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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Devorada


Verônica saiu da casa dos pais aos 15 anos.

Sempre se considerou, para seu próprio bem, esperta e independente demais, apesar de sua idade. Portanto, não precisava responder à “autoridade” de dois velhos – na verdade, a mãe dela mal tinha completado 30 anos, na época – e resolveu enfrentar o mundo, sozinha.

Bom, não exatamente sozinha.
Muito da resolução de Verônica se devia a uma paixão. Uma paixão que a tomava e completava de várias formas. Uma paixão que seus pais não apoiavam ou permitiam, por várias razões. Como entenderiam? Casaram-se por obrigação, por vergonha e falsos moralismos... Em outras palavras, geraram uma criança quando eram pouco mais do que crianças. E esse era um fardo para a vida.

Ela, entretanto, sabia o que era uma paixão que queimava como dois sóis. Que fazia coisas com o corpo dela que, apesar de algumas poucas experiências prévias, com certeza, nunca seria superadas ou equiparadas. E tudo isso era somado ao amor crescente que, presumia, surgia entre o casal – algo que, na mente dela, estava virando uma dependência química. Ela precisava, assim, deixar tudo para trás e viver aquilo. Imediatamente.

E essa sensação lasciva, úmida e selvagem tinha um nome.

Aryanna.

As circunstâncias em que se conheceram eram nebulosas para Verônica. Provavelmente, foi numa festa. Numa festa muito louca, diga-se de passagem... Acreditava que, depois de muito beber e de um pouco de pó, “subira” demais. Dançou muito, também – como uma “irmã do frenesi”. E, talvez, alguém tivesse dançado com ela... Quando “baixou”, estava deitada em uma cama enorme, ao lado de alguém. Alguém que tinha deixado seus músculos, nervos e sentidos anestesiados de prazer, considerando como estava, assim que despertou...

Até então, nunca tinha tido experiências ou demonstrado interesse em tê-las com outra mulher... Verdade. Por outro lado, até então, nunca tinha conhecido uma, como definiria, mais tarde, “deusa do sexo”. Aryanna tinha algo avassalador, um apelo sexual – e habilidades, também... – que faziam que o corpo de Verônica ficasse como manteiga ao sol. Por quinze minutos ou por três horas, como fosse, era como se sua mente se tornasse una com aquela mulher.

E que mulher!

Com certeza, era mais velha, embora Verônica não soubesse precisar e nem perguntaria o quanto. Não devia passar dos trinta, entretanto... Caucasiana – não que isso importasse – como se nunca tocada pelo sol, mas com uma cabeleira longa e lisa como um rio negro, descendo até a cintura. E aquele negrume todo, incrivelmente, iluminava-se de forma única ao sol. Era impossível não invejar... Mas invejá-la é lugar comum, sinceramente.

O corpo era algo que só poderia ser comparado com o de algumas poucas mulheres que, no cinema ou televisão, vivem do mesmo. Não havia uma flacidez, cicatriz ou mancha naquelas formas delineadas. Curiosamente, no tempo em que passaram juntas, Verônica não poderia apontar uma única vez que viu a amante realizar uma atividade física das mais simples. Aqueles músculos, seios arredondados e fartos que não encheriam nem mãos muito grandes e uma bunda digna de várias músicas eram perfeitos, simplesmente, por serem.

(Inclusive, ao abocanhar qualquer uma dessas partes, Verônica ofegava e salivava de satisfação.)

Tudo isso coroado por olhos de um colorido único... Mais um detalhe quase impossível naquela mulher... Ou, pelo menos, que davam essa ilusão. Não eram lentes de contato, Verônica confirmou. Eram dourados. E num formato que, como tudo em Aryanna, insinuavam apenas sexo.

Como não se afogar em alguém assim, não é?

Por isso, não tardou para a menina colocar o que dava de roupa em sua mochila da escola, escrever um bilhete curto e acusatório e fixar-se no apartamento da deusa, acatando os pedidos – o desejo! – da própria...

Nesse dia, Verônica chorou de prazer e, depois da oitava hora, precisou pedir uma pausa.

Ou enlouqueceria. E nem poderia reclamar, é claro.

