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domingo, 10 de fevereiro de 2013

Disco arranhado


Leonardo caminhava pela rua onde ficavam os sebos no centro de Maceió, estava indo para casa depois de uma festa promovida por um amigo.

Arrumou a sua jaqueta preta, a madrugada estava fria, e olhou o relógio – eram 02:30. Acendeu um cigarro, deu um trago olhando ao redor, somente alguns ratos ou baratas se moviam por cantos escuros. 

Colocou as mãos nos bolsos da calça jeans e começou a subir cabisbaixo a ladeira da catedral, assim chamada pela construção do lado direito em seu topo. 

O único barulho eram os seus passos. 

—Senhor, poderia me dar uma esmola? – ouviu uma voz fraca lhe indagando, tossindo logo em seguida como alguém com pneumonia. 

Leonardo parou assustado, não tinha visto alguém na calçada há poucos segundos. Os mendigos que ficavam no centro, quando a noite caia, buscavam abrigo embaixo dos toldos das lojas. 

O homem sentado na calçada usava um chinelo, uma bermuda remendada, uma camiseta cheia de furos e um chapéu que só deixava à mostra os lábios ressecados de seu proprietário. As vestes estavam encardidas e a própria pele do miserável era coberta por uma camada de sujeira. 

—Senhor, queira me desculpar, mas não carrego qualquer trocado comigo – respondeu Leonardo com um olhar condolente. 

—Pode ao menos ouvir o que tenho a dizer? Sou um homem solitário, esfomeado, a vida me abandonou há muito tempo – enquanto o homem da calçada falava era possível perceber a alvura de seus dentes.

—Okay – Leonardo não era um rapaz muito gentil, mas algo na voz de seu interlocutor o atraia, quase sexualmente, mesmo que ele não compreendesse. 

Enquanto agachava-se para ouvir claramente, o mendigo agarrou a sua cabeça e o encarou com olhos verdes doentios. Como um fogo, fruto da soma de todos os medos humanos.

Congelado por aquela visão que lhe inspirou um sentimento maior que o medo que qualquer ser humano pode conceber, sentiu as presas da criatura perfurando a sua pele até atingir a jugular. O sangue escorreu, sendo sorvido pelo monstro com deleite. Quando o seu corpo enfraqueceu-se mais, o vampiro o envolveu como uma jiboia. 

Antes de morrer, Leonardo viu um clarão, muito semelhante ao flash de máquina fotográfica. 

** 

Depois de acender o cigarro, Leonardo continuou a subir a ladeira da catedral. Mais a frente, viu um idoso trajando andrajos, resolveu atravessar para o outro lado da rua. Mesmo sendo um homem velho, era bom tomar cuidado ao circular pelas ruas de Maceió de madrugada.

Enquanto seguia o caminho para a sua casa, começou a cantarolar uma canção de uma famosa banda de rock brasileira: 

♫ Mais um ano que se passa, mais um ano sem você. Já não tenho a mesma idade, envelheço na cidade ♫ 

Daqui a uma semana faria vinte e quatro anos, estava ansioso, pois receberia de presente de seu pai a moto Harley-Davidson que tanto cobiçava. 

Ao dobrar uma esquina mal iluminada, não enxergou um homem encapuzado que se ocultava por trás de uma árvore. 

—Para aí, mermão! – o assaltante bradou, encostando a ponta da arma na nuca de sua nova vítima. 

Leonardo começava a girar para ver quem falava com ele, mesmo temendo a reação da outra pessoa. Não gostava da ideia de não ver o rosto daquele que poderia lhe tirar a vida. 

—Calma aí, ca... – começava a falar quando foi interrompido. 

—Calma, uma porra, seu fudido!

Não foi ódio que dominou Leonardo ao ser xingado por um marginal, uma escória – como pensava – mas uma pergunta: 

—Será que ele quer me roubar pela fome ou pela ganância? 

—Vou lhe entregar... – levou uma das mãos à cintura, enquanto com a outra levantava a jaqueta um pouco. Iria pegar a carteira. 

Antes que pudesse dar o tão desejado dinheiro ao assaltante, sentiu algo quente perfurando a sua nuca e rapidamente saindo pela sua boca. 

—Merda, seu puto! – o assaltante dizia quase chorando, afinal roubava por causa da fome, não era absolutamente mau – Olha o que você fez! Caralho! 

Mesmo desesperado, pegou a carteira de Leonardo, enquanto ele, caído no chão, se esvaía em sangue. 

O corpo lutava para se erguer, mas os músculos não respondiam. Só a mente ainda funcionava, alucinadamente tentando encontrar uma razão para morrer justamente agora. Antes que os olhos fechassem completamente, uma explosão de luz aconteceu. 

