Pages

domingo, 20 de janeiro de 2013

Do prato à caça


O dia-a-dia na fazenda era sempre o mesmo, os homens cuidavam das plantações, animais e outros trabalhos braçais pesados. Enquanto a matriarca ficava responsável pelos assuntos caseiros, como cuidar do caçula da família.

Todos eram felizes, afinal possuíam um enorme terreno fértil, alimento abundante e sempre iam à igreja, mantendo o olhar divino sempre benéfico. Os membros da família Sorpoc eram: George, o pai; Letícia, a mãe; Daniel, o filho mais velho; Ricardo, o caçula; e Orwell, o tio paterno. 

Viviam todos muito bem, sem grandes problemas. Somente o filho mais novo, que era hiperativo e amava brincar de esconde-esconde, costumava dar alguma preocupação, mas nada além das peraltices de uma criança saudável. Para a sorte de todos, ele nunca desobedeceu a ordem de jamais entrar no celeiro. Os adultos diziam que os animais eram ariscos e que por esse mesmo fato sempre ficavam presos até serem abatidos. 

Mais um dia chegou ao fim, os trabalhadores voltavam para o interior da casa com suas tezes clamando por um banho frio. 

—Hora de se recolherem! Daqui a pouco o jantar estará servido! – a mãe gritou. 

Ricardo estava deitado de bruços em uma poça de lama, fantasiando ser um atirador de elite. 

—Ricardo, pare de brincar na lama. Entre já! – disse a matriarca. 

Um pouco contrariado, o menino imitou o melhor que podia um soldado marchando de volta para a base. 

—Apresentando-se para mamãe! – bateu continência, mas logo saiu da posição para ajeitar uma das alças do macacão que havia se soltado. 

—Pode descansar, meu soldadinho – disse abaixando-se para apertar as bochechas coradas. 

—Ô, mamãe, faz isso não... – fez um muxoxo. 

—Está bem, meu neném, mas entre logo que já vou servir o jantar. Quem vai querer um grande pedaço de carne? – usou um tom animado. 

—Euuuuuuuuuu... – prolongou a palavra até que a mãe lhe desse leves palmadas na bunda, colocando-o para dentro do lar. 

Em uma ponta da mesa, próximo a uma janela, estava o chefe da família, seguido a sua esquerda por Geraldo e os dois filhos. O lugar à direita era de sua esposa. 

—Muié, essa comida está tão cheirosa que já estou babando! – passou a língua grande e grossa pelos enormes lábios que tinham algumas feridas. 

—Já estou chegando com o caldeirão de sopa – aproximou-se e pousou o caldeirão no centro da mesa, retirando a tampa, a qual usou para abanar o vapor como se quisesse atiçar o apetite dos presentes. 

Aqueles que estavam sentados pegaram os seus talheres e começaram a bater no tampo de madeira, produzindo uma espécie de sinfonia selvagem. Um gesto banal, mas que carregava uma energia sinistra. Era como o medo que uma criança sente do escuro. 

—Todos vão comer, mas o pedaço de carne maior é do meu lindo anjinho rosado. 

—Obrigado – educadamente agradeceu, já com os olhos vorazes. 

Por último, a matriarca serviu-se e ocupou o seu devido lugar. 

O jantar transcorria normalmente, todos já estavam além do quarto prato, quando um som alto de madeira sendo quebrada ecoou pela fazenda. 

—Quê que foi isso?! – Indagou Daniel assustado, largando a sua colher. 

George ergueu-se bruscamente, quase derrubando a cadeira, limpou a boca na manga imunda da camisa e caminhou até a janela. Abriu as cortinas um pouco e cerrou os olhos. 

Quando se virou, a sua expressão estava tensa. 

—Orwell, pega as espingardas, alguns dos animais fugiram – filetes de suor brotavam de sua testa. 

O tio levantou-se sem dizer uma palavra e dirigiu-se a outro cômodo da casa, onde ficavam guardadas as armas da família. 

—Pai, posso ir com ocês? – os olhos de Daniel suplicavam por um sim. 

—Ocê tá grande para pegar enxada, logo pode ir com a gente – olhou mais uma vez pela janela – Orwell, anda logo hómi! Pega mais uma arma pro meu filho! 

—Tô chegando, tô chegando... – em seus braços estavam duas espingardas e um fuzil – aqui estão as armas – estendeu os braços na direção do patriarca que pegou as duas espingardas e jogou uma delas para Daniel. 

—Muié, nós vai colocar os animais de volta no celeiro. Você e Ricardo fiquem aqui dentro, não saiam por nada. Ouviu bem? 

—Sim, pai – pegou o caçula e o colocou no colo. Estava tendo um mau pressentimento. 

