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quinta-feira, 21 de março de 2013

Cânticos


...Chora a natureza pródiga,
Da chuva quando cai.
Pra levar as impurezas
São as lágrimas do pai..


Rádio. Despertador. Até organizar as idéias na cabeça leva um tempinho, acordando de repente. Zeca. Exaltasamba. Estranho tocar uma dessas as 4h45min da manhã de um novo dia. O normal é um troço mais triste... Bom, estranho mesmo é acordar as 4h45min da manhã. Quase duas horas antes do que precisaria, realmente, acordar... Francamente... Claro, se acordar as 6h30min, vai ter que disputar o banheiro e o espaço com as outras oito pessoas que dividem o barraco de quatro cômodos – dois quartos, uma sala-cozinha-lavanderia-e-eventual-quarto-de-visitas e o banheiro mais precário da Criação – com você. Vale a pena acordar as 4h45min da manhã. Usa o banheiro, na paz, e pode se arrumar pro trampo sem ter que esbarrar em ninguém 11 vezes e ter a única camisa limpa do uniforme “customizada” pelo achocolatado-de-cinco-colheradas-bem-cheias da Elisângela. Tudo bem normal, então. Mas porque aquela música tocou as 4h45min da manhã...?

Tá certo. São 6h34min. Pegar o ônibus mais cedo é uma boa: tá mais vazio e, com uma grande sorte, é o “de refrigeração”. Vamos lá. Tchau, Elizângela. Avisa a Carmen, por favor, mãe. Ô, Marcelle, faz minha fita lá com a Nandinha, valeu? Tchau, mãe. Também amo a senhora... Hã? Ah, vou ver se você merece um desses, Elizângela... Não, Raimundo. Não quero comprar seu tênis, seu pé é menor que o meu.

Busão. Busão. Se chego cedo, atrasa. Se atraso, ele passa quinze minutos antes do previsto. Nunca chega, essa porra... Se tivesse umas menina por perto, pelo menos tinha algo pra curtir na paisagem. Não que dê pra ignorar, com a presença de um poderosa, o cheiro da vala...

Busão. Ah, dobrou lá na esquina, tá vindo. Meia hora de viagem até a empresa. Até lá, só vai entrar mais umas 20 pessoas e eu não vou precisar ceder o lugar pruma tia e nem dividir o banco com um cara de 180kg. Não hoje, graças a Deus...

O motorista deve tá animado. Bem, é meio óbvio: é segunda-feira, e no fim de semana ele deve ter tido tempo de traçar a Dorinha. Tenho pena do seu José se a Marta descobre isso... A Marta parece um javali bípede, vai vendo... Mas, como ele tá animado, liga o som do ônibus pra aliviar o ambiente. Mexe um pouco na sintonia e sai o som...

...Chuva vem me dizer!
A enxurrada seca...
A enxurrada s--

Marisa Monte. Mas ele trocou logo de estação. Foi pra do forró. Não dá pra piorar... Quê? Tá, me dá dois pacotinho, moça... É um real? Beleza. De nada.

Tá bem abafado hoje. Trabalhar no verão, não dá pra querer. Devia ser proibido na Constituição, saca? Ah, chegar suado na empresa é triste... Falando nela, tá quase na parada. Hm, ainda dá uns 15 minutos pra conversar com a Karol, antes de começar o expediente. Pense numa gatinha de cabelo cacheado, morena e de olho verde. Olho verde dela, não lente. Pois é, é a Karol, essa raridade. Pô, é de pagar pra trabalhar aqui, se deixarem olhar pra ela durante umas horas. Menina mais linda, cara...

E aí, Karol? Tudo beleza, gata? Ah, foi no show, é?! Nem me chama, né...? Dá licença... “Ciúme da minha namorada”? Que namorada?! Saca só, pra que dizer isso? Ah, EU tô mentindo??! Caiu no meu conceito, Karol... Vou embora. Falou aí. Não... Não tô com raiva, não. Cê que não valoriza. Não tô com raiva! Quer um beijo de prova? Sentiu o amor, agora? Mas tenho que ir, mesmo, agora... É, eu também... Até amanhã...

É de enlouquecer. Oito meses de chove-não-molha é de enlouquecer. Queria saber o que tá faltando, porra... Tsc, tenho que assinar a entrada, ainda. Opa, fala, Carlos. Fala, Edson. E aquele lance? Tá, conta depois...

Perder dez horas do dia separando peças da produção é de enlouquecer mesmo. Ixi, falei pra fora. Bom que o seu Ernesto não por perto. Ficar de pé, quase o tempo todo, escolhendo esse e descartando aquele é de levar o cara pro sanatório. Urgentemente. Sempre rola um papo – quando o Ernesto sai –, mas trabalhar perto do Wilson é só pra saber o que ele fez com “aquela menina de 17 ano que conheceu na balada, ontem”. Porra, quero ir pra casa. Quero a Karol. Quero comprar uma moto... E só foram duas horas de “penitência”, ainda...

Um pouco depois das 16 horas, começou a chover. E muito, cara, vai vendo... Também, abafado do jeito que tava, era óbvio demais. Refrescou, pelo menos. O foda é ficar o Wilson dizendo a cada três minutos “dá-lhe água”...

