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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

"O instinto é coletivo."


Antes de ler o conto abaixo, talvez seja mais interessante, antes, ler BrendaVictor , Campeão e o da tempestade. Embora as histórias sejam fechadas, todas fazem parte do mesmo processo... Assim como os próximos dois contos deste autor. 





Tudo que pode dar errado dará. A situação era urgente e, para variar, estava sem seu carro pessoal – três dias antes, o radiador tinha, praticamente, derretido –, sem uma viatura e, segundo sua mãe, não poderia envolver Rita nisso – ou seja, sem carona. “É um problema de família, literalmente”, advertira dona Carmen. Para piorar, não frequentava o bairro onde passou a infância desde que entrou para a PM – mesmo à paisana, podia ser perigoso. Quando foi possível ingressar uma faculdade e estudar Medicina, se afastou ainda mais daquela realidade... Porém, aquela tempestade levou tudo isso embora; algo horrível estava acontecendo e não podia continuar negando.

A mãe tinha o contaminado com a preocupação pela irmã, sua tia Ivone. Nunca entendeu a relação das duas, essa conexão. Na verdade, não eram irmãs biológicas: Ivone foi adotada quando já era, para os padrões da época, uma mulher. O assunto não era muito abordado, mas dava a entender, às vezes, que foi o mínimo que podiam fazer em agradecimento... Um assunto do passado que ainda era vivo, influente... Uma das poucas vezes que, ainda criança, perguntou sobre isso – a diferença entre as duas estava “na pele” –, era distraído com algum bolo ou coisa assim recém-saídos do forno. Agora, esses aspectos pareciam cruciais... Por isso, a espera pelo ônibus 3531 era desesperadora. As outras vinte e poucas pessoas à sua frente, na fila, eram desesperadoras. O vento, parecendo anunciar outra tempestade, era desesperador.

Algo horrível estava acontecendo. E o ônibus estava atrasado.

***

A manhã de Jussara se tornava péssima no momento em que abria os olhos. Precisava acordar às quatro horas da manhã, arrumar-se, sair, andar por quarenta e cinco minutos e esperar o Everson, motorista do 3531, e começar o primeiro turno do dia. E, pessoalmente, passaria o turno odiando o dia, o seu emprego, os passageiros, o Everson, o 3531 e o que mais fosse possível.

Ninguém entendia Jussara ou as escolhas que fez. Era jovem, era relativamente bonita – sinceramente, seu corpo era chamativo e farto, mesmo que o resto não fosse – e poderia ter sido mais bem sucedida, se tivesse procurado estudar quando teve a chance. Contudo, algo deu errado, no meio de sua trajetória, e se tornou uma mulher que odiava tudo que destacasse sua mediocridade, seu fracasso...

Assim, sonolenta e odiando, cruzando ruas vazias e com iluminação precária, não percebeu o vulto se aproximando.

***

“Mulher odiosa”, Victor pensava enquanto tentava se acomodar no ônibus lotado. Até pensou em usar da sua autoridade para questionar aquilo, mas resolveu não se deixar levar. Ninguém, afinal, reagia ou reclamava da situação: para todas as pessoas que passavam pela roleta, a cobradora dirigia um olha de desprezo cheio de fúria. Mesmo quando o passageiro era mais simpático, ignorava os cumprimentos e as tentativas de conversa fiada. Victor considerava isso aviltante; primeiro, se não gosta de lidar com gente, não trabalhe com gente, e, depois, um mínimo de educação e boa vontade. “É esse tipo de pessoa que torna o mundo um lugar pior”, refletiu, e o veículo começou a se mover, finalmente.

Era difícil, dada à situação, não pensar em Rita e no menino ou menina que estavam para por no mundo. Um mundo cheio de maldade e terrores indizíveis, pelo jeito. Onde uma menina era espancada por colegas, onde esses colegas eram mortos por outro estudante às machadadas, onde menininhos eram abandonados e se tornavam monstruosidades... E isso era só o que ele sabia. No caso de Matheus, por exemplo, passou noites estudando para encontrar uma explicação para aquilo. Não havia – como diria Liz Tremayne, apenas “o horror em nossas vidas” explica.

          Por isso, estava tão nervoso, e isso era visível: quando reparou, a mão que usava para manter o equilíbrio, segurando na barra de metal mais próxima, estava sangrando. E era muito sangue. A ansiedade, a preocupação e o medo cobraram seu preço...

          ...E mais.

***
Ninguém entendia Jussara ou as escolhas que fez. E, agora, ela não entendia o que havia lhe acontecido... Inconscientemente, ela soube que aquele ódio, alimentado por muitos anos, ganhara nova força, um sentido e, talvez... E, talvez, tivesse permitido matar a vontade que ela tinha matar.

          Por isso, ao longo das horas de trabalho – as detestáveis horas de trabalho –, em sua mente, só ocorria a fugaz e confusa lembrança de um vulto saltitando na escuridão em sua direção... E, depois, um sorriso com mil dentes de jade.

          Com isso, o odor do sangue – o odor do sangue da sua presa! – despertou algo, finalmente.

          E, Deus, era bom demais!