Devidamente armados, George, Orwell e Daniel saíram. 

—Mamãe, eles vão ficar bem? 

—Sim – tentava esconder a preocupação falando o mínimo possível. 

Minutos passaram-se, enquanto o mal-estar crescia em seu coração. 

Som de disparos. Sentada, orando em silêncio para se acalmar, olhou pela janela e percebeu quatro vultos se aproximando da casa. O grito não nasceu diante do terror. 

—Vamos brincar de esconde-esconde? Os outros têm que nos achar! Vamos lá para o seu quarto!? 

—Certo – a ingenuidade era mesmo uma santa benção. Ou não? 

Os dois subiram correndo para o primeiro andar. 

Entraram no quarto de Ricardo, não era um ótimo esconderijo, mas Letícia achava que a santidade de uma criança era inviolável. Em nome de Deus, deveria ser! 

O aposento era cheio de brinquedos, tinha um papel de parede com tema meigo, um colchão extremamente macio e um armário cheio de roupas com desenhos de bichinhos e super-heróis. 

—Aonde vamos nos esconder? – indagou ainda nos braços maternos. 

—No... – perscrutou o ambiente – armário! 

Abriu a porta do móvel e já foi se metendo em seu interior. Acomodou-se em cima de uma caixa de sapatos, pressionando o filho contra os seios. 

—Agora – levou o indicador da mão esquerda aos lábios - Shhhhhhhh. 

—Sim – imitou o gesto – Shhhhhhhh. 

Um impacto forte contra madeira ecoou pela residência. Letícia cerrou os olhos e começou uma série de imprecações aos santos que conhecia. 

—Mamãe, parece que o Daniel matou um dos animais e jogou no chão da casa com tudo, como sempre faz – não obteve resposta – Ma-mãe...? 

—Tudo vai ficar bem, meu anjinho – alisava a cabeça de Ricardo com a mão esquerda e com a outra segurava um crucifixo com aquele que derramou sangue pela redenção dos pecadores pregado. 

Fez silêncio agora, afinal não desejava que fossem encontrados. 

Vários passos na escada. 

—Ma... – Letícia tampou a boca do pequeno. 

Os passos pararam muito perto. 

—Por favor, que eles não tenham uma boa audição, que achem que foi só as suas imaginações... – pensou, sentindo as lágrimas do filho tocando as suas mãos. 

A maçaneta do quarto foi girada e a porta rangeu, mais parecendo o lamento de um moribundo. 

Os passos agora pareciam hesitantes, subitamente estacaram. Estavam em frente ao armário, as suas respirações eram ofegantes, com certeza deviam ter lutado bastante. 

Uma fresta se formou, viu o olho de um dos animais encarando-os, então a porta foi escancarada de supetão. 

Aqueles seres podiam ter uma carne suculenta, mas eram estranhos. Ao invés de patas tinham coisas que os fazendeiros chamavam de pés e mãos. Seus narizes não eram achatados e redondos. Além disso, não apreciavam a lama. 

Letícia e Ricardo estavam paralisados de pavor. O pranto de ambos era abundante. 

Quatro animais, todos com um desejo por sangue brilhando nos olhos e sorrisos que deixavam expostos dentes podres. 

Um deles carregava o fuzil que estava com o seu tio Orwell e, com um olhar insano, pediu para que uma das fêmeas despejasse o conteúdo de um saco grande. 

Do saco saíram as cabeças de seus familiares. As órbitas estavam vazias, pois os olhos foram arrancados e colocados em suas bocas que continuavam abertas. Pareciam querer dizer algo. 

Os animais riram descontroladamente por alguns segundos, só aquele som já deixava o caçula dos Sorpoc desesperado. 

—Agora... – aquele que parecia ser o líder falou e fez mira com o fuzil – estes porquinhos morreram sozinhos, pois eram tolinhos. 

O projétil trespassou o crânio de Ricardo e o coração de Letícia, assim como uma faca quente desliza na manteiga. 

Os dois gritaram.

—Ma...mãe....d...d..dá...um beij – golfou sangue – beijo...pr-a-a...sarar? – o corpinho já não conseguia se mover. 

—Sim – com os lábios rubros, deu um beijo na bochecha do garoto. 

Em seguida, os dois fecharam os olhos, para jamais acordarem. 

—Olhem só! Na mãe da fêmea deles, – apontou com empolgação, como se indicasse uma pedra de ouro – um crucifixo com um homem-porco! 

Cuspiu nos cadáveres e gargalhou. Teriam um bom jantar.

19 comentários:

  1. Ai que coisa horrível..rsrsr...Então é nada de criar bichos em casa..rsrsr...
    Parabéns Ednelson.

    Beijokas!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Nada de criar em casa aquilo que você come...ou pode virar a comida :D

      Beijos!

