Camila percebeu ao despertar foi a escuridão, tão intensa que ela não conseguia ter certeza se estava de olhos abertos ou fechados.

A segunda coisa que ela percebeu foi a dor lacerante em seu peito, como se algo o tivesse atravessado. Ao passar a mão, por cima da roupa, sentiu duas cicatrizes no peito. Uma grande, passando entre seus seios, e outra menor, do lado esquerdo.

Tentou se mover, mas não havia muito espaço. Sua respiração começou a ficar acelerada, o que só fez aumentar a dor que sentia. Tentava se lembrar de como chegara ali, enquanto suas mãos procuravam e forçavam, em busca de alguma brecha em sua minúscula prisão.

Imagens da noite anterior, a festa aonde fora com o namorado, Lucas, começaram a brotar em sua mente. Ela não queria ir, mas ele insistiu. Chegou a dizer que iria sozinho se ela não fosse, e isso ela não permitiria. Não com aquelas amiguinhas dele ciscando ao redor.

Não havia qualquer fresta, então começou a bater nas paredes de madeira a sua volta. Madeira! Estava em um caixão! Tentou gritar, mas a garganta estava seca e ardia.

Bebeu muito enquanto via as periguetes se oferecendo para o seu namorado. E Lucas ainda dava trela para elas. Dançando e rindo. A pior de todas era a Márcia, "marcinha" como Lucas a chamava, o que fazia seu estômago revirar de raiva. A cara de boazinha não a enganava. Aquela garota era uma sonsa. Via os olhares dela para Lucas. Aquela vaca tinha posto alguma coisa em sua bebida?

Munida de uma nova força oriunda da raiva, Camila conseguiu atravessar as barreiras de sua prisão. Sentiu sua mão envolta por terra úmida. Fora enterrada viva! Seria possível que alguém fosse tão doente a ponto de fazer isso com ela?

Começou a enxergar pontos de luz e sentiu as forças escoarem. Não! Não podia deixá-la vencer assim. Tinha vontade de gritar para ela: "Ele é meu!" E gritou, ou ao menos tentou, mas a voz saiu rouca e fraca.

Na noite anterior também gritara sua posse. Lembrava de não ter apenas gritado, mas de ter enfatizado de maneira física. Ela merecera os bons tabefes que recebera. E, se as outras "amiguinhas" não tivessem se juntado contra ela, teria batido ainda mais.

Talvez elas também estivessem juntas nesta trama doentia, pensava enquanto continuava se movendo através da terra, em busca da liberdade, reenergizada pela fúria. Não via mais pontos luminosos.

Lucas a arrancara da festa, carregado-a no ombro, como algum homem das cavernas. Nunca sentira tamanha vergonha na vida.

Mordeu os lábios, sentindo um gosto ruim, como de algo estragado, enquanto prendia as lágrimas que tentavam transbordar conforme era inundada pelas lembranças da viagem de volta para casa naquela noite. Lucas gritando como se fosse uma menininha estúpida.

A imagem a assombrava conforme rastejava pela terra fria. As palavras dele querendo terminar tudo ressoando em seus ouvidos e a atingindo como uma faca fincada em seu peito.

Suas mãos tocaram algo sólido.
Ele a levou pra casa e disse que estava tudo acabado.
Ela golpeia a última barreira que a separa da liberdade.
Quando ele se virou para ir embora, ela se jogou em cima dele.
Golpeia com toda a sua força. Não pode terminar assim.
Nem percebera a faca até que ele a tomou de si.
Novamente via os pontos de luz, e lutava com uma sensação de se perder de si mesma.
Uma dor lancinante em seu peito.
Um último golpe desesperado com o que sobrava de suas energias.

E... estava livre!

Sim, livre para se vingar daquelas que a tinham feito sofrer. As que tentaram roubá-lo. E dele por tê-la feito sofrer tanto.

Camila olhou por um instante para seu túmulo de mármore imaculado, flexionou as garras, e saiu do cemitério para o breu da noite sem que seus pés tocassem o chão.

A escuridão não a incomodava mais.

Contatos com o autor:
twitter: @andarilhor
 

6 comentários:

  1. Sandro, meus parabéns pelo conto! Ilustrou muito bem o quanto uma obsessão pode ser perigosa, para quem é portador, para o alvo e quem se colocar no caminho. Obviamente Camila não terá mais o descanso, continuará a existir como um ser errante entre a vida e o além. No final das contas, ela foi seu próprio carrasco.

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    1. Obrigado, Ed!
      A ideia foi muito essa mesma. Além de apresentar uma pessoa que não assume a responsabilidade sobre seus atos e sobre as consequências destes. :)
      Grande Abraço!

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  2. Muito bom, fui lendo esperando por uma coisa, e de repente, outra situação aparece. Gostei.

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    1. Oi Tânia,
      Fico feliz que tenha gostado. :)
      A ideia era essa surpresa mesmo, mas colocando pequenos detalhes da segunda situação ao longo do desenvolvimento da trama.
      Abração!

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  3. Legal, Sandro! Depois escreva outra sobre o que a Camila fez após deixar o túmulo, que tal?

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