Nos primeiros dias, a partir daí, Verônica começou a pensar que a libido de Aryanna era algo insaciável e incontrolável. Afinal, em qualquer situação, em qualquer momento, Verônica se via despida e “engalfinhada” com a outra...

Por exemplo, desde que começaram a viver juntas – ou, como a menina diria, “casaram-se” –, Verônica raramente saía para passear. Fosse sozinha ou acompanhada. Nas poucas oportunidades que tinha, era para espairecer, rever brevemente alguém ou, responsabilidade que precisou assumir, comprar comida ou necessidades básicas. Aryanna, aparentemente, não saía de casa – ou da cama.

(Por mais estranho que pareça, ela nunca percebeu – ou teve tempo para perceber, talvez – que, mesmo vivendo em um apartamento luxuoso, a geladeira de Aryanna estava sempre fazia, e parecia como nova... Ora, não havia nem papel higiênico ou absorventes por lá!)

A coisa era como um jogo, mas outro termo seria mais apropriado... Por exemplo, certa manhã, cedinho, Verônica desceu para ir até a padaria e trazer pão quente para as duas, uns biscoitos ou doces, talvez... Fazer um café decente.

(Como uma... Família?)

Pegou um dinheiro e foi. Ao retornar com as compras, não encontrava a companheira. Chamou. Entrou em todos os cômodos. Nada. Provavelmente, por algum milagre, precisou sair. Resolveu preparar a mesa e esperar. Ainda era cedo, afinal de contas...
Com isso, atenta à cafeteira, não percebeu uma sombra se avolumando às suas costas.

Aproximando-se.

Porém, quando sua minissaia – um dos muitos presente de Aryanna – foi erguida e sua pele foi tocada por algo áspero e úmido, entendeu o novo jogo. O que se seguiu, em muitos casos, poderia ser descrito como violência sexual: as roupas justas e curtas arrancadas, a roupa de baixo despedaçada e a sensação de línguas, mãos e pernas percorrendo todas as curvas e entradas de sua anatomia. Quando tentava falar, pedir para tomarem um café como pessoas normais, para variar, sua boca era preenchida com a da outra. Quando tentava demonstrar alguma resistência em seu quadril ou pernas, o mesmo acontecia. Acontecia com selvageria e fúria. Começou sobre a mesa da cozinha, derrubando os pães e doces ao chão e, quando quase não tinha mais forças, continuou sendo possuída e invadida no mesmo chão, sobre os alimentos...

Verônica foi devorada.

Acordou – ou, mais precisamente, voltou a si – muitas horas depois. Sozinha, novamente, e sem “ataque surpresa” algum. O sentimento de vazio era tremendo. Suas únicas companhias eram as inéditas formigas, moscas e uma barata furtiva refestelando-se sobre os restos de pão e doces...

Foi aí que as coisas passaram a mudar.

Dois dias depois, Aryanna voltou. Verônica lutou para não demonstrar a felicidade e a ansiedade que acumulou, mas sabia que uma palavra ou toque da deusa seria suficiente para se submeter – e entregar-se por completo.

Apesar disso, mal recebeu um olhar ou menção. Parecia que... Que não era... Para estar mais ali? Tentou lembrar-se de algo errado que poderia ter feito... Não havia! Então, por que merecia um tratamento como aquele? Tanta frieza... Só ouviu a voz de Aryanna quando a mesma pediu que preparasse um bife. Um bife grande e mal passado. Obviamente, precisou sair para arranjar um.

E, cada vez mais, depois desse dia, Aryanna encontrava motivos para Verônica se ausentar. Ausentar-se por horas, certas vezes. Será que algo acontecia e não era para a menina saber? Talvez. Desta vez, na verdade, tinha um “motivo” para ficar tanto tempo fora, porque, no dia que ouviu o pedido insensível pela primeira vez, morreu de leve:

— Pra rua. E demore muito para voltar.

Foi aí que começou a se dar conta – a “abstinência” de sexo permitiu que suas ideias clareassem – de muitas coisas. Muitas. De onde vinham os recursos para manter um apartamento como aquele? As roupas e a lingerie de etiquetas caras? E as contas?! A comida??!

Pensando nisso enquanto voltava do outro lado da cidade, Verônica percebeu a verdade quando juntou esses detalhes com as seguidas demandas por sua ausência, a indiferença e o recente desinteresse por ela – pelo corpo dela.