      Excluir
  2. Aí que terror. Ainda bem que não crio animais pra comer.
    Me deu uma agonia a cena final.

    Beijos
    Fernanda Souza
    www.leitoraincomum.com

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fernanda, adoro imaginar as reações dos leitores! Sim, assim é mais seguro. kkkkkkk Esse era o objetivo, causar agonia.

      Beijos!

      Excluir
  3. AMEEEEEEEEEEEI

    Ai que agonia!... Pior foi ler o finalzinho com meu pequeno correndo aqui pela porta do quarto... Como sempre, ótimo ^^

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tati, você é um anjo literário para mim, uma musa que está ajudando demais! O Dimi ainda correu por aí? Poxa, que bom, ele melhorou a sua experiência com o meu conto.

      Excluir
  4. Moleque, você se superou. Gostei demais da história. A narrativa está perfeita e me lembrou, inicialmente, o Massacre da Serra Elétrica. Mas a surpresa foi muito melhor.
    Sua imaginação trabalhou primorosamente, meu Velho. Tenho orgulho de estar nessa equipe.
    Claro, carne de porco nem tão cedo.
    Ps. O anagrama com a palavra "porcos" foi genial.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Franz! O projeto está me incentivando cada vez mais. É como um atleta que se aprimora na mesma medida com que treina. O Massacre da Serra Elétrica (que na verdade é uma motosserra, mas vai entender quem traduziu o título do filme...) é um dos filmes de terror que marcou a minha infância. Eu também tenho um imenso orgulho em ter sido convidado, a energia que flui do blog para mim é muito boa.

      P.S: A ideia do anagrama foi a primeira coisa em que pensei.

      Excluir
  5. Sinistro... cuidado com o que vc cria!

    Beijos,
    Nica

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Por incrível que pareça, escrever terror é uma das coisas que me ajuda a ficar bem.

      Beijos!

      Excluir
  6. Parabéns! Excelente conto!

    ResponderExcluir
  7. Eu adorei!

    Através de um conto de terror um bom protesto de como os animais são mau tratados pelos homens, que se acham os donos do mundo e se enchem de carne e produtos de origem animal, sem imaginar o quão terrível seria se fosse o contrário. Afinal, vacas, porcos e etc possuem sentimentos.

    Podem me chamar de hipócrita, radical, mas eu evito ao máximo produtos de origem animal ou de empresas que fazem testes em animais, faço o máximo que posso (sou semi-vegetariana), mesmo não sendo 100% perfeita e mesmo sabendo que não mudarei o mundo.
    É terror animais matarem humanos, enquanto o terror é praticado por nós desde sempre.

    Adorei o conto, a narrativa causou curiosidade e calafrios. Está muito bem escrito e me lembrei dos livros O Planeta dos Macacos (que já li) e A Revolução dos Bichos (que pretendo ler ainda este ano).

    Orwell não foi um nome escolhido à toa, foi?

    Beijos e continue assim!! Adorei de verdade!

    ResponderExcluir
  8. Nossa, Tati...muito obrigado pelo comentário! Eu sempre tento fazer terror com ideias por trás, sabe? Nada que vá mudar o mundo, mas que pelo menos faça o leitor pensar um pouco. Eu consumo animais até por necessidade, se não comer, fico com fome. Quando tiver com uma situação mais favorável, refarei meus hábitos alimentares. Sei que há coisas que consumo e são muito ruins. Caramba, fico até encabulado em ser comparado com dois livros grandiosos. George e Orwell não foram nomes escolhidos aleatoriamente.

    Beijos, agradeço o apoio! Apontamentos são sempre bem-vindos, quero sempre melhorar.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu gosto de histórias que causam impacto em mim e que contenham um "algo a mais" e seu conto conseguiu isso! Possui o suspense + terror e uma crítica social ao fundo! Parabéns!

      Excluir
    2. Muito obrigado! Essa energia me deixa melhor...

      Excluir
  9. De vez em quando passo por aqui mas esse conto realmente me surpreendeu!!! Simplesmente perfeito!!!
    Ana Luiza

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ana Luiza, muito obrigado pelo comentário. Sempre tento escrever o melhor possível, nunca julgo que consigo algo muito bom, mas aos poucos vou aprendendo.

      Excluir
  10. Muito bom o conto, Ed.
    Essa coisa tão comum e pitoresca com um ou outro detalhe faltando de forma proposital que gera a curiosidade e a imaginação para "fechar" o incompleto é uma ótima forma de criar ansiedade em quem lê.
    Grande abraço!

    ResponderExcluir