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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Miosótis - parte dois de dois

Este conto encerra o "Ciclo do Verde". 


Há mais tempo que se pode imaginar e em um lugar que não pode ser descrito, ela podia descansar. Dormir. E era bom. Não existia, ainda, a algaravia e a movimentação frenética que, tempos depois, os seres de pelo causaram. Ela nunca soube explicar porque permitira que isso viesse a acontecer... Provavelmente, por acreditar que seriam um novo divertimento, no futuro. Afinal, atender aos pedidos e lamúrias grunhidas por seus semelhantes – “semelhantes”, mas inferiores – já estava ficando cansativo...

“Divertimento... Divertimento! Divertimento, tramoia e dor para esse pobre e velho corpo!”, gritaria, cuspindo-se de fúria.
Obviamente, se enganara. Principalmente, quando aquele molecote com delírios de escritor a encontrou, perdida e – como sempre – adormecida em profundezas lamacentas daquela outrora grandiosa massa vegetal daquele canto do continente.

Com a ajuda de outros como ele e alguns filhos da terra, o maldito a aviltara de várias formas. Com engodos e promessas, conseguiu prende-la nas profundezas quase que permanentemente... E, para piorar, ensinou as próximas gerações de símios sem pelo o necessário para repetirem a proeza, e de uma forma que a ridicularizou como nunca...

“Ridicularizada por crianças e demônios menores!!!”, rugiu.

Ridicularizada por contos infantis.

***

A situação era desesperadora e beirava a insanidade. Após o pedido de Victor, abandonou o pobre coitado com os restos carcomidos de um cadáver e com a responsável por aquilo... Pedro contou o que, aparentemente, tornaria possível findar com aquele horror e, com isso, deixou o “homem sábio” dar um jeito em alguns detalhes que deveriam ser preparados na casa... Enquanto isso, o matador precisava evitar ser encontrado... E morto... E ainda encontrar um item crucial para a execução do plano.

Nos últimos vinte minutos, subiu o morro e escondeu-se de todos os predadores. Alguns estavam no ápice da transformação – isto é, lembravam muito sua senhora. Entretanto, eram irracionais, mais selvagens e mais cruéis... Mesmo entre eles. Nos caminhos estreitos e tortuosos formados pelas construções desordenadas, a sensação paranoica era o pior: era impossível saber se no fim daquela viela... Ou ao virar uma esquina... Não teria uma abominação insana e faminta.

Como agora.

Conter o grito de surpresa foi o mais difícil. A criatura não veio de nenhum lugar óbvio; saiu silenciosamente de alguma janela de um andar superior, aproveitando-se das últimas sombras que a aurora não superou e de um aspecto perturbador de sua anatomia.

Era pequeno. Muito pequeno. Quase parecendo frágil e amável.

Não deveria ter mais de doze meses de vida.

***

Brenda estava aproveitando férias prolongadas e merecidas em uma das praias mais incríveis que jamais vira. Era, verdadeiramente, um achado. Francine, sua amiga de sempre, era da região e a levou para lá. Contou que, aos dois anos de idade dela, seus pais resolveram sair dali, mas não para “tentar a sorte no sudeste”; envolvia algum evento obscuro da infância dela, na verdade.

“O que aconteceu?”, Brenda não tinha como não perguntar.

“Eu não sei, meu... Na real, ninguém fala disso lá em casa. Tipo, eu venho para cá uma vez por ano, mais ou menos, e já tentei tirar algo das minhas tias, dos meus primos mais velhos e da minha avó, mas nem fodendo. Deve ser algo bizarro para cacete... Ô! Não me olha assim! Não fui violentada ou coisa do tipo. Já perguntei e isso, pelo menos, o pessoal garantiu que não.”

Sentada na areia e admirando o mar, Brenda refletiu sobre a conversa, até Francine voltar a falar.

“Mas, de alguma forma, eu lembro, sim, onde aconteceu. Vem comigo.”

Percorreram algumas centenas de metros para o oeste, seguindo a orla. Quanto mais andavam, menos “sinais de civilização” eram avistados – onde terminava a areia, agora, se viam apenas inúmeros tons de verde. Com alguma referência que ficou incerta para Brenda, Francine se virou em direção à vegetação e entrou numa trilha que, supostamente, não era muito usada.

