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sábado, 16 de março de 2013

Marcado.

Por: Roberta Spindler.

O homem despertou no meio da madrugada com um grito angustiado. A escuridão o envolvia como um cobertor. Com a respiração entrecortada e um suor frio escorrendo pelo peito nu, ele sentou na cama e puxou a cordinha do abajur que se localizava no criado-mudo à esquerda. A luz fez seus olhos arderem e revelou uma cena assustadora. Seus lençóis e braços estavam cobertos por sangue, pegadas de lama cobriam o chão do pequeno quarto e um odor ferroso tomava conta do ar.
Ele se levantou num salto, olhando com pavor para as mãos avermelhadas. De onde tinha vindo todo aquele sangue? Correu até o banheiro e procurou por ferimentos no corpo. Não encontrou nada. Um arrepio de entendimento percorreu sua espinha. O sangue não era dele. Tremendo descontroladamente, ligou o chuveiro e se pôs a esfregar os braços e pernas. Tentava lembrar se algo estranho tinha acontecido antes de cair no sono, mas nada lhe vinha a mente. Tudo acontecera como de hábito. Chegou do trabalho, jantou um pão velho com cerveja, viu meia hora de um programa estúpido na televisão e foi dormir. Mais nada. Então, como? Não recordava de ter acordado no meio da noite, não recordava de ter recebido alguma visita...
Deixou o box e tratou de se secar. A pele estava ardida das constantes passadas da esponja para retirar o sangue. O medo ainda mantinha seu coração apertado, uma angústia que ele não conseguia explicar. Fitou-se no espelho, o rosto quadrado e anguloso, o nariz comprido e as sobrancelhas grossas. O cabelo estava um caos, apontando para todos os lados, e os olhos escuros tinham uma poça de vermelhidão ao seu redor. Parecia que levara uma surra e, para falar a verdade, era exatamente assim que se sentia. Foi então que viu a tatuagem.
A boca pendeu aberta, em choque. Localizada no lado esquerdo do peito, o rosto de um diabo sorridente o encarava com um misterioso olhar dourado. Sorria de maneira maliciosa, mostrando os dentes brancos e afiados, que constatavam com a pele vermelha escamosa. Assustado, o homem esfregou a figura com os dedos, na expectativa de que a tinta se desfizesse com seu toque. No entanto, o diabo continuou ali, encarando-o com ironia.

 Ficou analisando a tatuagem por um bom tempo, sem se lembrar de como a havia conseguido. Não costumava beber, não perdia o controle, por isso sentia-se perdido e apavorado no meio daquela situação inexplicável. Os olhos percorreram o chão de lajotas do quarto até avistarem uma faca com a lâmina coberta de sangue seco. Por um momento, ele parou de respirar. De onde tinha surgido aquela arma? Tremendo, apanhou o objeto e o escondeu na gaveta com tranca da escrivaninha. Não conseguiu dormir o restante das horas e, sentado na cama, observou o sol nascer pela janela quadrada de seu pequeno kitnet.
Mesmo se sentindo péssimo, arrumou-se como de costume e foi trabalhar na manhã seguinte. Precisava do dinheiro para sair daquela vizinhança mal falada. No escritório, porém, passou o dia sem conseguir se concentrar. Seu desconforto só aumentou quando um colega trouxe um jornal debaixo do braço e lhe mostrou a matéria que estava repercutindo. Uma jovem foi achada morta nas redondezas do bairro do homem. O mais assustador no crime era como ela havia sido assassinada. Levou ao todo treze facadas e teve os olhos e a língua arrancados.
 — É coisa de um monstro, Gustavo. Um horror e tão perto da tua casa. Toma cuidado, cara!
Ele, porém, mal ouviu os avisos. Toda sua atenção estava focada na faca que tinha encontrado no chão de casa. Uma faca coberta de sangue, talvez o sangue daquela pobre mulher. O diabo em seu peito começou a arder de maneira incômoda.
Deixou o trabalho mais cedo, alegando um mal-estar súbito. Caminhava com passos apressados, ainda procurando explicações para a noite anterior, quando ouviu uma voz feminina chamar por seu nome. Estancou de imediato e se virou na direção do som. A mulher sorria, encostada na porta de um estúdio de tatuagens. Pelos incontáveis desenhos espalhados pelo corpo dela, Gustavo presumiu que era funcionaria ou cliente do lugar. O mais importante, porém, era que ela o conhecia. E ele não fazia ideia de quem a estranha poderia ser.
— E então, se sente melhor hoje? — ela perguntou, ainda sorridente.
De maneira inconsciente, ele pousou a mão sobre o diabo em seu peito.
— Eu te conheço?
A mulher alargou o sorriso.
— É claro que conhece. Como está nosso amiguinho chifrudo? Dolorido ainda?
Gustavo não conseguiu esconder o alarme, o que fez com que a mulher se divertisse ainda mais com sua cara.
— Pode retirar? Eu não quero essa coisa em mim — ele falou apressado.
— Eu disse para você pensar bem sobre qual desenho queria. Você escolheu aquele diabo — ela cruzou os braços, revelando belos desenhos de rosas que iam até seus pulsos. — Agora não posso fazer nada. Desculpe, Gustavo.
Ele foi embora sem se despedir. Ao chegar em casa nem jantou. Engoliu a seco dois comprimidos para dormir e se jogou na cama, desejando que quando acordasse tudo fosse diferente, que a faca escondida na gaveta tivesse desaparecido junto com aquele maldito diabo sorridente gravado em sua pele. Quando voltou a si, porém, encontrou novamente sangue nas roupas e lençóis. A arma agora descansava sobre seu colchão, manchada de vermelho.
O desespero abraçou Gustavo. Sem pensar, jogou a faca pela janela e se enfurnou no banheiro. Em meio à lágrimas, retirou a sujeira que cobria seu corpo. Fitou o diabo e sentiu um arrepio. Parecia-lhe que podia ouvir uma voz sussurrando nas profundezas de sua mente. Pensou seriamente em procurar a polícia, mas acabou mudando de ideia. O que diria a eles? Que acordava toda a noite coberto por sangue e sem nenhuma lembrança do que tinha acontecido? Que havia uma sinistra tatuagem em seu peito que ardia como uma queimadura? Não, nenhum policial iria acreditar nas suas palavras, nos seus apelos.
Abriu a geladeira para beber um pouco de água, mas quase deu um grito de horror. No congelador, junto com um pedaço de queijo mofado, estava um saco com pedaços sangrentos. Não precisou tocar naquilo para saber o que eram. Dedos e línguas. Ao longe, jurou ouvir uma risada. Olhou para os lados, mas não encontrou mais nada senão penumbra.
Alucinado com a culpa e a dúvida, decidiu ir até uma clínica para retirar aquela marca maldita. No entanto, quando recebeu o valor que o procedimento iria lhe custar, viu que seu plano era inviável. Voltou ao trabalho só para ficar sabendo que mais uma mulher havia morrido, o crime tinha as exatas características do anterior. Estremeceu e correu para o banheiro, evitando as conversas e teorias de seus colegas de escritório. Vomitou e chorou, repetindo para si mesmo que não era nenhum assassino.
Infelizmente, a cada noite o mesmo processo macabro se repetia. Ele tentou se amarrar na cama, não dormir, procurar um hotel, mas toda a vez que o cansaço o vencia, acordava de volta em seu kitnet, coberto por sangue, com a faca que sempre retornava na mão e mais partes humanas estocadas no seu congelador.
Os assassinatos eram destaque em jornais e programas de televisão. Todos queriam descobrir quem era o monstro que matava mulheres indefesas na calada da noite. Num ataque de pavor, Gustavo apanhou a arma do crime e correu até o banheiro. Sabia que tudo o que estava lhe acontecendo tinha relação com aquela tatuagem em seu peito. Sabia que precisava retirá-la dali antes que perdesse o que lhe restava de sanidade.
Arrancou a pele em meio a gemidos abafados por uma camisa que enfiou na boca. O sangue caía em cascata no piso do banheiro, mas ele nem ligou. Jogou a cara amassada do diabo na pia e tocou fogo com um fósforo. O cheiro de queimado tomou suas narinas, causando uma sensação de alívio. Deu uma risada histérica. Estava livre, finalmente. Os olhos giraram e desmaiou com um sorriso de triunfo nos lábios.
Acordou com a polícia transformando sua porta em entulho. Armas foram apontadas para sua cabeça enquanto homens gritavam para que ficasse quieto. Descobriam o sangue e os restos na geladeira. Ele tentou argumentar, mas sua voz se calou quando viu que o diabo estava de volta em seu peito, mais sorridente do que nunca. Gritou e tentou correr, fugir para longe de todo aquele pesadelo. Os tiros o atingiram nas costas, levando-o ao chão. Sentiu a vida escorregar por entre seus dedos e morreu ouvindo risadas macabras. Sua última visão foi a mulher tatuada queimando uma foto sua na chama de uma vela vermelha.

