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sábado, 30 de março de 2013

Sangue de Gladiador

Por: Hermínio Neto

O cheiro inebriante de sangue é um tormento nos momentos finais do duelo. Enquanto os ferros se incendeiam a cada encontro violento e a multidão de plebeus furiosos urra desejando ardentemente mais e mais mortes desde a manhã em que o primeiro torso foi atravessado por um gládio, eu me contorço de fome e desejo.

Aperto meus rosto contra a grade grossa e enferrujada do corredor que leva até a arena, tentando prever o resultado da batalha pelos espaços losangulares. Todos os cadáveres de gladiadores mortos durante o dia já foram recolhidos, e o sangue deles, sugado pela areia, está perdido para mim, mas agora, no ocaso arroxeado, sei que conseguirei capturar minha presa.


Rufina e Porcius, meus escravos imprestáveis, se agarram em minha túnica com suas mãos sebentas e encrostadas de imundície e merda, por medo dos tigres e ursos nas jaulas que margeiam o corredor. Mal sabem eles que sou muito mais perigosa que qualquer dessas feras, que se encolhem com um simples olhar de minha íris amarelada, e que os desmembraria aqui mesmo se não precisasse momentaneamente de seus braços para me servir. Os dois malditos asnos de carga se urinam de medo e o odor de seus dejetos turva meu olfato que estava concentrado no sangue da arena.

Finalmente o gigantesco thræx derruba o dimachærus com um golpe de sua falx que atravessa a barriga de seu oponente, derramando suas tripas ensanguentadas para fora das gorduras e músculos que as prendiam ali.

O pavoroso gigante, com elmo que cobre todo o seu rosto, dando-lhe um ar ainda mais pavoroso no cair da noite, circunda como um lobo a sua vítima que agoniza em violentos estertores, pisa-lhe o pescoço, vira-se para o prætor, financiador deste festival, e recebe sem demora o sinal para a execução. Desce a pesada lâmina sobre a garganta daquele que um dia fora um glorioso vencedor de muitos jogos, e separa a cabeça do corpo, mas os olhos do moribundo continuam a se revirar e ele ainda espuma saliva sangrenta tentando balbuciar algo que ninguém nunca ouvirá.

Quando o thræx suspende para o alto a cabeça do perdedor como um troféu, percebo que a fonte turbilhonante de sangue que sai do pescoço decepado está enfraquecendo, então cravo minhas mãos no teto de pedra da masmorra que dá acesso à arena, agarro a grade com minhas garras negras e brilhantes como obsidiana de meus pés, e suspendo aquela montanha de ferro rangente.

Plano velozmente acima da areia vermelha até o corpo do dimachærus, enquanto os escravos correm com as ânforas e odres na mesma direção. Sugo vorazmente o último delicioso jato cor de vinho que seu coração ainda ejacula pela enorme ferida, sem me importar com a multidão berrando como um coro de mênades lunáticas em comemoração à vitória surpreendente. Os jovens escravos, já contaminados pela minha nefasta influência, sugam avidamente os cortes nos braços do defunto buscando o pouco sangue que ainda corre ali.

Nós só então arrastamos o cadáver para a masmorra cheia de feras de onde viemos, deixando um rastro vermelho e parte do precioso hidromel da morte embotando a lama da arena. Os tigres ficam ainda mais agitados com o odor do cadáver. Despimos rapidamente o corpo para aproveitar o lucro que as preciosas armaduras, armas e vestes de um antigo campeão podem me dar em breve.

Aproveito a ferida que extripou o gladiador e a escavo com meu pé de coruja até arrancar seu fígado. Saboreio o sangue de gosto especialmente delicioso que o irriga e guardo o resto, quase seco e gosmento pela bile, em um odre. Meus servos, espantosamente fortes para dois pirralhos, suspendem o gladiador parrudo e rechonchudo pelos pés, sobre umas ânforas de alabastro e, sacudindo o corpo, recolhem o sangue que ainda escorre da degola e das tripas. É deprimente que um guerreiro de grande fama acabe assim, com as bolas e as tripas sacudidas por dois escravos nojentos e estúpidos, só para matar minha fome, mas é o que me resta.