Aryanna era uma prostituta. Das muito caras. E, assim, mantinha tudo sem esforço aparente.

Logo, entrou no apartamento acreditando que confrontaria sua “deusa caída” com a verdade. E, sinceramente, era só uma maneira de ter atenção – e sexo – voltada para si, novamente. Não se importava com como a amante fazia dinheiro; só precisava do torpor – mesmo que só um pouquinho – da luxúria e do prazer incessantes...

Resolveu fazer uma entrada dramática, mas a intenção foi logo perdida: Aryanna estava ao telefone. Em uma conversa importante, pelo jeito.

(Um novo cliente?)

Porém, não tinha como identificar a natureza do assunto... Pela primeira vez, ouvia Aryanna falar em... Francês? Soava como isso, mas de uma forma errada... Com estalidos e... Silvos? Quando a ligação terminou e a mulher se voltou para sua antiga presa, sorriu de leve. Um sorriso como o pecado.

Foi a primeira vez que Verônica vomitou.

Tentando disfarçar, tomada pela vergonha e tentando remover sua própria imundície, tentou balbuciar alguma acusação enquanto seu corpo sugeria o início de uma dor intensa e interna...

Algo... Se... Contorcendo?

Aryanna se aproximou. Achando que seria punida – no sentido literal, desta vez –, encolheu-se, mas... Recebeu um abraço. Um abraço sincero e amoroso. O primeiro desses oito meses juntas, tinha quase certeza. Sorrindo e mirando – mirando com uma obsessão dourada – o fundo dos olhos de Verônica, a deusa se pronunciou, com aquele tom estrangeiro, mas antinatural:

— Já era tempo dos meus... Digo... Dos nossos ovos eclodirem.

Tocando o ventre da menina com desejo, Verônica teve aquela sensação, mais uma vez: seria devorada. Centenas de vezes.





7 comentários:

  1. Vai entrar p lista dos meus preferidos Manoooooo!!

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  2. Bacana... não sei por que mas o final me broxou um pouquinho, sinto que do alto ele caiu demais e fiquei meio "ah tah" mas acho que é porque sou chata mesmo rs

    De todas as formas o conto em si esta legal, gostei de como ele evoluiu inicialmente... Parabéns^^

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  3. Gostei.
    Também acho que o final poderia ter sido melhor. Quem sabe se houvesse mais suspense durante o telefonema da Aryanna... De qualquer modo, talvez eu só não tenha me surpreendido porque no blog a gente já espera mesmo alguma revelação macabra, um quê de terror/horror. =)
    Os parágrafos em que você descreveu a Aryanna ficaram excelentes. E o fervor de algumas cenas de sexo chegou a arrepiar, o que foi ótimo, pois faz o leitor perceber que há algo de estranho, de obsessivo (ou mais do que isso) na relação das personagens. Parabéns!

    Só uma crítica mais formal: não vi necessidade de usar certas aspas que você usou. Creio que no "subiu" e no "desceu" faz sentido, mas em outros momentos ("abstinência", "ataque surpresa") elas me pareceram dispensáveis, porque nesses casos, imagino, apenas se queria demonstrar a conotação figurada de palavras e expressões, e isso é algo que o leitor consegue fazer sem a ênfase proporcionada pelas aspas. Talvez nessas ocasiões fosse melhor adotar o itálico, como você fez no "Imediatamente". Enfim, é só um pitaco meio chato, porque sou beeem chato com essas coisas. XDD

    P.S.: a imagem combinou perfeitamente com o texto.

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    1. Na verdade, além de ser como descreve, parcialmente, Rodrigo, algumas das aspas são para denotar o linguajar - no caso do "subiu" ou "desceu", coisa de adolescente chapado - ou as ideias que passam na cabeça zoada de Verônica.

      Mas não posso ficar explicando isso como se fosse um professor de literatura, claro. :)

      Ainda bem que escolhi uma boa imagem, então. Quase optei por algo no nível de Brasileirinhas...

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    2. Hmm, saquei! Tem razão. Relendo agora os trechos em aspas como se fossem pensamentos da Verônica, tudo se encaixou. E ficou interessante intercalar a narração com a voz (e ideias) da personagem. Well done!

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