Contatos com a autora e informações sobre sua obra 'Contos de Meigan' através de:

Twitter: @robertaspindler

7 comentários:

  1. Nossa, Roberta, senti até arrepios lendo o conto e olha que isso comigo não é fácil, porque leio e vejo muito terror. Adorei a escrita, os detalhes e a sua ideia foi simples e aterrorizante. Gosto muito quando coisas simples se transformam em algo macabro. Foi uma leitura fantástica! =)

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    1. Obrigada, Karen! Fico feliz que tenha curtido o conto. Se causou arrepios, então meu trabalho foi um sucesso! =)
      Beijos!

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  2. ROBEEEEEEEEEEEERTAAAAAAAAAA,
    mana... QUE CONTO!
    Fiquei arrepiada na parte em que ele tira a tattoo à faca, medinho.
    Não sou autoridade em avaliar contos (rsrsrsrs) mas gostei bastante! parabéns =D

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    1. Obrigada, Ju!! Essa parte que ele arranca a tatuagem era para arrepiar mesmo rsrs. Que bom que gostou! Bjs!

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  3. Caramba Roberta, estou emudecido e, acredite, não é muito fácil me deixar perplexo ao ponto de perder as palavras.

    Ainda agora busco algum adjetivo digno o suficiente para a realidade do conto em questão e, não sei se você já jogou Guitar Hero, mas... YOU ROCK! Sério, você conseguiu passar com louvor tudo e fazer com que imerjamos contra vontade na vida desse pobre amaldiçoado. Vou além e afirmo que é inevitável sentir muito pelo destino do homem, mas que sem dúvidas concordo que a estória tinha de acabar desta forma.

    Meus parabéns!
    Já disse que sou seu fã? Pois é, EU SOU!

    E como há braços, abraços.
    Caleb Henrique - Viajante Literário

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    1. Ah Caleb, obrigada! =) Suas belas palavras me deixam muito contente!
      É verdade, o conto não podia terminar de outra forma, afinal estamos falando de terror, né. =P

      Obrigada pelo comentário.

      Bjs

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  4. Narrativa sensacional, Roberta! A premissa me lembrou um pouco o livro O Pacto, do Joe Hill, onde o personagem principal acorda certo dia e descobre que virou o Diabo. Gostei da porção gore do seu conto, embora eu fosse aproveitar um pouco mais se tivesse mais sangue espirrando hahaha

    Enfim, tenho trabalhado esses dias em dois contos de terror. Quem sabe eu lhe peça umas dicas =D

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