Antes de ler o conto abaixo, talvez seja mais interessante, antes, ler Brenda, Victor e Campeão. Embora as histórias sejam fechadas, todas fazem parte do mesmo processo... Assim como os próximos três contos deste autor.
Os telejornais, as revistas semanais, os sites de notícias... Até mesmo os programas de “variedades”... Todos falavam e queriam mostrar um pouco mais sobre a “terrível tragédia” que assolou aquelas pobres almas. alguns, quando a pauta estava fraca demais para chamar muita atenção, desenterravam acontecimentos similares com mais de cinquenta anos... Ou traziam suas “celebridades” com uma afinidade remota com o lugar para falar sobre aquela infelicidade ímpar – sem mencionar, claro, que a afinidade era algo como um primo distante que morava na cidade vizinha. Contudo, nenhum deles mostrou o que se seguiu.
***
Normalmente, em janeiro, não se espera um clima tão
tempestuoso – tanto calor, é sabido, gera chuvas e, algumas vezes, até muito
fortes... Torrenciais. Mas nada como aquilo.
Mal passava das oito horas da manhã quando dona Ivone olhou
para o céu, fungou e soube que algo chegaria. Sua primeira reação foi ligar
para Carmen e avisar. Ou ligar para Victor, seu sobrinho, e “sugerir” que ele
mencionasse isso para sua mãe – de uma forma mais sutil e comedida, portanto.
No fim, desistiu da ideia e resolveu que o melhor seria sair e comprar bolachas
salgadas, garrafas d’água e algumas coisas mais... Coisas que pudessem ser
consumidas por semanas. “Melhor prevenir”, não é?
E começou a descer em direção ao mercadinho. Ela até poderia
telefonar e pedir que entregassem em sua casa, mas o percurso e a interação no
local era o mais importante, no momento. Conversas casuais sobre o clima
tomavam proporções incríveis, se aplicadas corretamente – com o açougueiro, com
o padeiro, com as senhoras na fila do caixa –, e poderiam mudar muita coisa...
“Tomara”, pensava Ivone.
As compras levaram apenas vinte minutos. A conversa jogada
fora com quem fosse, quase duas horas. Com um fugaz sentimento de orgulho pela
sua competência, pegou o rumo de volta para casa. E pensando nas medidas que
ainda deveria tomar, mal notou o movimento rápido, no limite da visão
periférica. Quando se virou na direção do vulto, ele já estava esperando,
agachado em um canto da viela. Ela tentou não tremer, não demonstrar medo.
“N-não comigo aqui! Não desta vez!!”, ela quase gritou. A
resposta foi um silvo pútrido de escárnio. Logo, ela estava novamente sozinha.
Por pouco não se levou pelo desespero; agora, sabia que tinha que evitar aquilo
a qualquer custo.
***
O vento foi mudando e as nuvens se acumulando ao longo do
dia. Fora isso, nenhuma mudança relevante. Até parecia que esperavam pelo fim da
tarde... Pelo horário que mais pessoas estariam em suas casas, acomodadas e
tranquilas... Isso, claro, seria a percepção de alguém despreparado; Ivone não
era essa pessoa. Não era coincidência.
Minutos antes das dezoito horas, “aquela porcaria daquele
celular de merda” começou a tocar. Na tela, o número da casa de sua irmã.
Atendeu, quase afoita, e Carmen contou algo que a deixou muito mais preocupada:
Victor tinha sido chamado para uma ocorrência e, nela, uma criança mostrou “habilidades
incomuns”, como a polícia registraria, mais tarde. Repetiu cada detalhe que o
filho tinha narrado e, depois, confirmou a suspeita da irmã:
“Lembra daquela vez...? Em São João?”
Infelizmente, quase sessenta anos depois, não deixava de
lembrar. Nunca esqueceria. Nunca antes correu e gritara tanto. E aquele
cheiro...
Ao abrir a boca para responder, percebeu que algo estava
acontecendo. O vento mudou, mais uma vez. Estava mais intenso. Mais feroz. Respondeu
qualquer coisa, pediu para esperar um minuto e largou o celular na mesa,
enquanto se dirigia para a janela da frente. Sobressaltou-se. Voltou-se para o
celular; precisava avisar a irmã, que ela ficasse em casa e se preparasse,
estava vindo e...
