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sábado, 19 de janeiro de 2013

Como decorar uma parede branca.

Por: Juliano Rossin. 
Desde que se mudara para o apartamento novo, Flavio tinha dúvidas sobre o que fazer com a parede branca da sala, aquela que ficava atrás do sofá creme de três lugares.
Sendo um decorador de nome consolidado na cidade, que já havia decorado a casa de alguns dos mais ricos e famosos da região, e ainda ganho concursos internacionais, ele achava esse fato impossível de acontecer e inadmissível para alguém com o seu talento.
Havia ainda o adicional de que aquela não era uma parede qualquer na qual aplicaria sua criatividade. Aquela era a sua parede, na sua sala e a sua casa devia ter a decoração mais extraordinária já vista. Um exemplo de como o que ele fazia era perfeito e de gosto inquestionável.
O pior foi quando teve de ouvir o comentário de sua empregada – que provavelmente entendia de decoração assim como ele entendia de futebol: absolutamente nada – que primeiro lhe perguntou se deixar aquela parede branca era um novo experimento, e se fosse, que tinha gostado, antes básica assim do que rebuscada como o restante da casa, ela havia completado.
Básico! Como assim básico? Ele estava sendo chamado de básico por alguém que não tinha um pingo de conhecimento técnico na área, mas mesmo assim aquilo lhe subiu o sangue. Ele nunca poderia ser chamado de básico. Aquilo era o mesmo que ser tratado como apenas mais um pintorzinho de paredes qualquer.

Todas as ideias que já tivera se tornaram erradas para aquele espaço. Cores, objetos, texturas, todas provaram-se erradas e medonhas. Isso quando não eram de extremo mal gosto.
As noites começaram a se tornar longas pois as passava quase todas em claro, com esporádicos cochilos onde tudo que ele sonhava acabava em uma parede medonhamente pálida que o engolia sem nunca se saciar.

O trabalho foi sua primeira baixa. O humor havia lhe fugido e a criatividade se arrastava no fundo de uma poça de lama. A preocupação constante em o que fazer com a parede lhe fez perder vários trabalhos importantes e seu nome foi aos poucos deixando de ser mencionado entre os influentes.

A saúde foi logo em seguida. Sem fome e com o sono sempre em débito, seu corpo foi demonstrando abatimento, olhos fundos e pele seca sobre ossos pronunciados. Perdera peso com rapidez, mas parecia não ligar. Era a parede a única coisa com a qual se importava. E o que estava mexendo com sua mente também.

Certo dia, em um momento de desespero, sentou-se frente à parede com uma arma na mão. Fazer uma prateleira com armas, tipo colecionador? Não. Ele estava sucumbindo ao desejo daquela parede, o desejo de continuar incólume. Mas ele não podia continuar vivo depois dessa decisão. Então iria colocar uma bala no meio da cabeça, bem ali, na frente da maldita. E mesmo que estivesse agendado para aquele dia receber a visita da Sra. Muricy - uma cliente que nunca o deixaria -, não conseguia esperar um minuto mais.

