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domingo, 31 de março de 2013

O homem feito de névoa


Dedico este conto especialmente à Rita Souza, uma jovem amiga com grande potencial, e todos aqueles que, mesmo com o escuro intimidando, lutam! 

“I am a man who walks alone and when I'm walking in a dark road at night or strolling through the park, when the light begins to change, I sometimes feel a little strange, a little anxious when it's dark.” [1]
—Iron Maiden, Fear of the Dark. 

Meses depois daquela experiência intensa e que até hoje não sei como explicar, estou em uma livraria lançando o meu novo best-seller “O Homem Feito de Névoa”. Evidentemente, ocultei a verdade do que me ocorreu. Para a polícia, disse apenas que um homem encapuzado invadiu a cabana, os ferimentos em meu corpo e a investigação completaram o resto do quadro. Lembro-me que há alguns dias li em um jornal o caso de um escritor chamado Paul Sheldon que foi mantido em cativeiro por uma mulher que se dizia a sua fã número um. Mundo estranho este, não acham? 

Decidi me livrar de todas as fotos de Kathelyn, pois aprendi que ela estaria para sempre no lugar mais importante – em meu coração. Sinto a ausência do calor dela em nossa cama, que ainda não consegui dividir com outra mulher, apesar das admiradoras que constantemente aparecem – meus cabelos grisalhos são charmosos, o que posso fazer? – Entre tantos fãs, sinto-me novamente conectado a algo maior do que eu mesmo. Renovei um de meus propósitos: fazer pessoas sonharem ou terem pesadelos, depende do que você classificar como prazer. 

Entre um autógrafo e outro, eu o vi com o seu corpo gasoso encarando-me da frente da livraria, durante alguns minutos. Por incrível que pareça, não me senti em perigo. Sabia que tínhamos nos “reconciliado”, estabelecido um ponto de equilíbrio. 

—Olá, vim somente ver como você está... – pude ouvir o pensamento dele. 

—...classe – por desatenção, ignorei uma leitora. 

—Desculpe-me, o que você disse? 

—Que você escreve com muita classe! Gosto de suas histórias. 

—Muito obrigado pelo elogio, sinto-me abençoado por ter leitores tão amáveis. 

O terror tornou-me demasiadamente humano, manteve-me são, foi o que conclui ao deitar-me naquela noite.

**

O meu período de isolamento chegou à segunda semana – frustrando as minhas expectativas de ser vítima de um mal súbito. Sobre a única mesa da cabana, o calendário que trouxe repousa ao lado de uma caneta vermelha de tinta espessa com que faço grandes “X” a cada dia vencido. Afinal, está sendo árduo o caminho de superação. 

Sentado na cadeira de balanço que coloquei na varanda, olho para a foto de minha esposa, fantasiada como uma Cowgirl, antes de ser presa nas garras da leucemia e começar a definhar aos trinta e cinco anos – terna Kathelyn, seus cabelos cintilavam como o ouro, a pele era branca e macia, os olhos azuis me conquistaram no primeiro encontro e o sorriso agia em meu ânimo como o frescor de uma brisa no verão. 

Foram oito meses que pareceram uma eternidade – ao relembrar, meus olhos marejam. Depois de sua morte, perdi completamente a vontade de viver – viúvo aos quarenta anos. Continuo respirando por um motivo que sequer compreendo, talvez ele nem exista. Não é receio em cometer o suicídio, visto que não acredito em um homenzinho que nos observa das nuvens. 

Não tenho sequer um familiar, então tudo ecoa ainda mais forte em mim. Ela era a única pessoa com quem podia compartilhar sinceramente todos os meus demônios – que não eram poucos, confesso. Desde a adolescência invisto na carreira de escritor, o que me sustenta financeiramente. Acredito que isto também me impede de enfiar uma bala na cabeça, seja minha ou de outra pessoa. Todavia, a fonte parece ter secado. Antes de descobrir a doença dela, tinha iniciado um novo romance, ainda sem título, mas o abandonei e não consigo continuar. Falta-me motivação. 

Com o gravador em meu colo, sondo o cérebro à procura de uma ideia, porém não consigo me concentrar o suficiente. 

