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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

13 Cães


Minha querida Alicia,

Estou a escrever-te essa missiva da ponte do Senhorio, vinte quilometros ao leste de Moçambique, precisamente às 23 horas de um domingo molhado e de calor quase insuportável (é engraçado como a chuva não amainou praticamente em nada o mormaço do verão angolano). Foram inúmeros os fatores que me trouxeram até aqui, entretanto devo me ater aos detalhes mais importantes, ainda que os de menor importância também padeçam de recôndita relevância. Afinal, do pouco tempo que ainda me resta, creio que metade dele foi perdido tentando sobreviver, enquanto que no restante dediquei a procurar relatar os pormenores dos acontecimentos ocorridos nas últimas 24 horas, como um último testemunho de uma mente febril e em decomposição, mas que ainda guarda certo grau de senilidade. Já se passa da hora, creio eu, de minha partida, entretanto o coração ainda vinga, de maneira bastante lúcida, e se recusa a aceitar o destino cruel e inevitável, funcionando perfeitamente bem, inerente aos dizeres da alma...



Armamos campana numa tenda improvisada com retalhos de roupas velhas, além de alguns lençois sujos, meias que usamos como amarras e algumas pedras e pedaços de pau colhidos a dedo nos recantos obscuros de Andaliara, uma aldeia abandonada, há três dias de viagem a pé ao sul de Luanda. Os homens estavam cansados (e tal afirmação parece-me, agora que a escrevi, desnecessária) e metade deles havia se machucado durante a caminhada. Assaggi, um negro alto, de ombros largos e olhar cansado (uma contra-partida cômica, já que seu nome em Zimbabue significa justamente “Forte”) insistia constantemente que continuássemos com a viagem, mas seu irmão mais velho, Assauê, o líder natural do nosso pequeno grupo, (composto basicamente pela família de ambos e por um escrivão europeu pelo menos vinte anos mais novo do que metade dos demais membros da equipe e que jamais se acostumara com o calor infernal dos trópicos africanos... Reclamava em demasia da falta de água, até mesmo nos dias chuvosos) insistiu para que ficássemos e montássemos acampamento. 

Assauê era o que se pode chamar de “outra contra-partida cômica”, visto que fisicamente era o completo oposto do irmão mais novo. Um senhorio de idade - 62 anos - de estatura baixa, pele flácida, (descolando-se do corpo como que se fugisse ela própria dos horrores da guerra), ombros caídos e olhar constantemente triste. Os olhos de um homem que já presenciara grande parte dos horrores causados pelo homem branco e pela Maldita guerrilha. Fizera parte ativamente do conflito de Fevereiro de 61, quando um grupo de cerca de 200 angolanos ligados ao movimento da Luta Armada pela Liberação Nacional invadiu a casa de reclusão militar em Luanda, a cadeia da 7º esquadra de polícia e a sede da emissora nacional de Angola, a CTT. 13 anos depois, com o fim da guerra e a independência de Angola tidos como fatos praticamente certos, ele se diria arrependido. Não nutrira qualquer boa lembrança que fosse do período em que trabalhara como guerrilheiro angolano. “Há que custo conseguimos a liberdade, se meus homens não podem mais ser livres? Mortos, afinal, são naturalmente presos”. A frase lhe saiu dos lábios ressecados só duas horas antes de sua própria morte, quando fomos atacados, duas noites atrás, por um grupo de guerrilheiros inimigos.