** 

Depois de desviar do mendigo na ladeira da catedral, Leonardo chegava perto de uma esquina mal iluminada, mas parou por alguns segundos para acender mais um cigarro. Quando a chama do isqueiro estava perto daquele pedaço de câncer industrializado, uma forte corrente de ar surgiu e fez o cigarro, que pendia frouxamente em sua boca, voar para o meio do asfalto. 

Tateou o bolso da jaqueta em que guardava os cigarros, mas descobriu que aquele era o último.

—Maldito vício – praguejou, cruzando a pista para pegar a sua última taça de “néctar”. 

Desatento, não escutou o veloz carro que dobrou a esquina, aproximando-se pelas suas costas. Ao virar-se, viu somente uma luz muito forte. O pesado veículo automotivo, uma pick-up, o arrastou por mais de dez metros até que amassou o seu crânio com um dos pneus dianteiros, deixando uma faixa de sangue por muitos metros.

Antes disso, Leonardo foi ofuscado por um flash. Os jovens alcoolizados do carro sequer pararam, apenas consumiam mais latas de cerveja enquanto escutavam músicas em um volume tão alto quanto a velocidade com que se deslocavam. Além de desfrutarem do sexo oral de prostitutas drogadas. 

** 

Leonardo ajeitou a jaqueta e acendeu o cigarro. Poucos passos adiante, seus pés bateram em uma capa de vinil do Pink Floyd, o que lhe chamou a atenção. Era “The Wall”. Abaixou-se, pegou a capa e retirou o disco para ver se estava intacto, talvez algum vendedor descuidado tenha deixado cair. Infelizmente, viu que o disco estava arranhado. Largou-o e continuou em seu caminho, só mais alguns minutos e chegaria em casa. Estava cansado.

6 comentários:

  1. Quando comecei a leitura achei que você iria se perder a qualquer momento, trocou Leonardo por Roberto, mas me enganei. Um texto dificil e muito inteligente e, o mais importante, você não se perdeu. Diria, apenas, que o final poderia ser mais "apoteótico", como no Do prato à caça. Parabéns.
    Ana Luisa

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    1. Às vezes até eu tenho medo de me perder no conto, mas para evitar isto, quando vou escrever depois de uma pausa, releio tudo até o momento. Obrigado por avisar da troca de nomes, isso já aconteceu comigo. Como o texto seria um pouco mais "complexo", para deixar claro que era o mesmo personagem vivendo várias possibilidades que sempre o conduziam à morte, usei cenas chaves e o flash que sempre aparecia no último fôlego. O final quis fazer mais leve e manter em aberto para que os leitores criassem as suas próprias possibilidades para o personagem.

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  2. Adorei o conto, como sempre!!! Achei de inicio que seria meio confuso, mas de repente percebi o que de fato acontecia, e pensei em milhares de possibilidades, motivos e etc... O final não foi uma grande explosão nem nada disso, ao contrário diria que foi até bem banal - visto que ele simplesmente teve a atitude do "ah, tanto faz" - mas acredito que combinou completamente com o texto. Não ficou um banal ruim... Entende? rs Ficou bem como a vida. Às vezes temos esses momentos de "ah, isso é normal, corriqueiro, e eu to cansado demais pra fazer um grande musical com isso...". Ficou bem realista nesse ponto, e adorei rs

    Parabéns!

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    1. Obrigado, Taty! Quando imaginei esse conto, a primeira coisa que pensei foi: "Como vou estruturar isso?" Bem, aí está o resultado, acho que consegui manter as partes unidas (cada tijolo). O final optei por fazer mais "comum" para contrastar com a experiência absurda que ele vivia (experimentar todas as variáveis). Quantas vezes não gostaríamos de saber quais os caminhos que podemos percorrer em seguida e ao que levariam? O protagonista poderá viver todas, mas sem recordar-se. Obrigado pelo comentário.

      ^.^

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  3. Ed, vejo um crescimento seu como escritor que me surpreende. Sabe aquele cara que dizia: "mas eu sou só um simples escritor no meio de tanta gente melhor...". É, meu brother, você sempre fez parte dos melhores, apenas temia isso.
    Quanto ao conto, gostei demais das várias formas com que abordou os destinos do protagonista. Criativo e muito bem elaborado. O final, sou obrigado a concordar que também aguardei algo mais assombroso, mas nada que diminua o brilho do conto.
    Parabéns.

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    1. Franz, acho que estou experimentando mais esse meu lado escritor, conhecendo-o melhor. Sim, aos poucos aprendo a lidar com a insegurança. Obrigado pelo constante apoio.
      De vez em quando prefiro fazer finais mais "leves" mesmo, algumas vezes por realmente não conseguir ver um final mais chocante, outras por querer enfatizar o que acontece antes ou ainda porque o personagem me "exige" um determinado desfecho.
      Abraços.

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