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sábado, 2 de março de 2013

O que a terra levou. Parte I de II

Por: Rodrigo C. Cittadino

Oto trincava os dentes enquanto as ratazanas pretas roíam-lhe as unhas dos pés. Faziam-lhe cócegas. “Malditas Criaturas.” Por um instante se arrependeu de ter desovado suas botas num lixão, mas elas já pouco lhe serviam, esburacadas que estavam e com as solas pela metade, e afinal não teriam durado por muito mais tempo. Os animais infames as tinham mordiscado a cada vez em que ele tinha se atrevido a deixar a casa. Provavelmente mal restava couro na vizinhança ou mesmo no raio de uma vintena de quilômetros. Nem sequer calçados. As Criaturas consumiam tudo com sua voracidade desvairada.

Mas Oto não podia mais se esconder, agora que o luto tinha passado, assim como toda gente e todas as coisas passam. “Menos a peste”, refletiu. Eis a única regra daquele novo mundo caótico: a peste não passava, devia ser permanente. Eterna. Imortal. E ele agora precisava expor-se a ela, se quisesse reencontrar sua doce e querida Helena. Sentiu uma alfinetada nos dedos: as Criaturas ansiavam por sua carne e sangue. Sempre abusadas, sempre famintas. No rapaz, não provocavam dor nem angústia. Só mais cócegas.
Oto se empertigou e, ainda sentado de pernas cruzadas no chão, tentou flexionar os pés, chegando até a ensaiar um chute desengonçado, a fim de espantar seus predadores. Não deu resultado, nenhum deles se afastou. Tinham ficado mais audazes e impacientes desde que tinham adquirido o domínio sobre a vida e a morte em Vilarrocha. Oto suspirou, enfastiado. O jeito era tolerar as Criaturas, ou ao menos ignorá-las. Talvez elas enfim se empanturrassem com seus mindinhos e fossem embora satisfeitas, e ele por seu turno não sofreria grande perda: já andava de cajado mesmo, para resistir aos cambaleios da fadiga. (O cajado era de metal, e os animais não comiam metal.)
Tornou a concentrar-se em sua leitura. “Pelo bem de Helena e por minha sanidade.” O perfume de cera derretida embriagava a alcova, mas não conseguia exorcizar os fedores mais pungentes: urina e fezes das Criaturas (também de homens e mulheres em suas horas derradeiras), sem mencionar o constante ar putrefato, que rastejava por entre qualquer fresta. Todavia a penumbra mortiça das velas bastava para denunciar as paredes salpicadas de tinta escura e veludo carmesim, ambos já desgastados; outrora tinham conferido sobriedade à biblioteca da Abadia dos Santos Esquecidos, mas agora lembravam sua decadência. Tudo era ruína e vazio ali dentro, um fiel microcosmo do mundo lá fora. Oto certamente estava sozinho naquele antro de fantasmas e umidade, comungando com as Criaturas. A certa altura abaixo de si repousavam as catacumbas.
Sentiu um arrepio apesar do recinto abafado. A luz fria roçava nas páginas encardidas do livro que o rapaz folheava; e nelas: a caligrafia rebuscada inconfundível de um escriba membro do sacerdócio, intercalada por figuras horrendas de cadáveres reféns dos mais diversos tipos de assassínio, moléstia ou causas naturais. Era um tomo de necromancia. Oto não se impressionava: as imagens, algumas caricaturais ou rascunhos a carvão, simplesmente não faziam jus à mortandade nauseante em Vilarrocha. Além do mais, ele seguia um propósito: Helena aquecia-lhe a esperança em meio ao desespero imperante na realidade; e ao lado desse calor reconfortante: uma obstinação febril.
O Padre Leonardo tinha lhe dito com sua irritante serenidade: “Minha criança, o que foi levado pela terra não retorna”. Oto não era criança nenhuma (sabia disso), e com ou sem fé o religioso tinha falecido, vítima da peste. O rapaz interpretou o fato como sinônimo de que o Padre estava enganado; ou era isso, ou nada – nada mais do que outra morte seca, privada de sentido, jamais pranteada. Oto leu até seus olhos arderem. Se existisse uma chance, a mais ínfima, ele haveria de recuperar Helena. Somente ao fechar o livro reparou que as Criaturas tinham sumido. Avaliou com desinteresse o estrago: um rombo no dedão do pé direito e o mindinho do esquerdo faltante. Imaginou que poderia ter se precavido se tivesse escolhido um lugar elevado para sua leitura. Talvez se tivesse escalado uma estante... Não vinha racionando com clareza ultimamente.