Acordei com o estampido da arma de fogo explodindo e acertando o alvo ao meu lado. Um clarão de luz iluminou-me a retina por sobre os olhos fechados e eu senti o chão tremer por debaixo das pernas já naturalmente enfraquecidas pela idade. Quando abri os olhos o negrume me inundou por completo. Os grossos pingos de chuva acertavam-me a face em cheio e a medida em que eu tateava ao meu redor e tentava recuperar a visão, parcialmente perdida pelo negrume, eu sentia o zumbido provocado pelo estrondo da arma reverberando em meus ouvidos. Não demoraria para que viessem os gritos. Durante um breve período de pânico não consegui reconhecer a voz enrolada que os emitia, algo como um sussurro gutural em meio ao ruído ensurdecedor dos trovões que se confundiam com os clarões e o barulho dos tiros dos inimigos. Foi graças a uma única palavra que consegui enfim reconhecer o dono dos apelos desesperados por socorro. “Água...”. O homem debatendo-se ao meu lado me agarrou. A fisgada dos seus dedos grossos foi surreal... Suas unhas manchadas de sangue cravaram-se em meus tornozelos, abrindo sucos de carne e deixando manchas avermelhadas no ponto onde a pele se rompia. Um clarão iluminou o céu, só alguns poucos metros ao sul. Uma mina... Um rosto que acompanhava a mão que me puxava pelo pé, um rosto que, apesar de completamente deformado, eu já sabia a quem pertencia. Pobre escrivão. Tivera tempo de conhecê-lo o suficiente apenas para saber que tinha verdadeira aversão ao calor Moçambicano e que trocaria sua alma por um copo de água nos momentos finais de vida, ainda que o lugar em que originalmente estava sua boca não passasse agora de um amontoado de carne e ossos, dejetos humanos que juntos insistiam em sussurrar aquela única palavra: “Água”.

- Mache nonm, kouri! Anda homem, corre! - Gritou um haitiano de nome impronunciável, (primo em terceiro grau de Assauê), na medida em que me puxava pelo braço. Minhas pernas cederam, quando ao olhar para trás vi de relance o próprio Assauê, debatendo-se convulsivamente por sobre ao chão enlameado do que restara de Andaliara (meia dúzia de cabanas improvisadas pegando fogo e corpos, muitos corpos, amontoados - grande parte deles mutilados - espalhados pelo chão) com uma grande mancha vermelho cobrindo-lhe a testa (metade dela havia desaparecido em uma incomoda possa vermelha).
- Pou dedomajman pou Bondye a, nonm ... - um ruído surdo calou o haitiano. Quase que instantaneamente o sangue esguichou de sua cabeça, borrifando o chão enlameado como tinta saindo de um tubo de aerossol, acertando-me o rosto em cheio. Não houve tempo para gritos, seja de desespero ou de dor. Suas mãos insistentes largaram meus braços e seu corpo bateu com força na mistura de cascalho, areia e barro que era o chão, a pouco menos de cinqüenta metros daquele que parecia ser o seu objetivo final, a orla da floresta nos arredores de Andaliara. Houve um ultimo ruído metálico, tão surdo quanto ineficaz, quando o dedo pressionou inconscientemente o gatilho da arma presta a cintura, numa tentativa inútil de se defender. Desesperado me embrenhei no meio da mata, sem sequer olhar para trás. 