“Ainda bem que está claro ainda, né?”

Francine não respondeu. Só seguia em frente, e muito naturalmente. Diferente de Brenda, não parecia ter cuidado com galhos, espinhos e coisa do tipo, não escorregava no limo ou se incomodava com os insetos. De fato, parecia mais que essas coisas todas é que tinham cuidado com Francine! Seu passo não diminuía.

Até que parou.

“Espero que aprecie”, falou, finalmente.

A princípio, Brenda acreditou que tinham chegado a uma simples clareira. Sua surpresa foi tamanha, quando percebeu que estava em um cenário que conseguia ser superior à praia: um lago de águas azul-turquesa formava uma circunferência perfeita. Nas margens, flores do mesmo tom de cor, repletas de vida, quase impossíveis, e em padrões quase desenhados enfeitavam aquela glória. Mas o melhor era a cachoeira.

“Caaaaraaacaaa! Francine!! Isso é um sonho! Sério!”

“Sim... Praticamente, um devaneio. Disse-o bem.”

Brenda retirava o short que vestia e, de biquíni, preparava-se para pular na água. Tão deslumbrada, não reparou na repentina mudança de “linguajar” da amiga. E nem no olhar que a mesma dirigiu ao alto da cachoeira.

“Devaneios e pesadelos, Brenda Lúcia Encerrabodes.”

Um olhar poderoso, como a cheia de um rio, e vivo, como a piracema.

***

Mais do que os símios sem pelo, a boa senhora detestava o som de água corrente e todos os amados filhos do rio. Essa lembrança fugaz fez com que rangesse os dentes durante seu sono.

***

Uma coisa que Pedro não esperava foi o resultado de estar coberto com sangue e vísceras do pequenino: não era percebido. Em termos. Se avistado, seria caçado, certamente, mas com subterfúgio e paciência, podia evitar isso... E o odor de seu sangue quente não o denunciaria, por enquanto. Assim, neste momento, era também um caçador.

Decepou e decapitou alguns, furtivamente, até encontrar o que precisava. Gostou da sensação. Esse era o prazer de uma caçada. Sua caçada. Considerou que aquela seria uma atividade melhor do que origami

Contudo, já tinha em mãos um novelo de cipós.

***

Uma criatura como ela podia ficar desperta por sete anos, sem sentir o menor sono ou fraqueza. Contudo, ela tinha se alimentado – e bem. E, agora, Victor, preparava uma gambiarra com o encanamento da casa. Antes, colocou muitas, muitas folhas de chá, cultivadas no pátio da tia de destino infeliz, dentro de uma chaleira, e ligou uma boca do fogão em fogo baixo... Logo, a casa foi tomada por um vapor. E a criatura entrou em um sono ainda mais pesado.

Daquela distância, só isso impedia de despertar a senhora sorridente. Isso, e o fato de, mesmo sob tamanho perigo e com pouco tempo para preparar os canos, não tremer, não errar. Nem mesmo suava. Era metódico e frio... Era como “Palha”.

“Essa situação é tão irreal que, provavelmente, vai funcionar.”, pensou logo que terminou. E se foi. Levando os restos mortais da tia, precisava encontrar sua mãe e Rita – tinha fé que, considerando as descobertas recentes, dona Carmen era mais do que aparentava e, com isso, estariam a salvo. Considerou esperar o menino chegar, mas era impossível.

“Desculpa, Pedro. Eu não faço parte desta história, de qualquer forma.”

***

Brenda e Francine estavam sentadas de costas para o lago, e bem afastadas. As carcaças reptilianas fediam muito mais depois de mortas. E Brenda precisava digerir os último acontecimentos: além das artes marciais, lembrava que a amiga era uma excelente nadadora. Muito promissora, aliás. Contudo, ver a mesma atacar aquelas criaturas horríveis moldando as águas para isso foi surreal demais – sua fúria, por alguns minutos, foi a fúria das correntezas.

Agora, ao que tudo indicava, estava “normal”.

