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sábado, 9 de março de 2013

O que a terra levou. Parte final.

Por: Rodrigo C. Cittadino.
Dr. Ilusão estava recostado contra a barricada improvisada na frente de seu laboratório. Pálido e fedendo a éter e a pestilência, estampava no rosto as pestanas cerradas e um esgar de asco que semelhava curiosamente um sorriso. O rapaz lhe sorriu de volta: com ele morto não teria de lidar com barganhas inconvenientes. Mas achava – ou uma parte ainda escrupulosa de si achava – que não devia ignorá-lo ali, jogado, à mercê das aves carniceiras. Carregou-o para dentro do laboratório. Pegou o que necessitava: seringas e frascos com a Substância, bisturi, estilete, colher e uma lâmpada-acendedora, que produzia fogo. Depois empilhou mais barris e caixas junto à porta do local de trabalho do doutor. Assentiu satisfeito: o túmulo estava fechado. E rumou para o cemitério, para escancarar outro túmulo.

Atravessou ruas familiares, as mesmas que tinha atravessado meses antes, quando teimava em depositar flores sobre a cova de Helena. As flores estavam mortas, ressequidas como a flora daninha das redondezas, mas, afinal, o que contava era a intenção – e a intenção devia bastar. Com o tempo tinha parado de visitar sua amada, por causa da angústia, do medo, do cansaço, da preguiça. E porque a mulher inerte e de pele desbotada sob a terra nada mais era do que uma imitação fajuta de Helena, que sempre tinha esbanjado vivacidade. Agora Oto caminhava para uma última visita, a que traria sua arduamente planejada reconciliação.

Cuspiu para expurgar os maus agouros. As Criaturas na estrada lhe eram familiares também, e ele, a elas. Nenhuma o incomodou, nenhuma se desgarrou dos montículos em que disputavam a carne dos últimos tombados. Oto raciocinou que, se aquela gente tinha desfalecido justo no extremo oeste da cidade – recanto desolado, sem casas à vista, sem abrigo contra os predadores senão um ou dois troncos retorcidos, inatingíveis para mãos e pés debilitados –, então deviam estar no curso de uma procissão desiludida para o cemitério quando o sopro fatal tinha irrompido de suas traqueias ranhosas e por entre seus lábios rachados. Havia algo de remotamente digno em morrer no cemitério. Soava civilizado resgatar antigos valores e ritos que tinham caído em desuso quando, um dia, as entranhas do solo tinham superlotado em função do número exorbitante de cadáveres. Não obstante, muitos enfermos ainda buscavam consolo em seus antepassados e, às portas do sono eterno, se arriscavam para conquistar uma vaga no leito deles; embora fosse péssimo o cheiro, parecia correto agir assim. O rapaz, todavia, não estava indo render-se à peste.


Chegou à ponte de alvenaria que demarcava a fronteira ocidental de Vilarrocha. Ponte das Almas: um nome já bastante apropriado à época em que ela encerrava a única via de acesso ao cemitério. Hoje era ainda mais apropriado. Atrás de Oto, na estrada, o chão se remexia, infestado das Criaturas que se refestelavam com os que tinham sucumbido na travessia. Abaixo de si, no rio, o rapaz captava relances de corpos inchados boiando na água poluída. A maioria tinha sido despachada ali para que fosse tragada pela correnteza, quando a população mortuária era limitada, mas já extensa demais para ser absorvida por túmulos e covas. Alguns tinham se atirado voluntariamente ao afogamento, no afã de escapar das Criaturas. E isso tudo antes de o volume maciço de restos humanos amontoar-se num vau a jusante do rio e obstruir-lhe o fluxo. Daí o nível da água tinha subido, as margens tinham se desgastado, e a lama decorrente da erosão tinha gestado um pântano sob a ponte.

Anoitecia. O rapaz avistava as luzes fantasmagóricas com seu pisco inconstante pairando entre as névoas do brejo. As crianças – quando ainda viviam crianças e quando elas ainda dispunham de senso de aventura – desafiavam umas às outras a tacar pedrinhas no que consideravam aparições: as almas a que se referia a Ponte das Almas. Diziam que o melhor lugar para se mirar era uma borda do cemitério que se projetava sobre o rio pantanoso, bem atrás do mausoléu de uma família rica; e por uns meses o cemitério tinha se enchido de risos e gritaria pueril. Depois as Criaturas tinham se multiplicado e agora havia silêncio quase sempre – salvo durante os rompantes de loucura do coveiro Hector.