Corri o máximo que minhas pernas fracas permitiram, em meio ao desespero provocado pela comoção. A medida em que o fazia a única coisa que me passava pela cabeça era que eu não voltaria vivo para o Brasil (e, afinal, parece-me que de certa forma eu estava certo não é!?). O cheiro nauseabundo de fumaça empregnava o ar. Os tiros ecoavam por todos os lados, os gritos de dor dos sobreviventes, acompanhados de perto pelos de regozijo dos vitoriosos. Meus pés machucados galgavam caminho em meio ao pântano enlameado que perfazia os contornos da floresta de mato ralo e vegetação densa com dificuldade, mas com força de vontade em igual proporção. Meu instinto de sobrevivência me levou mais longe do que eu pensava que me levaria em uma situação semelhante, mas não foi o suficiente para evitar a dor cruciante que surgiu depois do estampido caracteristico de uma arma e da fisgada em minha cocha direita. 
Cai, tateando desesperadamente o chão com uma das mãos, em busca de uma pedra ou um pedaço de pau qualquer com o qual pudesse me defender do vulto que se aproximava, enquanto a outra pressionava inconscientemente a cocha direita, procurando estancar o jorro de sangue que saia do buraco feito pela bala.
- PA DEPLASE! Não se mexa! - ordenou o homem, num crioulo haitiano quase irreconhecível. Meus olhos ardiam.
- Pa Deplase! Pa Deplase! - repetiu ele, apontando a arma, mas sem se aproximar o suficiente para fazer mira.
- Tanpri... Tanpri pa touye m '! Por favor... Por favor, não me mate! - implorei com o pouco que me restara de  dignidade.
- Você... Parado... - respondeu ele, a medida em que se aproximava cuidadosamente. Era um homem alto, de rosto quadrado, lábios grossos e olhar acusador. O negro excessivo da pele se confundia com a camuflagem esverdeada do uniforme do exército rebelde e a arma pendia ao lado da cintura, fazendo uma mira vaga e pouco cuidadosa. - Ou pa ta dwe isit la. Isit la sa ki mal kote! Você não deveria estar aqui!
- Tanpri... Tanpri... - Implorei de novo, agora imaginando apenas o quanto eu gostaria de jamais ter sequer me aproximado de Andaliara.
- Aqui, lugar, mau... - repetiu ele, pausadamente. Olhando desconfiado de lado ele levou a mão em riste até a cabeça com o indicador e o médio erguidos numa imitação grosseira de um chifre, antes de continuar - Aqui, lugar muito mau. Você não pode morrer aqui. Aqui lugar mau.
Sem entender muito bem qual era o real propósito do meu executor, procurei implorar mais uma vez, dessa vez me agarrando com força às pernas dele, deixando de lado qualquer resquício de respeito próprio que tenha sobrado. O haitiano interrompeu o discurso. Seus olhos esbugalhados pareciam querer saltar para fora das órbitas, numa atitude tão desconexa quanto estranha, quando o agarrei e o puxei, ainda implorando desesperadamente, em um crioulo mal falado, para mais perto.
- NÃO! NÃO! AQUI LUGAR MAU... - Dizendo isso ele desvencilhou-se e sumiu, correndo feito um louco mata adentro. A mim não restou muita coisa, senão observar a cena que se desenrolara ali com a sensação de total e completa perplexidade.

Passados alguns segundos (o tempo necessário apenas para que as ideias finalmente ficassem em ordem) levantei-me com cuidado e limpei um pouco da lama que sujava minhas calças (ali havia uma quantidade considerável de urina, admito, sem pudor). Ajoelhei-me próximo a uma árvore, que fornecia um ótimo ponto de apoio para a pele machucada, e esperei durante cerca de meia hora. Pelo quê,necessariamente, não sei. Passara a assimilar a ideia de que sobrevivera, de maneira bastante improvável, a uma tocaia do exercito civil inimigo e só agora começava a pensar nos próximos passos. Voltar para o acampamento era algo fora de questão. Tinha a absoluta certeza de que todos ali estavam mortos naquela altura e eu precisava seguir adiante. Mas para onde também era outro problema. Foi quando decidi, por fim, depositar minha confiança no pouco de instrução astronómica que tinha e me guiar pelas estrelas, que ouvi o primeiro latido. Talvez as palavras jamais possam expressar a carga emotiva, o conflito de sensações que me abateu, quando ouvi aquele primeiro uivar gutural invadindo a noite. Um ruído ensurdecedor, que não demorou a seguido por outro e mais outro e logo muitos outros. Latidos que cortavam a noite feito uma navalha afiada rasgando a pele. 

Não demorou para que o vulto deles aparecece, em um grande circulo no clarão próximo a árvore em que eu me encontrava. 12 pares de olhos me observavam, vermelhos, pulsantes, brilhando em meio a escuridão feito pedaços de carvão crepitando no interior de uma lareira. Seus corpos, contorcidos de uma maneira estranha e com certeza nada natural, oscilavam, devagar, caminhando em minha direção num passo candenciado, desprovido de ritmo, como se os donos daqueles corpos simplesmente não tivessem controle absoluto sobre eles. Uma afronta aos vivos, mas, mais ainda, aos mortos. 12 cães enormes para os padroes normais, com caninos tão desproporcionalmente grandes e tortos que fugiam da boca, cravando-se, por vezes, em suas próprias peles, de onde pingavam ralas gotas de sangue. Suas patas cravavam-se no solo em garras igualmente tortas e suas línguas pendiam moles de suas bocarras, de onde pingavam espessas gotas de saliva.