Mas tudo mudou quando a campainha tocou. Estaria a Sra. Muricy tão adiantada assim? – pensou ele enquanto olhava o relógio de pulso. Então guardou a arma nas costas, presa ao cós da calça e protegida da vista de outrem pela camiseta que caia por cima. Ao abrir a porta ele se surpreendeu com quem estava ali. Aquela era uma das Damas do Senhor. 
As Damas do Senhor eram senhoras que não tinham mais o que fazer iam de casa em casa pregar a palavra do senhor. E as vezes se reuniam para comer salgadinhos e docinhos enquanto maldiziam a vida dos outros, colocando todas a par das últimas traições, separações e atos que consideravam anticristãos que ocorriam na cidade. Mas esta não estava ali por acaso.
- Bom dia – começou ela com um sorriso desgastado -, dona Fátima, mulher que faz a faxina para o senhor, nos pediu para passar falar com senhor. Disse que o senhor parecia precisar de umas palavras de consolo vindas do nosso grande Senhor e protetor, Jesus Cristo, amém.
Que porra essa mulher estava fazendo ali? E que direito a empregada tinha de se intrometer em seus assuntos? Demissão logo pela manhã, é isso que ela merecia, pensou ele. Depois olhou melhor a senhora. O rosto redondo e os cabelos curtos e grisalhos, os olhos um pouco avermelhados e pequenos mas que ganhavam tamanho devido ao óculos de armação aparentando nova. A mão rechonchuda e sem aliança que subiu para lhe tocar o ombro enquanto ela acrescentava:
- Posso entrar para conversarmos? Talvez eu consiga mostrar ao senhor que o mal pelo qual o senhor pode estar passando não é nada se comparado a dor que Ele sentiu quando se sacrificou por uma humanidade que não lhe dá a mínima.
- Claro! Por favor, entre – exclamou Flavio com um brilho diferente no olhar.
Ele a levou até o sofá, em um trajeto onde ela não parou o seu blábláblá nem por um segundo. Mas Flavio não deu a mínima pois pensava em outra coisa.
- Posso me sentar? – perguntou ela.
- Na verdade – disparou Flavio no mesmo instante em que ela começava a arcar o traseiro para se sentar -, se não se incomodar, eu gostaria antes que rezássemos, pois sinto uma aflição muito grande dentro do peito e acho que isso poderia ajudar a me aliviar. A senhora reza comigo?
 A mulher, que até então tinha um pé atrás em relação àquele homem, abriu um sorriso sincero enquanto soltava em um suspiro toda a preocupação que havia acumulado.
- Claro que podemos. Isso vai abençoar nossa conversa e iluminar o nosso caminho. Ótima ideia o senhor teve. Queria eu a ter tido antes.
- Não se preocupe, a senhora pode fazer isso em outros lares que visitar de agora em diante.
Ambos tinham um sorriso estampado no rosto. O dela sincero, o dele nervoso.
- Podemos rezar de olhos fechados, por favor? – pediu ele. - Minha mãe que me ensinou dessa forma. Dizia que mantendo os olhos longe das coisas materiais podíamos sentir mais facilmente o Espírito Santo tocando em nossa alma.
Sem deixar tempo para que ela questionasse tal atitude, fechou os olhos e deixou o queixo cair sobre o peito. As mãos se entrelaçaram diante do corpo. Ficou nessa posição a espera de que ela começasse a prece. Por alguns instantes achou que ela não começaria e já quando pensava em sair daquela posição ele ouviu o Pai Nosso vagaroso que ela recitava.
Seguiu a reza lembrando palavra por palavra como se fosse um religioso fervoroso. Então voltou a abrir os olhos e viu que ela imitava sua postura. Deu um passo para a lateral colocando a senhora entre ele e a parede. Pedia silenciosa e intimamente que a mulher não abrisse os olhos quando o som de sua voz mudasse de lado. Ela não abriu. Ele tirou a arma das costas e apontou para ela, mas daquele ângulo ainda não seria bom. Resolveu arriscar um pouco mais e ajoelhou-se, mas manteve o som de sua voz sempre indo de encontro aos ouvidos dela. Ergueu a arma até estar numa posição de onde, acreditava ele, o tiro de arte sairia perfeito. Ela abriu os olhos quando disse amém, a tempo de ver o projétil sendo cuspido do cano da arma e lhe atingir a cabeça.

Por alguns instantes Flavio ficou paralisado. Não pelo som do disparo, nem por ter acabado de atirar em uma pessoa que além de inocente estava rezando. Seu corpo não acreditava era no que via sobre a parede. Aquela era a coisa mais magnífica que já havia criado até então, e provavelmente nunca mais conseguiria tal proeza de novo. As cores espalhadas, as linhas descendentes escorrendo pela massa branca da parede, e alguns pedaços carnais formavam sua maior obra prima.
Perfeição. Ele havia voltado a sua grande forma. Simplesmente perfeição, talvez esse fosse um bom nome para o que acabara de criar também.
Desceu então os olhos para o corpo da senhora que jazia sobre o sofá. Havia respingos vermelhos e manchas escuras por toda a superfície creme do móvel, e aquilo não combinava com a nova parede. Definitivamente não combinava.
- Droga, terei de trocar o sofá – exasperou ele para o apartamento vazio.