“Brenda Lúcia...”, a mãe da água começou. Chamá-la pelo nome composto, algo que não gostava, faria com que saísse daquele “torpor”, Francine imaginou. Ver aquilo tudo, depois de tantos choques e crises que passou, era demais, provavelmente. Porém, Francine voltou a si com mais conhecimento que outrora, e precisava saber a verdade.

“Brenda... E-eu...! Olha, cara, eu sei que você deve tá quase pirando, mas que se foda. A coisa é assim, não tá vendo?! Desde aquele seu rolo todo, a gente sabia que tinha algo errado com as pessoas... E tá aí, a prova! E pelo que eu tô entendo, agora, só estamos de boa porque eu sou o que sou. Aí, tô em paz com a verdade. Diferente de certas pessoas, que treparam com o Pedrinho logo depois dos assassinatos e eu tive que descobrir com o meu vudu...”

Brenda não se surpreendeu. Nem se voltou para olhar a amiga. Simplesmente, respondeu:

“Ele fez por mim o que ninguém pode fazer. Você mesma disse. Ele sabe até o perfume que eu uso, ele--!”

“Sim, respeito isso. Mas você tá grávida, meu! Dele! E alguém não quer que essa criança fique no mundo nem por mais um dia! E o resto todo foi pro saco! ‘Tamos presas aqui, cacete! Graças a Deus que ‘cê tem eu, ó...”

***

A boa senhora despertou com um urro de dor tremendo. Era como um grande lagarto pré-histórico gritando em um megafone. Ensurdecedor. Demoníaco. Logo acima de sua cabeça, um sistema de tubos improvisados gerava pingos d’água lentos e ritmados. Era excruciante. E, amarrada com cipós endurecidos, era um misto de claustrofobia e pânico. Ao tentar se erguer, escapar, viu o caçador-menino com um cachimbo talhado toscamente apagado na boca sorridente. Entendeu que foi de uma das suas vítimas, o jovenzinho sobrevivente do asfalto que ela sobrecarregou com o próprio potencial sinistro. Brevemente, não conseguiu evitar certo orgulho em ter se livrado da maioria deles antes de começar...

Enquanto procurava uma forma de se livrar daquela tortura, entendeu frases entrecortadas do “discurso vitorioso” daquele símio. Já ouvira aquilo muitas vezes antes... “Render-se”, “desistir”, “desfazer o mal que causou”, “abandonar aquela terra”... Arrogante como todos da espécie. Arrogante como o maldito escritor.

Aí, percebeu uma coisa.

Se livrou dos cipós com um movimento.

Em habitações de símio, precisava ficar curvada. Mas a reação do moleque a sua altura valia o incômodo.

Seu hálito podre cobriu momentaneamente o rosto de sua próxima refeição – o fato de ser visível indicava o quão denso e pútrido era.

“Pedro... Pedrinho. Só um de vocês saberia como dar nós de saci.”

E abriu a boca.

***

Terminou. A velha criatura estava exultante. Ria como se fosse a primeira vez. Em poucos dias, teria o silêncio plácido apenas para si. Quando os humanos sobreviventes e não alterados terminassem, canibalismo não seria um problema. E, a bem da verdade, só precisava comer uma vez a cada sete anos – qualquer outra refeição, nesse meio tempo, era mero capricho.

Agora, uma Cuca poderia descansar. E rir para si mesma.

Exceto por aquele aroma perturbador e distante de não-me-esqueças




3 comentários:

  1. Achei muito bom o fato de ser a Cuca... Achei realmente bacana a ideia toda, a interação entre as historias, mas pra mim ficou um pouco confusa a narrativa desse ultimo conto. Por mais de uma vez eu me perdi e voltei pra reler... E também a forma como acabou me decepcionou um pouquinho pq deixou muita coisa em aberto...

    Tirando isso, realmente te dou os parabéns, pq você conseguiu fazer com que ao longo dos textos se criassem muitas teorias^^

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    1. Ora, não reclame! Se está confuso é porque tento escrever de forma que represente o caos da situação. Sou caótico. E um FORTE*


      (*): referência a http://bufasdanadas.com.

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