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terça-feira, 19 de março de 2013

A Vingança de Kali: segunda parte.


Mortes eram algo comum na rotina de Ed e seus amigos. Mesmo aposentado, não era possível ficar distante dos noticiários policiais e da violência. Nada do que ocorresse poderia ser classificado como 'surpreendente'... até agora.
Ed desligou o telefone e ficou ruminando as últimas notícias. Morte em família. A sensação era exatamente essa. Rainier, Laís e Franz brutalmente assassinados. Sem motivos. Sem piedade.
Vocês serão vingados, meus amigos - pensou Hedomon. Quem lhes tirou a possibilidade de um futuro terá o mesmo tratamento. Sem piedade.

Terom não era um lugar ruim para se viver. Cidade calma, poucos crimes e uma população pequena. A única coisa ruim era a fofoca. Um espirro e, segundos após, o outro lado da cidade já comentaria sua pneumonia. Tudo era maximizado para o mal. Mas era um preço baixo a se pagar pela paz. Bastava desprezar os semeadores de discórdia e tudo o mais fluiría.
Rainier e Laís vieram para Terom a convite de Franz. Amigos de longa data, Franz trouxe o casal para a pacata cidade com a intenção de tirá-los um pouco da rotina extenuante da metrópole. Nunca imaginaram o que aguardava-os...
- Sejam bem-vindos ao mundo fantástico de Oz, meus amigos - disse Franz. - Viajaram bem?
- Cara, após umas 4 mil tentativas e uns 3 GPS depois, finalmente chegamos. - ressaltou, Rainier, acompanhado pela esposa.
Os três riram. Realmente as estradas até Terom eram péssimas. 
- Bem, o que desejam fazer primeiro? Comer, descansar ou conhecer melhor a cidade? - questionou Franz.
O casal trocou olhares rapidamente e, quase que a uma, respondeu:
- Seguiremos a ordem que você sugeriu. Mas não ficaremos por aqui. Nossa meta é acampar, o mais longe possível do conceito de civilização. Só os dois. - frisou Laís.
- Como queiram. Entretanto, não poderei permanecer muito tempo por aqui. Volto à noite para a capital. Negócios. 
- Franz, não se prenda aqui por nossa causa. Na boa. - disse Rainier. - Estamos preparados para passar o final de semana todo em nossa barraca. Será divertido.
Franz riu. Estava preocupado com a mentira que foi obrigado a contar. Rainier e Laís não queriam ser perturbados e, por isso, não contou sequer a Emanuel, seu amigo de trabalho, sobre a visita do casal. Eles queriam privacidade e a teriam.
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Hedomon chegou à Terom antes do previsto. Emanuel o aguardava com mais dois policiais. Todos estavam à paisana e pareciam abatidos. Era óbvio que os óculos escuros não estavam sendo usados apenas esteticamente.
- Novidades? - perguntou Ed, enquanto apertava a mão fria de Emanuel.
- Não, o que, na verdade, me traz um certo sossego. Não aguento mais esse clima filho da puta de velório que está no ar. Todos me olham como se eu fosse o matador. 
- Entendo. Tá uma merda trabalhar assim, não?
- Estaria se as vítimas fossem gente estranha, mas são pessoas que eu conheci. Isso me irrita. A porra da impotência diante do desconhecido me enlouquece. - confidenciou Emanuel.
Seguiram até o hotel onde ficaria Ed. O lugar não era dos melhores, mas era aceitável. O quarto seria o recanto para que o investigador pudesse apurar as reais circunstâncias dos crimes. 
Emanuel ia embora quando foi interrompido por Hedomon:
- Uma pergunta está me incomodando, Mano.
Emanuel olhou para Hedomon. Ouvir seu apelido era indício de algo muito ruim.
- Diga.
Ed parou e indagou:
- Cara, me corrija se eu estiver errado, mas você e o Franz eram amigos, certo?
- Sim.
- Você mora aqui e ele também morava. Porém nenhum dos dois sabia que o Rainier estava com a mulher nessa cidade do tamanho de uma merda de pílula anticoncepcional? Isso é uma piada? Gente estranha aqui é notada rapidamente. 
Emanuel encarou e respondeu sem meias palavras:
- Disse tudo. Éramos amigos. Mas isso nunca significou que eu soubesse tudo sobre ele, muito menos sobre o que ocorre nessa cidade. Além disso, que porra eu tenho a ver com a vontade de um casal que quer se esconder? Eles se fuderam por conta própria, o que não quer dizer que quem fez essa cagada irá se safar.
Hedomon riu. Emanuel saiu em silêncio.