***

O que se seguiu, segundo o próprio Victor, “foi mais rápido do que o tempo que leva pra contar”. Ao tentar limpar o sangue e ver se o corte era, enfim, grave, algo no limiar da consciência o alertou – como se algo muito antigo, lá no fundo, soubesse o que estava por vir.

Nisso, levantou o rosto e viu a cobradora. Retorcendo-se. Emitindo sons mudos. Estalando todos os ossos do corpo simultaneamente – e em ângulos impossíveis. E algo denso como neblina erguia-se de seu corpo, tomando parte do teto da condução. Acreditando que estava mais afetado do que imaginava, fechou os olhos e esperou que o delírio passasse... Contudo, não percebeu que ss demais pessoas no interior do veículo também viam a cena... E não sabiam como reagir! Era como assistir ao parto de uma baleia ou a filmagem de alguém fazendo algo que daria comicamente errado; não se consegue desviar o olhar!

Com esse poucos momentos de estarrecimento imóvel, a “neblina” tomou todo o ônibus e, portanto, Victor nunca soube dizer o que aconteceu naqueles minutos, exceto por um fulgor esmeralda que atravessou, mesmo assim, suas pálpebras cerradas. Mais tarde, ele saberia que “isso” era “poder”, simplesmente. Porém, mais uma vez, isso era coisa para se pensar quando pudesse parar de correr e atirar.

***

“Leve a arma contigo. E não me olha assim! Eu sei que tem uma... Se é que é só uma... Em casa!”, Carmen ordenou. E ele seguiu a ordem. Um dia, questionaria a mãe sobre essas previsões, mas, no momento, precisava ficar escondido e tomar ar. Controlava-se para não ofegar alto demais – o som atrairia muitos. Pior que ofegar era, na verdade, o medo. Em seis anos como policial militar, mesmo invadindo áreas dominadas pelo tráfico e com tiros de 9mm e de sete-meia-dois passando a centímetros de sua cabeça, nunca se sentiu assim; na verdade, entre seus colegas, o apelido que possuía era “Palha”, como em “coração de palha” – um cara que não vacilava sob pressão. Aquilo, entretanto, era pavor verdadeiro. Pavor da caçada – e entendia, agora, porque todo fogueteiro era encontrado chorando, urinando nas próprias roupas em uma viela suja.

O maior problema era que o transporte coletivo foi só o começo: eles se multiplicaram, nas ruas. Era uma ciranda selvagem de transeuntes, comerciantes, os passageiros do 3531, três ou quatro garis e, num gracejo mórbido, até um b-boy e um capoeirista, Victor reparou. E todos agindo como uma consciência coletiva de ódio...

“Como predadores... Como um arcossauro!”, e isso trouxe lembranças antigas que não faziam o menor sentido, considerando tudo. A preocupação, agora, era que as balas estavam acabando... E uma ele precisaria para o caso de “ficar sem opções”. Por ora, estava conseguindo manter-se escondido e salvo, mas o comportamento de rapina era eficiente, e Victor estava muito ciente disso.

***

Aquilo que foi Jussara fazia parte, agora, de uma única mente e, exceto pelo homem sábio e a cozinheira, ninguém era excluído... Todos eram o coletivo. Todos eram filhos da senhora sorridente, agora.

***

Por um milagre... Ou por mera piada... Victor chegou ao portão da pequena casa de sua tia. A tensão e a adrenalina, nesta altura, eram avassaladoras... Por algum motivo, seus sentidos pareciam igualmente afetados: podia ouvir, nitidamente, a espécie de gorjeio que os caçadores faziam, mas, era engraçado, o seu olfato denunciava o incrível aroma do bolo de milho que só Ivone era capaz de preparar. Com isso, criou coragem para se mexer, novamente. Precisava entrar na casa. Precisava saber. Mas e aquela sensação? Novamente, uma concepção ancestral de perigo o alertava... E uma memória de infância endossava isso. Só que não podia abandonar sua tia, podia?

          Entrou.

          E aquele sorriso o recebeu.



7 comentários:

  1. Algumas coisas começam a se encaixar nessa multidão de confusões. Digo que essa parte fez as outras, antes bagunçadas, se tornarem mais saborosas.

    Aguardo ansiosamente o tempero final e o servir do prato (as próximas duas partes). Algo me diz que só sentirei o sabor do alimento perfeitamente assim que concluído; algo me diz que vou adorar o desfecho... XD

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  2. AAAAAAAAI que agonia!!! Cadê as outras partes Sr Mano??? Ansiedade!!!!!

    Parabéns ^^

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  3. Mano... Você é "o cara" (nada de pejorativo rs). Muito bom... Aliás... Todas as suas histórias são muito boas. Eu compraria um livro seu numa boa (se fosse baratinho, é claro... kkkk)

    Parabéns!

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    1. Poxa, valeu, Edilton! :D
      Significa muito.

      Ainda escreverei um livro sobre ex-participantes de reality shows envolvidos com a maldição de uma lhama infernal. Será acessível, hahaha.

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  4. Muito bom! Gosto dessa alternância entre recordação/passado e ação/presente. Dá para construir o personagem e narrar a história simultaneamente.
    Segue bem!
    Em breve lerei as duas partes finais.

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