Oto enxergava a figura dele a distância, no fim da ponte, como um guardião cabriolante. Estava nu: a tez no amarelo da doença, encardida como couro, repleta de cicatrizes e feridas recém-abertas pelas Criaturas – ou por suas próprias unhas num surto de automutilação qualquer. A barba longa e desgrenhada, pegajosa, grudava-se-lhe no peito até os pelos pubianos. Comentavam que ele tinha pirado assim que seu trabalho tinha se tornado mais relevante que o das parteiras. Com tantos buracos a cavar e os caixões e mortalhas se avizinhando um após outro, Hector tinha começado a delirar, tinha passado a falar consigo mesmo, com as vozes dentro de sua cabeça, e aos fantasmas que ele jurava ver no brejo se somavam agora os que apareciam em meio às lápides. De nada tinha adiantado a intervenção do Dr. Ilusão, com suas drogas (que só tinham se prestado a agravar a insanidade do coveiro) e suas palavras (“Seus pretensos fantasmas são gases brilhosos, paspalho! Fogos-fátuos, expelidos a partir da decomposição de matéria orgânica, e toda gente sabe que nunca houve em Vilarrocha tanta matéria orgânica em decomposição quanto hoje”).

Oto torcia para que Hector não o importunasse em seu intento. Não queria ter de matá-lo, mas se fosse forçado a isso tampouco hesitaria. Acercou-se do coveiro sorrateiramente, para não sobressaltá-lo. O infeliz se entretinha balbuciando incoerências para o vento e mal reparou no rapaz que se esgueirava como uma sombra a seu lado. Oto prendia a respiração e conservava a mão boa dentro da bolsa em que levava os instrumentos e o livro; e entre os dedos: os contornos do cabo do estilete, se precisasse recorrer à violência para defender-se. E eis que, de repente, do nada, Hector uivou para as trevas, como se pressentisse a ameaça, como se pudesse ler a mente do outro, e o rapaz agarrou a arma e já ia cravá-la no pescoço de seu agressor maluco quando percebeu que ele não mais emitia só grunhidos ininteligíveis. Havia palavras em seus berros dissonantes. Frases. Profecias. Hector se metia a profetizar desgraças para ninguém em especial, ainda ignorante sobre a presença do recém-chegado no cemitério.

E o rapaz se afastou sem empecilho, a palma que segurava o estilete escorregadia de suor. Oto riu do susto. Riu das profecias. Elas falavam do futuro, mas Vilarrocha não tinha mais futuro; falavam de desgraças, mas em Vilarrocha elas já faziam parte da realidade presente. Retomou o fôlego e sacou a lâmpada-acendedora. Conhecia de cor o percurso até o túmulo de Helena, mas não devia expor-se ao risco de cometer enganos: se violasse o descanso de um morto qualquer, tinha certeza de que seria amaldiçoado – se é que já não o estava. Apenas Helena devia ser perturbada, ninguém mais, e para certificar-se ele verificaria o nome inscrito na lápide. Aproximou a luz da pedra:



Helena, de Oto e de si mesma.
Doce e querida companheira.
< 1813 – 1833 >



O coração do rapaz apertou. “De Oto e de si mesma” tinha sido ideia dele, uma maneira de distinguir sua Helena, tão forte e independente, tão senhora de si, num momento em que os sobrenomes tinham se perdido. Ao redor o escuro adensava: o céu era ébano imaculado, sem lua, sem estrelas. Oto se muniu de uma das pás do coveiro e cavou. Escancarou o caixão. E a contemplou. O rosto dela era cera, o cabelo definhava e poucos vermes desfilavam pela carne. Bom, bom – ou, pelo menos, não tão mau. A necromancia devolvia a essência da vida a um cadáver, mas não lhe restaurava o viço. Era recomendado aplicá-la somente em corpos ainda... frescos – e o de Helena estava.

Agora aos preparativos. Os necromantes definiam a vida como a antítese da não-vida. Viver se resumia em experimentar tudo que o mundo tinha a oferecer: era sentir com os sentidos – e algo mais. No livro de Oto, para simplificar a teoria chamavam esse “algo mais” de alma. E o princípio-guia da necromancia era o sacrifício: o necromante devia abdicar de todos seus sentidos em favor do renascido. Tudo simbólico, decerto: não se esperava que o necromante acabasse cego para o renascido recuperar a faculdade da visão. Mas se exigia que o sacrifício fosse custoso, para se demonstrar a seriedade do comprometimento. Na interpretação do rapaz, para que atingisse seu objetivo, cada ato de amputação devia ser deliberada e imensamente doloroso. E ao final restaria um último sacrifício: o do “algo mais”.

Oto carregou nos braços o cadáver de Helena até uma clareira no limiar do cemitério. Pousou-a sentada contra o tronco de uma árvore: desse jeito, Helena parecia estar só desacordada. A balbúrdia de Hector entoando suas predições continuava, mas agora longínqua. O rapaz ajuntou galhos secos no entorno de um segundo tronco e a seguir, tomando-o como centro, desenhou com a pá uma estrela de cinco pontas na terra fofa. Para terminar, ateou fogo à madeira com a lâmpada-acendedora. As chamas manteriam as Criaturas longe dali. Iniciou o primeiro sacrifício.