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Rainier e Laís já estavam em sua barraca. O silêncio era grande e eles estavam entrelaçados, aninhados um nos braços do outro. 
- Foi uma decisão acertada? - inquiriu Laís. 
- Que?
- Estarmos aqui. Será que estamos agindo corretamente? Não gosto desse sumiço. Nossos parentes ficarão preocupados.
- Laís, meu anjo, não há com o que se preocupar. É carnaval. Todo mundo viaja, sai para esquecer o sufoco da rotina. - Rainier respondeu pacientemente.
Ela suspirou e voltou a encostar a cabeça no peito do marido. Ela confiava cegamente nele.
O casal adormeceu. Não sabiam que essa seria a última noite de suas vidas.

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Tatiana estava desesperada. Seus pais perguntavam a todo instante sobre o paradeiro de Laís. Caralho, que se foda essa maldita. Como eu posso saber onde ela está?
Laís e Tatiana eram irmãs. Não irmãs tradicionais. Suas rivalidades beiravam o ódio, mas isso teria que ser deixado de lado. Para Tatiana, os pais eram uma prioridade, mesmo não compreendendo o motivo que os levava a amar mais a irmã caçula. 
Mesmo após procurar em todas as redes sociais, ligar para o celular e ter deixado milhares de mensagens, não havia o menor traço de sua irmã. Mas ela a encontraria e, quando isso acontecesse, iria mostrar como é que se deve respeitar os pais.

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Eles estavam dormindo. Ele, ao contrário, tinha todos os sentidos alertas. Seu faro indicava que a caça era pequena, mas adocicada. Já fazia muito tempo que não lhe ofertavam nada e a fome provocava dores. Os pés também doíam a ponto de nublar a visão. A cada passo, novas visões de um passado que talvez não lhe pertencia surgiam. Crianças e uma mulher. Choro. Um velório. 
Depois... só a dor de um retorno de um lugar do qual jamais deveria ter saído.
Essa era sua maldição...

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O bosque Rogen foi o último lugar onde o jovem casal ficou. Ali, Franz e a equipe encontraram os corpos. Um massacre. Crueldade em um nível que ele não conseguia se lembrar de ter visto, mesmo em filmes. Como alguém pode fazer tanta maldade com pessoas que sequer conhece? - refletiu.
Ele olhou para Laís e não reconheceu a mulher que, dias antes, sorria e buscava apenas a tranquilidade para estar ao lado de quem amava. Franz tentou imaginar o que os levou a entrarem tanto no bosque, um lugar calmo, mas isolado demais. 
Lembrou-se de tê-los avisado sobre o perigo de ficarem, como sempre, tão longe da civilização. Também lembrou-se da resposta: estamos juntos e não há mal que possa nos atingir.
Como estavam enganados.

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A criatura arrastava o corpo do macho, deixando um rastro de sangue no chão. O homem ferido gemia e murmurava palavras desconexas, já entrando em estado de choque. A sede diminuíra com o sangue da fêmea, mas ele voltaria para morder a carne. Só o líquido não era suficiente para diminuir a dor. Ele precisava de carne, muita carne.
Então, seus instintos o alertaram para um problema. Havia mais alguém rondando, um predador como ele, porém com outras motivações. O cheiro do visitante inesperado emanava ódio, algo profundamente mal, bem diferente da criatura que só queria alimentar-se.
Os mesmos instintos que lhe guiavam a matar, também o levaram a fugir, deixando Rainier às portas da morte. E o infeliz descobriria, rapidamente,  que a morte seria um alívio.

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Edilton examinava com pesar o corpo de seu amigo. Franz tivera a garganta cortada por um fino fio de aço, num claro gesto de covardia. O rosto fora removido a dentadas e havia uma marca tal qual as que apresentavam Laís e Rainier. Uma letra 'N' estava gravada no corpo. Era a continuidade da morte e seu macabro recado.