Apoiou-se no cajado para levantar-se (e só sua obsessão, disfarçada de coragem, o impediu de desabar) e carregou o tomo consigo. Era uma espécie de milagre que tanto pergaminho tivesse sobrevivido, se é que ainda se podia falar em milagres. “Não. Não foi milagre, e sim a previdência dos sacerdotes.” Porque a biblioteca era impenetrável, talvez tivesse sido arquitetada com esse objetivo. Conquanto forrados de tinta, veludo e madeira, por baixo seus muros eram de pedra, sem janelas, e seu piso era de cerâmica, e não de terra batida. As Criaturas nunca lograram (nem lograriam) abrir caminho a garras e dentes; três ou quatro apenas tinham se esgueirado recinto adentro no breve lapso em que Oto tinha entreaberto a porta de ferro rangente, com a chave recolhida das vestes de um padre moribundo.
Arrastou-se para fora da Abadia. Estava de volta sob aquele céu imutável, de um cinza envenenado, e à paisagem descarnada, de areia alcalina e árvores raquíticas. Fazia meses que o sol não rompia aquelas nuvens artificiais, que tampouco se dissipavam em chuva. O bafo que o rapaz aspirava era tóxico e pesado, e suas pernas suavam à medida que avançavam em passadas curtas e inseguras. As Criaturas o rodeavam, mas em geral mantinham distância e raras ousavam morder-lhe os calcanhares e tornozelos. Oto lhes atribuía uma inteligência rudimentar, do contrário não haveria motivo para a indiferença delas. Deviam saber da maldição que ele portava, deviam ter aprendido que ele era imune à peste.
Encarnar o último personagem saudável (ou algo próximo disso) de um juízo final torturantemente longo: que honra o destino lhe tinha reservado! Mas ele tinha suportado a miséria até então, e tudo estava prestes a mudar. Com o livro, ele agora possuía o conhecimento, a técnica. Porém a necromancia exigia um sacrifício medonho do corpo e do espírito, e a Oto cabia arranjar uma maneira de contornar esse pequenino detalhe. Já tinha uma ideia do que fazer: precisava ver certo homem, e negociar certa substância a que não tinham se preocupado em dar nome. Era somente a Substância, e era o bastante. Tão logo munido dela, quebraria o tabu. Seu segundo tabu.
Gostava de pensar que o primeiro tabu concernia ao amor, mas não tardava para que uma voz interior, velhaca e desiludida, o ridicularizasse: o amor era tema para filósofos e poetas, e em Vilarrocha não vivia mais ninguém que desperdiçasse tempo filosofando ou poetando. Daí Oto insistia argumentando que, se de amor não se tratava, era algo mais intenso que uma fagulha de prazer e mais duradouro que a paixão, algo que o povo daquela cidadezinha tinha abandonado. Pois, no início, quando ainda havia quem se rendesse ao sono a despeito das Criaturas rondando à noite com guinchos lamuriosos, elas aproveitavam para subir às camas dos desavisados e enfiar-se sob seus lençóis e por entre suas roupas, mutilando-lhes as faces, os ventres e os genitais. De então em diante poucos dormiam de verdade (só cochilavam, e se revezando), e as mulheres passaram a acusar os maridos de perder a virilidade, os membros impotentes, e os homens revidavam, alardeando que não trepariam com esposas de úteros contaminados. E os laços se esfacelaram, e a esterilidade do solo invadiu as pessoas.
Mas não Oto.
Ele tinha encontrado em Helena alguém com quem compartilhar cada segundo restante: alguém que lhe permitia esquecer que restava tempo (tantos dias, tantas horas) e que o tempo passava. Cada orgasmo mútuo proporcionava a ambos uma paz e amnésia abençoadas: panaceia contra a apatia generalizada. Bem podia ter sido para sempre! Mas à época o rapaz sabia que a união havia de terminar, porque tudo menos a peste terminava. Perduraria enquanto perdurasse. Enquanto eles perdurassem, tinha remarcado Helena com um risinho infantil. À época ele sabia, tinha rido em retorno. Agora não mais. Por que tinha acabado? Oto marchava encurvado, aos tropeços, e ânsia de vômito assomou-lhe à garganta ao se recordar dela. Ah, como se sentia solitário! Mordeu o lábio para afugentar a fraqueza. Tinham quebrado um tabu antes, tinham se unido quando as gentes não mais acreditavam nessa bobagem: por que Oto não podia quebrar um segundo tabu?