É reconfortante estar a quilômetros de um centro urbano, isento de qualquer compromisso social tedioso. Quem sabe assim consigo recompor um pouco do que foi quebrado dentro de mim. Não estou mais sozinho aqui do que entre milhões de anônimos. 

Não tendo sucesso em ditar meu novo livro, pego a máquina fotográfica digital em um dos bolsos de minha calça. Não tive um motivo especial para trazê-la, pode ser que inconscientemente desejasse capturar o elemento extraordinário que reajustaria o meu eixo. O meu processo de criação não tinha mistérios: observava o mundo e salientava os “monstros” já existentes. 

Como é outono, as árvores estão praticamente desprovidas de folhas e a terra pintada com vários tons de marrom. Ligo a câmera, desativo o flash, pois o sol está no seu zênite e tenho luz mais do que suficiente. Miro os pinheiros à minha frente, aperto o botão de zoom – clec. Tirei mais uma foto. Decidi que iria apaga-la, assim como as anteriores, mas quando estava prestes a apertar “deletar”, uma figura que fotografei entre as árvores chamou a minha atenção. Parecia uma pessoa segurando algo, mas, pela distância em que estava, seus contornos eram indeterminados. 

Desliguei o gravador e o coloquei no bolso de minha camisa. Levantei-me com uma expressão de tensão, a região não tinha um número alarmante de homicídios, mas não consegui evitar que minhas pernas tremessem um pouco. Ao contrário do que muitos pensam, escritores de terror também sentem medo. Ainda somos humanos. 

Sei que nos filmes quem pergunta isto geralmente é o primeiro a morrer, mas falei: 

—Quem está aí? – o meu espreitador não respondeu, então posicionei a câmera mais uma vez para utilizar o zoom. 

Assim que vi a imagem na tela da máquina, desviei a minha cabeça para a esquerda a tempo suficiente de ver a parede de madeira da cabana ser cortada ao invés de minha cabeça. Era como se uma machadinha tivesse sido arremessada, contudo não via qualquer objeto, apenas o corte. 

Olhei para a foto e vi uma pessoa, – não, não era isso – quer dizer...vi algo com a forma de um homem, mas ele era feito de uma névoa escura, apenas o que deveriam ser seus olhos emitiam um brilho esverdeado. 

Diante de minha cabana, somente uma floresta – será que alucinei? – Por via das dúvidas, bati mais uma foto, mesmo com a evidência na parede. Ele agora estava a poucos metros, apontando-me. O seu corpo oscilando conforme as correntes de ar passavam, mas a luz verde continuava aterradora. Custei um pouco a entrar na cabana e trancar a porta com um ferrolho velho. 

Pela janela, tentei ver se ele ainda estava se aproximando, todavia mais uma vez meus olhos não o enxergavam. 

—Então você gosta de apenas se mostrar para as lentes disso, né? – pensei, tocando a máquina digital com as duas mãos. Deste ponto em diante, comecei a tirar fotos e olha-las rapidamente. Precisava saber onde ele estava. 

Contra a janela, uma de suas mãos pressionava a foto de minha falecida esposa. 

—Maldição! – praguejei pelo meu descuido com algo que me era tão caro. 

Afastei-me da janela, recuando até o armário onde guardava os utensílios do dia-a-dia. De costas mesmo, abri a gaveta onde as facas ficavam e peguei uma. Poderia não ser eficaz contra ele, mas foi uma resposta natural à ameaça. 

—O que é você?! Por que vem me atormentar?! 

Em resposta, Ele deixou a foto escorregar para o chão e caminhou até a porta de entrada. Em uma sucessão de fotografias, vi a névoa escorrer pela fechadura, já formando as pernas d’Ele. Arremessei a faca, mas a imagem seguinte mostrou que o objeto atravessou a matéria sem surtir algum tipo de dano. 

Olhando ao meu redor, lembrei que a porta do banheiro foi colocada poucos dias antes de minha chegada, logo era de uma madeira mais nova que as dos demais cômodos. Corri para lá. Tranquei a porta e me encostei contra ela, sentado. Mesmo com o piso antigo da cabana, os passos d’Ele não faziam barulho – como poderiam? Ele era unicamente gás. 

Procurei pelo rolo de papel higiênico – o vi caído no chão, perto da banheira – e o puxei com um dos pés, não queria me descuidar com a porta. Com um pedaço do papel, fiz um chumaço e enfiei na fechadura. 