Ouço um gemido de pavor e me viro. A criança que nos olha, trêmula e chorosa, poderia ser tomada por um nobre por suas ricas vestes de linho, não fosse o colar com um retalho de couro onde se lê o nome do prætor e um anel de ferro no pulso por onde o acorrentam à noite. Ele me entrega uma tira de pergaminho e eu o enxoto antes que o desejo pelo seu sangue jovem se torne forte demais, e ele corre como se visse a verdadeira face de minh’alma.

POLYPHONTE.MALDICTA.SEIAS.MAIS.DISCRETA.ET.STEIA.EM.MEV.PALA-TIUM.ESTA.NOCTE.CONFORME.COMBINADO.MINHA.SPOSA.SPERA.ANSIOSA

O anão esnobe pensa que pode me repreender! Tolo! Eu poderia destroçar ele e todos aqueles filhos catarrentos dele em um instante! Ele realmente ainda põe fé nos humanos como ele e pensa que eles poderiam ter se horrorizado com o que fiz na arena depois de passarem um dia inteiro vendo queimarem fiéis da seita nova de judeus, tigres e ursos devorando criminosos, e gladiadores causando degolas e eviscerações? Mesmo assim preciso do dinheiro daquela gorda com cara de placenta podre de elefante, tenho planos para meu futuro despertar.

Antes, porém, preciso ocupar a tenda no mercado que aluguei antes que algum gatuno se aproveite do vazio. Trocamos de roupa para não sairmos banhados em sangue nem atraírmos moscas, e largamos o cadáver, já totalmente drenado, com os escravos do circus. Não que eu me importe se ele tem família que queira enterrá-lo, mas não quero receber mais nenhuma carta desaforada do verme desprezível que pensa que manda nessa cidade, quando mal sabe que é manipulado por tantas criaturas da noite, da minha linhagem e de outras.

Chagamos na tenda e arrumamos os produtos. Meus olhos finalmente param de doer, pois a noite está plena e não há mais nem um traço da maldita luz solar que os fere tanto. Antes que os clientes cheguem, separo um frasco para vender para Laurentia mais tarde. Meu contato no mercado negro recolhe rapidamente a armadura do gladiador, me livrando do risco.

Ainda me impressiono com o fato de tantas damas da alta sociedade de Feroniæ me procurarem na tenda em busca de sangue ou de nacos do fígado daquele gordo infeliz. São tão supersticiosas que pensam que podem transformar esses restos cadavéricos em cosméticos para prender magicamente seus maridos, e ainda pensam que podem desprezar os antigos Punici por eles serem exageradamente superticiosos, mas não percebem que são meros canibais.

Eu digo, com a certeza de quem já viajou, nesses últimos séculos, começando pela Grécia, passando por Carthago e ficando longas décadas na Gália, que nenhum povo chegou a ser mais sádico e monstruoso do que os pretensos civilizados romanos, com suas guerras eternas e seus espetáculos de extrema violência e crueldade. Nem mesmo os gregos com seus criminosos assando dentro de touros de bronze, nem os cartagineses carbonizando seus bebês dentro da boca de Moloch, nem os gauleses com seus homens de palha, nada supera os romanos cruxificadores e mutiladores. E exatamente por isso minhas filhas, as medonhas Stryxii, escolheram estas terras para se fixar e espalhar o terror, dilacerando e devorando as crianças dese reino maldito que merece ser engolido pelas chamas do Tártaro.

Mais desprezíveis ainda são os velhos impotentes que me procuram em busca de suor, sangue e até mesmo esperma dos gladiadores, pensando que poderão voltar a meter em suas esposas que já há muito tempo se afogam em orgias com escravos e até os próprios gladiadores que, por ironia do destino, também exalam porra para vender aos maridos cornos dessas lobas.

Falando nisso, tenho que recolher minhas coisas e me dirigir ao palácio de Maximianus. Destransformo meus pés de coruja, me lavo e perfumo, de forma a estar mais apresentável.

Chegando lá, os guardas permitem minha entrada mediante apresentação de uma carta com a marca do sinete do prætor em cera vermelha. Sou observada pelo busto narigudo de mármore do nanico enquanto espero minha cliente, que ao chegar, não me agrada mais as vistas do que faria uma montanha de esterco gosmento de crocodilo do Nilo.

Trocamos longos cumprimentos tão falsos quanto a virilidade e potência de seu marido, e então partimos para as negociações. Ela exige que eu descreva o corpo nu e degolado de onde se originou a mercadoria, principalmente seu membro viril já frio e cinzento pela perda excessiva de fluidos, e só então suga e lambe em êxtase o frasco de sangue, que parece deixá-la estafada e com vertigens, como quem desfruta de um potente orgasmo.