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Karen estranhou a demora de seu amigo. Franz iria apenas fotografar a cena do crime e buscar algumas pistas, trabalho rotineiro. No entanto, nada dele. Seus sentidos gritavam, como se algo muito ruim estivesse para acontecer. Ela olhou para Emanuel e comunicou que iria procurar o investigador. 
- Mano!
Emanuel olhou para trás e viu o quanto sua parceira estava abalada. Ela também ainda não tinha visto algo tão grotesco.
- Oi. Que foi?
- Cara, vou procurar o Franz. O carinha já era pra ter voltado.
- Não. Sozinha você não vai pra lugar nenhum, cacete. Tá maluca?
Karen o encarou. Cada segundo perdido nesse bate-boca babaca poderia ser vital.
- Vem comigo, então. Quer bancar o guarda-costas? Não sei pra que tanto drama. - disse, irritada.
Os dois foram em direção ao local onde estava o corpo de Rainier. Não havia se passado mais de 30 minutos desde que Franz fora para o lugar, o que não diminuía em nada a agonia de Karen.
Quando os dois estavam a pouco mais de 10 metros do local, Emanuel ouviu um som rouco, como se fosse alguém sufocando. Ele e Karen correram para ver o que era. Eles jamais se esqueceriam da cena com que se depararam. Franz estava deitado, sangrando muito pelo pescoço e com a face mutilada. Ele gemia e agonizava.  A vida escoava a cada gota de sangue e seus parceiros sabiam que ele morreria. 
Karen se abaixou e chegou próxima do que restava do rosto dele. Sons quase inaudíveis eram proferidos, num gesto de desespero, medo e despedida. Ela começou a chorar e as lágrimas se misturaram ao sangue e pele. A cena era triste demais. 
Os braços do investigador pararam de tremer. Ele falecera e não tivera sequer o direito de fechar os olhos. As pálpebras haviam sido arrancadas.
Emanuel a levantou e viu que ela tinha as mãos sujas de terra e sangue. Karen chorava copiosamente e o abraçou.
- Ele conseguiu me dizer algo. - confidenciou a investigadora.
- Como? O que ele disse? - questionou Emanuel.
Karen ergueu o rosto e respirou profundamente, como se buscasse forças.
- Ele sussurrou para mim: "meus filhos".

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Os investigadores regressaram para suas casas. O clima era de derrota. 
Edilton ficou horas no chuveiro, sempre com as imagens dos amigos mortos. Emanuel voltou para o isolamento de seu apartamento, enquanto Karen estava em um canto escuro de seu quarto, longe da família e de todos. Eles estavam perdidos e já contabilizavam 3 mortos. 
O que eles não sabiam, entretanto, era que a contagem iria aumentar. 

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No meio da madrugada, horas após o encontro dos corpos e a morte de Franz, Ed foi notificado da morte do amigo policial. Ele pediu para que Emanuel o mantivesse fora da história, porém isso era impossível. Só uma mente como a dele poderia auxiliar na busca desse matador. Em nome dos velhos tempos...
Ed - o famoso delegado Hedomon - iria isolar sua família e mantê-la em segurança. Ele também entraria nessa história para combater um mal que já quase o matara. Mas, agora, a experiência estava ao seu lado. 
Ele encontraria o seu pior pesadelo novamente, não importando qual fosse o preço. 

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A noite iluminou a face sem expressão. O porco-do-mato era enorme e tinha em seu dorso um menino. Com um olho só, o garoto contemplava a escuridão e farejava o inimigo que esteve ali poucos minutos antes. Ele caçaria esse inimigo como fez com os outros invasores e lhes daria a mesma dose de dor e sofrimento. 
O menino acariciou a cabeça do porco e apontou para a frente. O porco partiu em disparada na direção indicada, enquanto o moleque gritava como se estivesse sendo fatiado por uma faca aquecida no fogo. Era ódio. Era a vontade de matar. Era a mistura de alucinógenos e uma inocência destruída pela tortura. Assim renasceu uma lenda. Assim morreriam muitos.