—Por que não trouxe a merda de um celular?! Ah, cacete, não tem sinal aqui! – foi o que o vendedor me disse – O que fazer? O que fazer? O que fazer? – meu pensamento estava alucinado. 

Uma corrente de ar gélido tocou a base de minha coluna, aquilo foi como o instante em que me despedi de Kathelyn, dando-lhe um beijo na tez fria. O contato suscitou esqueletos de meu armário, forçando-me a rever todo o sofrimento por que passei em minha vida: a morte precoce dos meus pais em um acidente de carro quando tinha menos de cinco anos, a criação sofrida ao lado de uma tia tirana que me espancava e a partida de meu verdadeiro amor quando começávamos a planejar a chegada de um filho. Chorei, expelindo a energia ruim que estava represada. A névoa era tudo o que havia de ruim em meu coração, devia estar apenas atendendo o meu desejo de morrer. No fundo, ela era justa, mas acabei por decidir que não iria entregar as pontas. 

Lutei até sair da espiral de angústia. Pelo visto, mergulhar nesse rio negro, concedeu-me uma vantagem: enxergava a névoa sem o auxílio da máquina fotográfica. Infelizmente, essa constatação não era razão para alegria, uma vez que a fumaça cobria o chão do banheiro, tendo se infiltrado por brechas na porta, e estava se condensando perto de mim. Sem pensar duas vezes, corri contra a janela do banheiro e me atirei para fora da cabana. Inevitavelmente, cortei-me bastante e alguns pedaços de vidro pequenos ficaram em minha pele. Também torci um dos pés e fraturei o braço esquerdo. 

Sem qualquer orientação, corri mancando e gemendo de dor pela floresta, tropeçando em raízes, batendo contra árvores, sendo arranhando por arbustos e galhos. Quando olhava para trás, o via no meu rastro. O brilho verde crescendo, demonstrando prazer em ver a dor a que me submetia e a minha fuga desesperada. Por mais que aumentasse a velocidade, ele sempre estava a um passo de distância de mim. Quase podia sentir as mãos envolvendo o meu pescoço e pressionando, até que não conseguisse respirar. 

Coração batendo rápido, pés doendo, cortes ardendo, respiração arfante, não sabia de onde estava puxando essa força – tive a impressão de ouvir uma voz feminina sussurrar: “Vá, campeão, você conseguirá” – Considero que ser forçado a um limiar me fez acessar uma dimensão paralela da percepção. As cores pareciam tintas à óleo, tão brilhantes. Assustadoramente vivas, ora me inspirando pavor, ora fascínio. Estava surtando, completamente fora de controle. Sentia até o suor, misturado ao sangue, escorrendo por meu corpo. Tinha consciência de cada célula se movendo em mim. 

Ele saiu do foco de minha mente, mas ainda corria sem me indagar se consegui despistá-lo. Quando cheguei a uma estrada, quase fui atropelado por uma Picape que freou a centímetros de mim. Desmaiei, ao acordar estava em um hospital no qual recebi os primeiros socorros e fui tratado. Depois de receber alta, decidi retornar para a minha cidade. Tinha visto o meu próximo livro. Só precisava escrevê-lo. 


[1] Eu sou um homem que caminha sozinho e quando eu estou andando por uma estrada escura à noite ou passeando pelo parque, quando a luz começa a mudar, eu às vezes me sinto um pouco estranho, um pouco ansioso quando está escuro.

4 comentários:

  1. O estado depressivo faz com que a gente tenha alucinações...
    Ednelson, muito bom...Adorei!!!

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    1. Quando estamos maus mentalmente, a nossa percepção costuma criar os mais horrendos monstros. Agradeço o comentário.

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  2. Acertou novamente, Ednelson. A pior escuridão é a que está dentro de nós, e a mais perigosa também. Isso geralmente acontece quando não conseguimos aceitar a nossa realidade.
    Abraços,
    Ana Luisa

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    1. Ana, muito obrigado por comentar. Concordo contigo, o nosso maior adversário é o que guardamos no interior (medos, desejos etc). Essa tensão, deduzo, é necessária para nos impulsionar às mudanças. Se a vida fosse feita somente de dias minuciosamente perfeitos, qual seria a razão da alegria?

      Abraços.

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