* Juliano Rossin é escritor e tem vários de seus contos publicados na Roda de Escritores

11 comentários:

  1. WOW!!!!! Caramba! Amei. Foi rápido, simples e facil... Só não digo limpo por que ele fez a maior bagunça rs

    Parabéns Juliano^^

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    1. Muito obrigado pelo comentário Engel.

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    2. por nada^^ Eu realmente gosto de textos assim. Eles te estapeiam e te fazem querer mais, mas ao mesmo tempo fica aquela vontade de ir la ajudar ele a se livrar do sofá misturada com a de chamar a policia pela pobre velhinha... A de mudar o sofá é sempre maior, mas enfim... rs

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  2. Chega a ser cômico o modo com o qual o personagem obtém sua perfeição estética da parede. A única certeza dele é agonia que sente ao ver a parede branca, estática, logo após sendo julgada de "básica" - ou simplesmente sem vida. A partir deste momento, a parede pareceu sugar-lhe as energias, oriundas de seu vazio existencial. Digo, ainda, que é mais ou menos a mesma agonia sentida por um desenhista quando vê uma folha de papel em branco, já desesperada pelo desejo de vida em forma de linhas e cores. Bom, ao menos esse desejo de vida foi satisfeito pelo personagem. E da forma mais literal possível.

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    1. hahaha... oloko muié, conseguiu até encaixar teus pesadelos com golhas em branco hahah.... obrigado por acompanhar.

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  3. Juliano Rossin, para começar eu achei tudo perfeito, desde a narração até os detalhes, você lembra muito o meu estilo. Sua narração não se prende ao básico, você entra no psicológico da personagem e mais importante ainda, você deixa o lado Escritor por alguns minutos e passa a atuar, e essa a chave para o grande sucesso. Muitos dos meus escritos passam por um processo complexo. Pois para escrever eu tenho que sentir; chega a ser bizarro, mas aos cantos chego até atuar em voz alta.

    Os diálogos não precisa nem dizer que são excelentes. Stephen King, fazendo seu papel de grande mestre, forjando grandes escritores pelo mundo todo. Assim como eu, descobri que você gosta dele também, e notei traços da sua influência, o que é perfeito.

    Na Roda de Escritores pude ler outros contos de sua autoria, que também reflete grande evolução. Gostei muito de como você transforma o ambiente, e molda a paranoia do personagem, um bloqueio criativo - o que é normal acontecer entre os artista - seguido de insanidade. O conto é isso, você insere o leitor no clímax, sem muita enrolação; parabéns.

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    1. Wow, legal saber que estou melhorando. Melhor ainda saber a tua opinião sobre o texto. Obrigado por comentar.

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  4. Nossa Ju!! parabéns pelo conto... a "arte" realmente ficou bastante peculiar :)

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    1. hahahh.... não gosto de nada muito normal né Li, vai se acostumando hahah. obrigado por ler e comentar.

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  5. Como sempre. Juliano, tua obra está excelente! A ideia fugiu do normal - De onde você tirou que decoração combina com Terror?

    Parabéns pelo conto, tinha certeza que convidá-lo para este grupo seria uma adição maravilhosa, e o foi! Parabéns!

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    1. Orra Rainier, vallew mesmo. Primeiro pelo convite, foi muito bom ter sido chamado pra fazer parte do projeto e assim que você me falou a ideia da parede banca apareceu e em uma caminhada de 15 minutos até o trabalho ela já estava toda montada, só foi escrever depois haha. E segundo por ler, comentar e sempre dar uma força para que o pessoal escreva e melhore cada vez mais. Eu sou um desses hahaha... obrigado pelo comentário e até mais.

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