A continuidade deste conto seguirá o seguinte calendário:

Quarta-feira 27/03/2013: Edilton Nunes Quinta-feira 04/04/2013: Emanuel Cantanhêde Sexta-feira 12/04/2013: Karen Alvares Sábado 20/04/2013: Tatiana Ruiz Domingo 28/04/2013: Ednelson Jr

Agradeço ao Rainier e a todos que estão nessa iniciativa fantástica. Espero que curtam essa minha simplória contribuição. 
Franz Lima.




13 comentários:

  1. Muito bom, mas a minha curiosidade é grande de mais....Vou ter que esperar mais uma semana?

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    1. Ieda, fico muito feliz que tenha gostado do conto, mas, infelizmente, o calendário é longo e a espera é de uma semana entre cada escritor.
      Entretanto, garanto que a tendência é a de uma continuidade melhor que a outra.
      Aguardamos você no próximo episódio...

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  2. Caralho, juro que nunca pensei na possibilidade que você levantou, Franz! Ótima sacada e percepção do primeiro texto. Tirando a clara questão de estilo de escrita, que um charme dos contos em conjunto, o texto se encaixou perfeitamente no primeiro, nos mínimos detalhes e até nos que eu desapercebi. Você ainda conseguiu dar uma outra direção ao que eu imaginei!

    Minhas expectativas para o final desta jornada só aumentaram. E violentamente!

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    1. Porra, velho, fico muito feliz com seu comentário. Foi uma luta não me distanciar do seu estilo de narrativa e também abordar todas as possibilidades - que eu percebi - do texto anterior. Mas o resultado final me deixou também muito animado e, certamente, teremos muito mais novidades.
      Abraços e obrigado pelos elogios.

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  3. Franz, meus parabéns pela sua colaboração no conto coletivo! Ficou muito boa! Você conseguiu imprimir um pouco do seu jeito de escrever, mas respeitando a proposta (linguajar, clima etc) lançado pelo Rainier. Sinto que o desfecho será o meu maior desafio literário, mas farei algo à altura :) Estou apreciando o rumo que a história está seguindo...

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    1. Ed, honestamente eu não gostaria de estar no seu lugar. É uma verdadeira aula de escrita ter que produzir algo onde há tantas opções possíveis. É muito legal receber o retorno tão positivo da parte de vocês. Acreditem, foi uma dificuldade só. Reescrevi o texto para me adaptar ao anterior e pesquisei bastante.
      Obrigado pelo comentário e saiba que tenho ótimas expectativas quanto às próximas partes.
      Abraços.

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  4. Maravilhoso. Estou muito ansioso! Estou achando que essa história está tomando um rumo interessante.

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    1. O mais legal é que cada novo escritor irá traçar um rumo que nenhum de nós pode prever. Eu tenho minha visão, mas sei que a sequência dificilmente irá se enquadrar no que previ.
      Grato pelo comentário e o elogio.

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    2. Sim, isso é muito legal. Você espera que a história vá para um lado, mas ela toma outro rumo... Eu estou empolgado já esperando o que virá esta semana! XD

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  5. Excelente! O suspense se mantém forte, e confesso que estou adorando! Não consigo imaginar o que se seguirá daí para frente, e essa imprevisibilidade é fenomenal, muito instigante.
    Gostei dos diálogos e do ritmo a cada transição de cena.
    Parabéns, Franz!

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    1. Rodrigo, aproveitando a oportunidade, aguarde para o que virá no meu romance 'Apogeu do Abismo', onde vou trabalhar ainda mais esse tipo de narrativa.
      Valeu pelo comentário elogioso. Tenha certeza que o suspense só tende a aumentar rsrsrsrs.
      Abraços.

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  6. Franz, ficou fantástico seu texto! Como disseram nos comentários, essa imprevisibilidade é ótima! Vish, só tô vendo textos muito bons, isso só aumenta a responsabilidade de nós que estamos por vir depois. Que medo! (duplamente! rs)

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    1. Karen, seu medo é exatemente o mesmo que senti ao iniciar esse texto. Como estou escrevendo um romance, ficou um pouco mais simples de lidar com os diálogos e a ambientação. Mas confio em todos do grupo e sei que o resultado final será fantástico.
      Obrigado pelo apoio e os elogios.

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