Iiiiih, caraca! Caiu um raio num dos postes da rua! O bairro todo sem luz. Inclusive a empresa. Vão liberar mais cedo, hoje. Cara, é de sair e comemorar... Ou matar o Wilson. Não, véio, valeu. Não precisa me apresentar pruma amiga dela, não. Valeu.

Agora, é pegar o ônibus de volta. Bom, se a rua não tivesse alagada, ia ser bem melhor... Ih, olha lá! A Karol, perto do portão!

Tá querendo se molhar toda, é? Hehe, não, vou pra casa, agora. Não, não tô com pressa. Opa, beleza, claro, vou com você até o Centro.

Pense numa menina com o cabelo mais do que perfurmado. Ela enconstou a cabeça no meu ombro, quando sentamos no busão, que deu pra sentir aquele cheiro de morango ou sei lá o quê. É de enlouquecer. Ela conta do show, de novo, mas mal escuto a história toda. Quem quer saber do Naldinho, pô? Vê se me erra...

Chegou no Centro. Sei onde fica, sim, essa loja. A mãe e a Marcelle curtem as roupa de lá. Quer ajuda pra vestir lá, é, hehehe? Ih, não bate! Parei, ó!

Cara, quando ela mostrou, experimentando, o vestido que queria, foi de ajoelhar e agradecer. Não sabia como ela ficava de branco e... Foi coisa de anjo. Coisa divina, juro. Ela ficou toda errada, quando falei, hehehe...

Tá, beleza, entregou pra vendedora, pagou, recolheu, vambora. No meio da conversa, na rua, agarrado nela porque o guarda-chuva não protegia os dois direito, olho pra uma livraria e vejo a parada da Elizângela. Vem cá comigo! Entro e peço o livro. “Meu pequeno Milagre”. Bem a cara da Elizângela, não se nega... Meio caro, mas, por hoje, ela merece sem ter feito por merecer... Bonitos, os desenhos... Explico pra Karol, a história toda, e ela fica sorrindo um bom tempo. Engraçado.

Agora, é esperar o ônibus dela. Com essa chuva, deve demorar. Beleza. Ela mora mais longe do Centro que eu, podemos conversar bastante. Ela fala que não sabia dos meus irmãos todos, da minhas primas morando com a gente – como a Elizângela – porque os pais abandonaram e que eu era legal assim. Que, mesmo louco pra comprar uma moto e tal, gastava com coisa pra uma prima... Depois, ela ficou bem quieta.

Fala mais do show, Karol, vai.

Nada. Puxei mais papo, mas ela me olhava e não dizia nada. Ficava pensativa. Estranho, ó. Olhei pro lado. Tá vindo o seu, lá. Tava meio longe ainda, mas vindo. Ela olhou, de novo, pra mim, direto no olho.

— Me beija antes que ele chegue.

Admito que fiquei tonto, não esperava essa. Achei que ia ficar no “só somos amigos” pra sempre, na real. Fiquei tonto, mas não muito. O ônibus dela chegou uns sete minutos depois, mas pareceu uns setenta, ó...

Ela subiu. Pediu pra ligar. Vou ligar. Ficou abanando da janela. Cara, só não posso morrer, agora, porque, mesmo tendo realizado o único verdadeiro desejo que tinha, quero que se realize todo dia. Karol. Linda, divertida e... Tá comigo!!!

Ih, chegou o meu, hehe...

Pensar nela o trajeto todo foi inevitável. Nem reparei na viagem. Nem na tempestade. Nem o morro parecia morro, do jeito que eu tava. Descendo, é ir pra casa. Ligar pra ela. Digo pra mãe que pago a ligação, quando chegar a conta, porque se não passar meia hora ou mais falando com ela, não vai dar... Pô, gamadão assim, no “primeiro dia”, é novidade, hehehehe... Até cantei aquela música da Sangalo, da chuva lá... Até me estranhei...

Ixi, muito movimento na área pra tanta chuva assim. Molhar o uniforme dá nada, hoje, mas... Muito movimento pro lado lá da rua de casa... Estranho, eu...

MEU DEUS!!!

Era só o pessoal da área, ajudando quem a tempestade tinha derrubado a casa. E a nossa casa. Cara, não...! Por favor...!

Graças a Deus! A mãe tá ali! Ô, mãe!! Aqui, ó, mãe! Pô, mãe... Que tristeza, nossa casa... Geral tá bem? O Ricardinho tá ali, já vi, e...

A chuva iludia, mas a mãe chorava muito. Muito mesmo. Mais que quando o pai morreu naquele assalto. Quando o pai morreu assaltando... Eu tinha só oito e...

— A-a E-Eliz chegou mais cedo, h-hoje, Adão e... E e-ela ficou sozinha e-e-esperando alguém chegar, me disseram... Caiu t-tudo em c-c-cima del-la, Adão! ...E-e mais a água e--













Debaixo do uniforme, dentro de duas sacolas da livraria, “Meu pequeno Milagre”.

2 comentários:

  1. Oi, achei seu conto legal, a narrativa muito boa para os mais jovens e de fácil entendimento. Para mim que sou um pouquinho mais velha(rsrs), achei um pouco complicado, mas mesmo assim entendi.

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    1. Ah, Ieda, não diga isso, hehe! :D
      A ideia era passar um pouco da rotina corrida de alguém mais jovem, realmente. Quando quero mostrar esse aspecto, sempre uso, em geral, o texto mais "rápido".

      Mas fico bem feliz por ter gostado!

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