Começou.
***
Pouca gente percebeu o que aconteceu. Quer dizer, os
sobreviventes sabiam que alguma coisa terrível tinha acontecido – o cenário
indicava isso, afinal. Entretanto, ninguém poderia relatar quando, realmente,
teve a percepção do fato em si... Era como se, racional e conscientemente, não
pudessem explicar o início das últimas onze horas.
Da mesma forma, ninguém viu quando, por trás daquelas nuvens
sombrias e densas, o céu ficou esmeralda.
Afinal, os principais problemas, agora, eram os alagamentos e
os deslizamentos de terra. Do cume ao pé do morro, tudo ruía. E, entre o uivo
do vento e o estampido eventual de um trovão, ninguém notou os gritos.
***
Nos telejornais, nas revistas semanais, nos sites de
notícias... Em todos, você encontraria alguma referência ao assunto. “A maior
tragédia de nossos tempos”, alguns afirmariam. Fazia sentido: materialmente,
toda a cidade tinha sido afetada. Era algo sem precedentes. Do distrito
industrial aos bairros mais ricos, do centro às periferias, era como se uma
onda de destruição tivesse vindo para conhecer a cidade e passeasse por todos
seus bairros e caminhos, subindo e descendo ladeiras.
Contudo, como sempre, os bairros mais pobres foram mais
afetados. Casas inteiras alagadas, levadas por toneladas de lama e entulho ou
destruídas, simplesmente, pela vontade inexorável da ventania.
E o mais curioso, diziam os analistas: aconteceu em vários
lugares aleatórios do país, aquele mesmo “evento climático”. Lugares em que a
última chuva de verdade tinha sido há mais de dois anos, inundados e, em alguns
casos, em “estado de calamidade pública”.
A comoção nacional – e, logo, mundial – foi muito linda de
se ver. Todos queriam tomar parte daquilo, ajudar. Começaram a exigir dos
representantes públicos, demonstraram solidariedade, iniciaram programas de
doações e projetos assistências para aquelas milhares de pessoas superarem o
acontecido, retomarem suas vidas...
Porém, em nenhum lugar, entre nenhum dos afligidos pela
calamidade, se falava do mais importante. Em todos os lugares, centenas, talvez
milhares, tinham sumido. Simplesmente, desaparecido. E ninguém se dava conta. Ninguém
falava nisso. Era como se não soubessem que algo faltava em suas casas, em seus
cotidianos... Era um silencioso grito de desespero, mas estava lá, presente.
Centenas ou milhares de crianças... Todas desaparecidas – ou pior: como se
nunca tivessem existido.
Muito bom!
ResponderExcluirVocê consegue manter o suspense na medida certa: não o exagera a ponto de impacientar o leitor, mas tampouco o corta bruscamente. Tudo bem calculado.
E gostei da construção da personagem. (Gostei especialmente do parágrafo sobre o vulto - o artifício de que a protagonista captou algo "no limite da visão periférica" caiu muito bem.)
E o mistério está superinteressante. Passarei a acompanhar o site e lerei os demais contos desta sua série, Emanuel.
Enfim, parabéns!
Poxa, Rodrigo, um dos melhores elogios que já li. Valeu, mesmo!
ExcluirE só para te deixar mais bolado: o lance do vulto é baseado em experiências pessoais, "para a vergonha deste ser". o.O
Valeuzão, novamente!
Não estou entendendo bem a história... Estou meio perdido em como esses acontecimentos estão ligados. Mas mantenho-me lendo principalmente porque o mistério está muito massa. O que o Rodrigo disse é verdade: "Você consegue manter o suspense na medida certa"
ResponderExcluirCongrats. Vamos continuar lendo para encontrar a solução, ou pelo menos a resposta de todo esse mistério.
CadêÊêêêÊÊ o restoooooooooooooo *ansiosa*
ResponderExcluirMuito bom!!!
Mais um conto excelente de quinta-feira, sempre me lembro de passar por aqui e acompanhar a sua 'série', hehe. Que ela prossiga no sucesso assim, nos apresentando a novos personagens sem deixar de lado as antigas experiências, e então que as coisas se revelem gradativamente, já que o clima de mistério está realmente elogiável! Parabéns pelo texto, fico na espera da continuação.
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