Paladar. Amarrou com firmeza um pedaço de trapo no antebraço, dificultando a circulação sanguínea. A veia azulada inflou na tez branca. Injetou a primeira seringa da Substância e aguardou uns minutos até o efeito se consumar. Não. Não era o suficiente: Oto tinha ficado grogue, mas ainda se sabia consciente demais. Mais uma seringa. Esperou... Pronto: agora achava que lograria aguentar. Pôs a língua boca afora, mordeu com vontade e espremeu-lhe a borda entre o indicador e polegar esquerdos. Estava bem presa. Empunhou o estilete na mão direita e começou a cortar. Tarefa minuciosa, desajeitada, repugnante, pois Oto salivava em excesso (a sede consistia numa das consequências da droga que tinha usado) e, à laceração preliminar, o sangue já tinha entrado a escorrer por entre seus dedos. Necessitou serrar o músculo milímetro por milímetro. Não sentiu nenhuma dor, apenas um leve formigamento. A anestesia tinha funcionado. Depositou a língua no solo, numa das pontas da estrela, enquanto o vermelho tingia-lhe os dentes e beiço.

Audição. Fixou o estilete abaixo da orelha direita e repetiu o procedimento até decepá-la, rompendo cartilagem e ossículos. Mas não era o bastante. Os autores de seu tomo de necromancia afirmavam que a fonte da audição se escondia dentro do crânio. A orelha meramente facilitava a captação de sons. Oto vasculhou sua bolsa à procura do bisturi e com a mão trêmula o ergueu à entrada do canal auricular. Hesitou: aquele também seria um trabalho lento e delicado. Se o executasse rápido como extrair o curativo de um ferimento, podia acabar enterrando fundo demais a lâmina. Inspirou alguma coragem. “Por Helena.” Foi-se a terceira seringa, e o bisturi penetrou o ouvido até encontrar resistência, pressionar mais e, enfim, rasgar e rasgar. O rapaz colocou a orelha numa segunda ponta da estrela, a face impassível, com o lado direito gotejando mais sangue.

Olfato. Dispensável. Os necromantes desconheciam como operava esse sentido, logo Oto nada tinha a sacrificar. Deu de ombros. “Tudo bem.” Uma das pontas da estrela restaria vazia, mas a verdade era que privar Helena do olfato equivaleria a prestar-lhe um favor: assim ela não teria de encarar a podridão que empestava o ar. Ao tato, então. Limpou o estilete na camisa e o conduziu à base do indicador esquerdo. Era preciso um corte raso e contínuo em torno do dedo, mas... tudo girava. O equilíbrio do rapaz já tinha se abalado quando ele tinha jogado a bengala a um canto, uma vez que necessitava de ambas as mãos livres. E agora a tonteira tinha piorado. Talvez tivesse algo a ver com o ouvido estraçalhado, porque Oto sentia dormência naquela parte da cabeça, que semelhava flutuar. Tratou de não vomitar e aplicou a quarta seringa, agora para concentração. Sentou-se no chão: o mundo ainda rodava, mas menos do que antes. Completou a incisão ao longo do indicador. E se pôs a raspar a pele com o estilete. E a puxar, admirando a carne viva aflorar com atenção clínica. Concluído o esfolamento, ajeitou a pele em seu devido lugar na estrela, à medida que o dedo latejava amigavelmente, como se mordiscado por um filhote. (Não podia ter simplesmente decepado o indicador, pois teria sido muito fácil, e o sacrifício não era para ser fácil.)

Visão. Quinta seringa. Oto pegou a colher e a estendeu ao calor da fogueira, após gatinhar até ela. O livro sugeria que se adotasse metal quente no procedimento seguinte, a fim de se encobrir as sensações mais desagradáveis. O rapaz riu desdenhoso ao se lembrar da recomendação. “Não pode ficar pior do que já está.” Aproximou a colher do olho esquerdo, e a quentura bafejou-lhe nos cílios. As pestanas insistiam em se fechar. “Frescura.” Abriu-as com o médio e o polegar, como alguém prestes a pingar colírio, e cerrou o olho direito, de sorte que a pupila dilatada do esquerdo só enxergasse aço ardente. Enfiou-o com cuidado entre a pálpebra e o glóbulo, e foi como se todo seu sangue entrasse em ebulição instantânea, mas Oto não parou. Agora gemia de nervoso, não de dor, mas não parou. Cutucou até partir os nervos que conectavam o olho ao crânio e, quando eles arrebentaram, um estampido ecoou em sua mente delirante. E depois: escuridão. O rapaz descerrou o olho direito e postou o esquerdo na estrela.

Para o último sacrifício, Oto rastejou até Helena e a tomou nos braços, se pondo de pé aos cambaleios. Entorpecia, a vista turvava. Caminhou aos tropeços para perto da árvore em chamas. Suava, e o suor se misturava ao sangue. O último sacrifício se referia ao “algo mais”. À alma. Era o maior e o mais importante deles: simbolizaria o comprometimento derradeiro. Se desse certo, o necromante e a renascida viveriam. “Por Helena.” Se não...

E por ela e com ela, Oto mergulhou no fogo.


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