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domingo, 10 de março de 2013

Moeda de três lados



Gonzáles estava preso por cordas, sentado, a um grosso carvalho. Foi posto ali pelos seus dois irmãos mais velhos.

—Malditos traidores! Confiei em vocês, ajudei-os e agora me pagam desta maneira! – praguejou, mesmo sabendo que os seus irmãos já deviam estar a quilômetros dali.

—Já devem estar se deliciando com o meu vinho agora – pensou.

Aquela terra era amaldiçoada e ao cair da noite qualquer criatura sensata sequer pensaria nela, pois diziam que aqueles que eram tolos o suficiente para isso, amanheciam mortos, consumidos por um pesadelo atroz.

O poço a sua frente era o cerne da mácula, o refúgio dos três demônios que outrora foram reis sonhadores e bondosos, mas que degeneraram, embriagados pelo poder e ganância, até o ponto em que começaram a apodrecer ainda vivos e foram condenados a assombrar qualquer ser vivo que se aproximasse assim que a lua beijasse a terra.

Neve caia, fazendo a paisagem ficar predominantemente branca e Gonzáles tiritar, visto que suas vestes eram de um tecido vagabundo que não aquecia. Não dava mais para ver o preto de seus cabelos e barba.

Começou a rezar para que o frio o levasse para o outro lado antes que os demônios despertassem, mas o seu desejo foi frustrado ao escutar um bramido que fez todo o local tremer diante da emanação venenosa daquele som tétrico.

Não demorou a ouvir o som de algo raspando a pedra do poço, eles deviam estar subindo, sedentos pela sua carne e sangue que lhes aquecia um pouco os corações de gelo.

Gonzáles tentou ignorar o que os seus ouvidos captavam, mas não tinha como bloquear a agonia de imaginar as garras, que agora arranhavam pedras frias, abrindo o seu corpo.

Primeiro viu as mãos das criaturas na borda do poço, elas possuíam grandes garras da mesma cor que suas peles, cinzas, o que dava a impressão de que na verdade os seus dedos se prolongavam até ficarem agudos como agulhas.

Os corpos magérrimos não diminua o poder de intimidação delas.

As línguas, anormalmente grandes, se moviam fora da boca descontroladamente e às vezes lambiam os inúmeros dentes pontudos e sujos, fazendo saliva escorrer pelos seus queixos. Quando a neve entrava em contato com o cuspe, enegrecia, tornando aqueles minúsculos pedaços de terra estéreis. Sequer capim iria crescer.

Elas não articulavam sons além de gemidos, chiados e o que talvez fosse algum idioma próprio de sua espécie.

Lentamente, elas chegaram ao lado de Gonzáles. Como sabiam que a sua presa não poderia escapar, deliciavam-se com movimentos lentos, ora lambendo o rosto dele, ora tocando-o com as suas garras afiadas.

Para evitar que as coisas tivessem ainda mais prazer ao enxergarem o medo em seus olhos, Gonzáles os fechou. Entretanto, foi uma tentativa vã, uma vez que uma delas lhe cortou as pálpebras, forçando-o a testemunhar todo o horror.

Uma das abominações o encarou de tão perto, quase o beijando, e disse claramente:

Id e Superego (1), abandonaram você, Gonzáles? Teme os teus demônios? Iremos te consumir em pequenas porções, caso insista em manter a esperança, e quando achar que vai morrer, cuidaremos de teus ferimentos para que viva um pouco mais e possa sentir mais dor no dia seguinte! Ego, desista, ceda, se você contribuir com as nossas intenções, acabaremos com a tua dor!

Com o coração acelerado e a visão embaçada pelo sangue, respondeu:

—Sim, eu cedo! Eu cedo! Acabem logo com isto!

**

Do alto do prédio em que trabalhava como advogado, Gonzáles abraçou os seus demônios e mergulhou no vazio. Quando a sua cabeça chocou-se contra o chão da calçada, o crânio partiu-se igual uma melancia. Dormiu pela eternidade, sem dor.


[1] Fonte elucidativa sobre a estrutura do aparelho psíquico – modelo proposto por Sigmund Freud (Id, Ego e Superego): http://www.brasilescola.com/psicologia/o-aparelho-psiquico.htm

2 comentários:

  1. Quando somos abandonados pelo id, que é o princípio do prazer, e pelo superego, que é a fonte dos sentimentos de culpa e medo de punição, o ego, onde os desejos da realidade são reprimido de consquências indesejáveis, fica completamente perdido. Acho que foi o que aconteceu com o seu personagem. Se for realmente isso que você tentou mostrar, conseguiu. Parabéns. Se entendi errado, me perdoe.
    Abraços,
    Ana Luisa

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    1. Sim, Ana, foi precisamente isto que ocorreu com o meu personagem. Fico feliz em saber que o texto conseguir ser claro. Agradeço a sua constante presença por aqui.
      Abraços!

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