Ela me paga com uma quantidade fabulosa de jóias de estilo oriental, provavelmente nabateu, e então me pede que fique para um novo serviço quando eu já me preparava para sair.

Quando pensei que a depravação dessa espécie nojenta não poderia ser maior, ela ordena que seus guardas arrastem até ela o thræx, que era escravo do seu marido, lanista muito antes de obter escusamente o cargo de prætor, e ele ainda estava imundo de sangue, suor e areia grudada no corpo, para começar novo espetáculo de devassidão e selvageria.

O rosto do gigante gladiador causa ainda mais medo sem seu elmo fechado brilhando ao luar, suas cicatrizes me fazem pensar em como ele teria sobrevivido a tantos ferimentos. Laurentia ordena que o guerreiro se dispa e deite para que ela cavalgue sua enorme espada, o que deixa Rufina fazendo juz ao seu nome de tanto pudor. Ao receber o sêmem da criatura brutal, ela retira uma adaga do cinto e rasga as vísceras do pobre escravo que mal pôde aproveitar a glória de ter derrotado um dos maiores campeões de Feroniæ, e faz uma tentativa pífia de estrangular sua assassina antes de se contorcer e morrer em meio à sujeira e fluidos.

Laurentia se levanta de cima do cadáver, arruma as roupas, sorri como se fosse tudo perfeitamente natural e cotidiano, e exige que eu transforme o fígado do gigante em cosméticos afrodisíacos, então ela me pagaria o dobro das jóias que já havia me dado.

O cheiro do poderoso sangue do lutador hercúleo não me deixa raciocinar, eu apenas avanço para ele e enfio a mão no ferimento. É então que o estouvado e linguarudo Porcius assina sua sentença de morte ao me perguntar em alto e bom som:

- A Senhora não acha mais fácil tirar o fígado dele com seus pés de Strix como fez antes?

Percebo que Laurentia e os soldados ficam lívidos de medo, então agarro os dois escravos pela gola e voo pela janela com moldura de granito negro para fora dos muros da cidade.

Porcius se debate implorando por sua vida e sua irmã agarra meu outro braço gritando e chorando desesperada, e não consegue me demover mesmo que meus fluidos tenham feito com que eles se tornassem mais fortes que o gigante prostituído e morto há instantes.

O reflexo nos olhos aterrorizados de Porcius mostra minha verdadeira natureza, a aparência da minha alma macabra, conforme eu assumo a forma a qual fui amaldiçoada a ter. Vejo surgirem ali dois enorrmes olhos cor de âmbar, um corpo imenso de coruja marrom, asas negras de morcego, quatro patas de rapina com potentes garras afiadas e brilhantes que agora esmagam os escravos contra o chão, e um longo bico sorvedor.

Cravo meu bico letal no fundo do coração de Porcius, que morre imediatamente, e eu deliro com o cheiro e o sabor de deu sangue delicioso, sugado através do bico, ressaltado em seu aroma pelos sentidos aguçados de minha forma animalesca. No meio do êxtase do canibalismo da carne do mancebo inocente, deixo Rufina escapar sem perceber. Ela se agarra a minha asa e bate em minha cabeça com uma pedra, mas sequer consegue me arranhar.

Decido, pela ousadia de agredir sua possuidora, que não permitirei que ela tenha uma morte rápida como a do irmão. Com um movimento violento da minha asa direita ela é lançada contra uma árvore, eu voo sobre ela, agarro cada um de seus membros com uma de minhas patas e arranco lentamente seus braços e pernas, enquanto ela urra e se debate, seu sangue perfumado espirra aos cântaros sobre minhas penas, o que me excita ainda mais, e eu aproveito seu resto de consciência para mutilar seu rosto e seus seios intocados e revolver suas vísceras, para lhe dar o último merecido castigo.

Devoro os fígados desnutridos dos dois jovens defuntos e finalmente o abismo famélico em minhas entranhas amaldiçoadas é saciado. Vem-me o torpor aliviante e libertador do meu espírito maldito, e eu me escondo no fundo de um grande ôco de uma árvore podre até a próxima lua nova, quando a fome voltará a me atormentar com dor lancinante, me forçando a destruir mais um quinhão dessas criaturas tão degeneradas quanto o meu âmago.

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