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quinta-feira, 14 de março de 2013

Limites


Qualquer um, independente de como as use, sabe que há algo de maligno e corrosivo nas estradas (e no mundo). Principalmente, naquelas que seguem em linha reta, cruzando várias vidas e lugares diferentes e, assim, permitindo que homens e mulheres em seus veículos esqueçam-se daquele conceito antiquado e pueril chamado de “limite de velocidade”.
Contudo, Rodney não era assim. Trabalhando como motorista há dezesseis anos, aprendeu a respeitar o próximo (carro ou caminhão) e ter paciência (com os idiotas). A vida é importante e, se levar duas horas para fazer um trajeto que, normalmente, se varia em vinte e cinco minutos, qual o problema? Ele era uma pessoa que tinha bons motivos para não se incomodar com uma coisa pequena (e de gente pequena) como essa e o tempo (parado) poderia ser usado para algo construtivo e válido...

...Como enigmas.

No carro pessoal de Rodney, você os encontraria às dezenas, mas, no da empresa, ele carregava apenas um – um de 420 páginas. Enigmas, fossem eles lógicos, matemáticos ou sensoriais, eram o que separava os homens dos meninos (selvagens), na concepção dele. E era um hobby para qualquer hora e lugar, com toda a certeza. Mas a maioria das pessoas que realmente aprecia esse tipo de atividade precisa, às vezes, de algum tempo para solucionar os mais complexos.

Rodney terminava um livro do “Nível: Gênio do Mal” de cem páginas em oito minutos.

Era um prodígio. E nem se dava conta disso. Afinal, para ele, era natural... Se alguém reparasse nisso, entretanto, era mais provável que acompanhasse a história da vida e das habilidades de Rodney em um programa televisivo de domingo, com toda a dramaticidade requerida – e os acontecimentos das próximas horas poderiam nunca vir a acontecer. Provavelmente, ele ficaria muito popular e muitos usariam sua origem pobre no sertão para desmitificar ou exagerar fatos. Tanto faz.

Entretanto, em resumo, para ele, os enigmas eram não só um desafio mental: eram narrativas, eram lendas e, principalmente, eram como os deuses deviam se comunicar entre si. Na cabeça de Rodney, ele estava apenas fazendo algo mundano, feito por pessoas para outras pessoas – e ignorava que, certamente, as primeiras pessoas eram matemáticos ou físicos com muito tempo e computadores para criar os “quebra-cabeças” que ele terminava em instantes.

Afinal, Rodney era um bom rapaz. E humilde em um nível tão ilimitado quanto sua capacidade. Portanto, nunca se daria conta – ou usufrutuaria – de sua dádiva.

Até hoje.

Como afirmado anteriormente, o trânsito em lugares tão cheios de pessoas (más, hedonistas e mal intencionadas) é algo complicado e estressante... Algo que pode estragar o dia do melhor dos homens em poucos minutos...

Do melhor dos homens... Ou da melhor das crianças.

Quando aconteceu, Rodney estava terminando o último desafio do almanaque. Com isso, foi obrigado a voltar seus olhos para a estrada. A interestadual estava repleta de veículos de tamanhos e cores diferentes e totalmente inertes – como as peças de um jogo esperando para, finalmente, serem utilizadas. Os últimos cinquenta e seis minutos foram assim, com alguns lentos e indiferentes avanços.

Até que alguém achou que era melhor (um lixo melhor) do que todos os outros motoristas.

Para variar, o carro era de origem europeia e, para ressaltar a riqueza (de imoralidades) do proprietário, só possuía dois assentos sob o teto conversível. Vindo não se sabe de onde, começou a avançar pelo acostamento como se fosse o próprio Vin Diesel. Como se não houvesse amanhã. Como se sua necessidade fosse tão valiosa quanto seu carro.

Como se não houvesse, porventura, alguém parado no acostamento.

Micael tinha aproveitado a saída da escola e o trânsito lento para, com suas perninhas curtas, correr até o outro lado e comprar alguns doces de banana. Sua mamãe adorava doces de banana, e ele tinha encontrado dois reais em sua mochila, mais cedo. Era uma forma de agradecer pela roupa nova, uma pequena camisa polo destacando seu herói favorito, o Homem-Aranha – e era nova de verdade, não doada por alguém que já não tinha mais uso para ela, como acontecia com mais frequência! Estava feliz demais com isso! E já estava voltando, contente com seu ato, quando o impacto ocorreu.

Na cabeça de Rodney, algo girou mais rapidamente e se encaixou com outro, como nas engrenagens de uma máquina.

Poucos metros a sua frente, um borrão prateado gerou um borrão vermelho ao atingi-lo a 352m/s.

O borrão prateado não reduziu a velocidade ao avistar um obstáculo pequeno e sorridente.

O borrão vermelho – pesando, originalmente, 48 quilogramas – foi lançando ao ar com 2/3 da velocidade do borrão prateado.

Nas imediações, o mundo se reduziu ao som de um único motor e, em 2min33s, ao último suspiro do borrão vermelho.

Em 2m34s, o borrão vermelho já não era um borrão. Parte do rosto jamais seria reconhecido e alguns membros estavam em ângulos impossíveis – um dos antebraços formava 143º em relação ao cotovelo –, mas, curiosamente, o par de tênis pretos e muito usados estavam intactos, ainda no ponto original do impacto.

Micael conseguirá entregar os doces à sua mãe?



SOLUCIONE ESSE ENIGMA





















Não há solução.

E isso despertou algo que, antes, era só um jeito de uma mente poderosa demais para este mundo encontrar uma válvula de escape.

O supracitado borrão prateado parou logo após o impacto original. E quem relatou a cena, posteriormente, sugeriu que o proprietário estava mais preocupado em detectar avarias no próprio carro do que prestar socorro. Fato comprovado logo em seguida quando, aparentemente, tentou deixar o local.

Tentou.

Afinal, é muito difícil acelerar novamente um carro quando um simples olhar pode erguê-lo do chão.

E é difícil respirar quando uma pressão comparável à das fossas das Marianas começa a se precipitar sobre você, após ser arrancado por uma força invisível através do teto conversível do seu importado europeu.

(O seguro nunca vai cobrir isso, vai?)

Assim, quando seus órgãos internos e fluidos começam ser expelidos por todos os orifícios existentes ou não no seu organismo (afetado por uma pressão de oito toneladas por metro quadrado), é necessário uma concentração incrível ou um desprendimento inumano para reparar no homem de baixa estatura, mas de traços fortes, locomovendo-se acima de todos os veículos parados.

Se você reparar nisso, vai reparar que o homem está chorando, mas que seus olhos são, agora, incandescentes.

Brilhando com fúria ilimitada.

Porém, é preciso estar olhando para o lugar certo – com em um enigma visual – para reparar nisso enquanto é esmagado contra o asfalto com a mesma intensidade que envolveria placas tectônicas.

Isso tudo, claro, é hipotético: a dor gerada por tamanha força – enquanto a mesma força lhe mantém vivo, aliás – nublaria todos os sentidos de forma irreversível. Dor tamanha que não pode ser quantificada ou explicada – é a dor que os deuses deviam causar entre si.

Uma dor sem solução.

Sem limites.







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