Eles me encurralaram. Quando menos me dei conta já estava no centro do circulo formado pelos cães do inferno, tremendo até o último fio de cabelo. Não atacaram de imediato. Ao invés disso, permaneceram, durante um bom tempo, apenas me observando, como se analisassem meu comportamento, talvez esperando por qualquer tipo de reação de minha parte para que pudessem agir. Os latidos haviam cessado, dado lugar a um grunido baixo e melancólico, que casava perfeitamente bem com a imagem da enorme e redonda lua cheia que enfeitava o céu estrelado daquela noite. 

O primeiro ataque veio tão rápido e inesperado, que ainda que puxe pela memória, não consigo me recordar de qual dos doze foi. Só senti a carne sendo dilacerada e os olhos vermelhos feito brasa encarando os meus tão de perto que eu podia ver a imagem do meu rosto apavorado refletido em sua retina. Bastaram duas estocadas rápidas em meu braço esquerdo para que o sangue jorrasse. Antes mesmo que a pontada de dor se fixasse com mais intensidade, senti a fisgada na perna esquerda, seguida de perto pelo roçar das patas de outro cão raivoso, que já se afiava com vontade ao outro braço. Logo meu cabelo crespo e mal cuidado estava sendo puxado pelas garras afiadas de outra fera, enquanto outras duas cravavam seus caninos com força por sobre a minha jugular e a batata da minha perna, que agora se transformara em um amontoado desconexo de fibras musculares e ossos expostos. Senti a carne sendo separada do meu corpo de maneira tão horrenda que não consegui gritar, tamanho era o choque. Permaneci apenas parado, esperando, enquanto meu corpo era sacudido de um lado para o outro, jogado com a facilidade assustadora, feito um boneco de pano, um judas sendo malhado numa procissão popular. 

A tormenta durou cerca de meia hora, até que eles se cansaram e foram embora, largando meu corpo inerte e quase sem vida, estraçalhado. Quando os cães terminaram, o que havia sobrado de mim mal dava para ser reconhecido como partes de um ser humano. Por um momento cogitei a possibilidade de me matar, mas já não tinha forçar sequer para isso. Por isso decidi por esperar. Talvez a morte se apiedasse de mim e finalmente chegasse, como uma mãe que acolhe o filho com carinho nos braços, antes que o dia amanhecesse. Mas isso não aconteceu. Ao invés disso, algo mais estranho e surreal ainda veio a seguir. O dia não apareceu. Tornou-se eternamente noite e minhas feridas cicatrizaram com incrível rapidez. Aproveitei-me então para escrever essas memórias e explicar o motivo de meu desaparecimento, antes que os cães voltassem. E, é claro, logo após o termino, antes que eu pudesse acrescentar estas últimas linhas, eles voltaram. Mas dessa vez não houve nenhum ataque. Não havia a brasa dos infernos queimando em seus olhos redondos e grandes, mas sim um olhar assustadoramente complacente, como se aqueles monstros entendessem e compartilhassem da minha dor. Foi quando um deles veio até mim e me lambeu com cuidado o rosto, que eu percebi... Sentindo o toque úmido de sua língua roçando por sobre meu rosto peludo, eu me vi, mais uma vez, no reflexo dos seus olhos, mas agora exatamente igual a eles.

3 comentários:

  1. Excelente, no meio já estava com raiva pq achei que estaria falando com um narrador morto, só me toquei que não quando lembrei do título e do número de lobos... XD

    Muito bom! Amei este texto.

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  2. Pois é... Eu to na mesma que o Rainier... E eu voltei ao titulo umas 5x eu acho, pois queria ter certeza que nada me escapava... wow, surpreendente^^

    Parabéns Edilton! Era disso que eu falava! Deixe sua estrela brilhar!

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  3. Muito bom! Os cães me lembraram remotamente dos cães-zumbis do jogo Silent Hill. E os detalhes conferiram maior verossimilhança ao conto.

    (Gostei especialmente do primeiro parêntesis aberto no segundo parágrafo ("(e tal afirmação parece-me, agora que a escrevi, desnecessária)"), porque recorda o leitor de que está lendo uma missiva escrita a tinta em papel, algo que não permite correções fáceis como, digamos, o "delete" num e-mail. Excelente sacada!)

    Parabéns!

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