Adiante se abria a viela que buscava, espremida entre duas fileiras de barracos, como uma fenda rasgada na pedra; e à boca da passagem: as sentinelas, com mil pares de olhos opacos e asas negras. Imóveis como estátuas, grasnando baixinho como se respeitassem o decoro num velório, os corvos se concentravam ali, talvez porque na viela-fenda não enfrentassem a concorrência das Criaturas, que evitavam o lugar. Oto desbravou a passagem sem temor: ainda não era carniça, de modo que as aves não se interessaram por ele.
Não sabia precisar exatamente quando os bandos tinham chegado; só se lembrava de ter despertado certa manhã nublada como todas as demais, e lá estava a cortina de penas espraiada por Vilarrocha, com as silhuetas se aprumando ao longo dos varais, nas janelas da Abadia, no parapeito dos telhados. E por um momento ele e Helena tinham se alegrado, crendo que aquele exército de anjos esquálidos tinha vindo exterminar a peste; mas não: os corvos apenas estavam com fome também. Consigo traziam uma nova mortalha. Logo tinha ficado claro que vigia um acordo de cavalheiros entre os pássaros e as Criaturas: elas, pioneiras na matança, assenhoreavam-se com direito do maior e melhor pedaço do butim; eles, retardatários, espiavam e esperavam e esperavam e se contentavam com as sobras – e com sorte reclamavam para si a gelatina das órbitas injetadas de suas vítimas.
Na viela-fenda, contudo, o banquete era exclusivamente dos corvos, pois a viela-fenda era o lar do Dr. Ilusão, o homem que Oto vinha ver. Logicamente ele não se chamava Ilusão, mas os nomes não tinham mais importância – e ademais o título combinava com seu jeito excêntrico. Tampouco era médico: no máximo, outrora tinha sido químico ou enfermeiro – mas isso importava ainda menos. O que importava era o resultado brilhante de sua pesquisa: a partir do sangue infectado das Criaturas, ele tinha conseguido fabricar um alucinógeno potente – um bálsamo, conforme uns. A Substância. E desde então muitos o procuravam, a fim de desfrutar de algumas horas daquela paz artificial. O doutor cobrava caro desses: comida, bebida, sexo, proteção ou matéria-prima para seu trabalho. Mesmo assim havia quem alcançasse a proeza de se chapar ao limite de desmaiar e nunca mais acordar. Já aos que se arrastavam até ali sentindo a morte se aproximar e não querendo deixar os corpos para as Criaturas, o Dr. Ilusão dava alento gratuito, e em seus minutos finais eles viajavam em cores, luzes e música. Estes e aqueles serviam de alimento para os corvos. E, Oto constatou, agora o próprio doutor também servia.
(Continua...)

2 comentários:

  1. E aí Rodrigo, para alguém que diz não ser o terror o seu estilo o texto está muito bom. Adorei essas criaturas, ainda não li o segundo, espero que você nos diga o que é, porque elas não parecem ser o básico e isso é mais interessante ainda. Logo leio a segunda e última parte. Ah, tem uns errinnhos de escrita no texto ok. Abraço e obrigado por compartilhar o texto.

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  2. Fala, Juliano! Cara, muito obrigado pela leitura e pelo comentário!
    Sobre as Criaturas, eu mencionei o que elas são bem rápido já no primeiro parágrafo, e depois não voltei a tocar no assunto, porque acabei escolhendo como tema central a necromancia, não as Criaturas. Por isso acho que ficou mal esclarecido o que elas são, mas gostei de criá-las.
    Verdade, tem uns erros de escrita, obrigado por apontar! Vou corrigir no original.
    Mais uma vez, obrigado pela leitura! Abraço!

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