“O que a gente
precisa é de um cara decente que lute por nós”, a voz ecoava para as duas
únicas pessoas que ouviam todo o relato anterior – e mais um garoto; aquele que
sentava sozinho, no fundo, ouvindo música e fazendo origamis; mais um “pária”.
Brenda acostumou-se em ficar por todo o intervalo dentro da sala de aula. Para
ela, era perigoso e infeliz ir para o pátio, mesmo nesta altura do Ensino
Médio... E Luana e Francine a acompanhavam pelo mesmo motivo.
Luana era
muita baixa e extremamente gorda para a idade. Infelizmente, mesmo passando
fome, na dieta, e fazendo caminhadas diárias, não conseguia emagrecer. “É um
problema glandular, querida”, diria sua médica. E do sexto ano até hoje, seus
colegas diriam “Olha a Butijão” e lembravam de Jabba The Hut a Igor Dão quando
a viam. Francine, por sua vez, era o que se chamaria de “uma menina normal” ou
“com tipo de atleta”, mas era filha de uma das serventes e estava ali,
portanto, porque isso a garantia uma bolsa integral de estudos. O mundo de seus
colegas não a pertencia, e preferia evitar qualquer chacota ou ter que,
finalmente, “levantar um desses playboys no soco” – anos de jiu-jitsu e,
depois, muay thai garantiriam isso. Brenda, por sua vez, era um caso diferente.
Brenda era...
Brenda era
linda.
Linda de
verdade. Em todos os aspectos. Do cabelo ao formato dos dedos dos pés. Não
adiantaria explicar; só vendo, realmente – embora sirva de exemplo dizer que,
hoje, uma “foto de perfil” dela teria mais de uma centena de “curtir”, e até de
desconhecidos. Apesar de sua beleza, era incrivelmente simples e simpática e,
por fim, apaixonante.
Porém, isso
trouxe muitos problemas. No início, comentários sussurrados entre todos os
alunos homens da nova escola. Depois, caras comprometidos ou com “fã-clubes
pessoais” convidando-a, na encolha, para sair, a despeito de suas namoradas ou
afins. Obviamente, isso só poderia ser “Culpa dessa piranha!” e as ameaças se
tornaram cotidianas. E mesmo com o “nível socioeconômico” da maioria dos
colegas, quase foi espancada na saída por uma turba de meninas, certa vez.
Assim, como não ficar “encarcerada” na sala de aula quando poderia,
simplesmente, caminhar e aproveitar o sol? Não, ali, tinha segurança e
professores e funcionários estariam por perto, caso necessários.
Mesmo com todos
esses problemas, tinha um cotidiano normal ao lado de suas “amigas” – ou, como
à conclusão que chegara, meras “companheiras de cela”, por falta de opção. Sim,
gostava das meninas, mas sua personalidade desejava conhecer e conviver com
mais gente, ter outras experiências e vivências. Não podendo arriscar, todo o
tipo de conversa se limitava a elas... E, hoje, o assunto era o mais comum de
todos: falar mal desses “meninos babacas que não nos dão o devido valor”.
Francine até tinha muito a dizer sobre isso, mas Luana, coitada, só fazia
escutar, por razões óbvias.
“De boa”,
começou Francine, “é muito difícil encontrar um cara assim, ó. Na real, vai ser
bonito, ou idiota, ou taradão, ou vai te tratar como um objeto. E,
dificilmente, vai se quebrar todo por você. Um realmente maneiro e que te
aceite e se doe é algo que surge apenas a cada, sei lá, cem anos, haha!
Parafraseando o ‘sor Romário, ‘só tem francês, nenhum viking’”.
“Aham”,
concordou Luana, mesmo que o que entendesse sobre o tema fosse o que via em novelas
e filmes. Brenda concordou com a cabeça e, com o silêncio que se seguiu,
levantou-se para esticar as pernas. Ao fazer isso, pareceu-lhe que... Pareceu
que aquele colega, o “menino do fundo”, tinha recém colocado os fones de
ouvido... Como para fingir que não estava ouvindo toda a conversa.
“Estranho”,
Brenda concluiu, mas logo afastou o pensamento. Tocava o sinal para o fim da
aula e dois períodos de Química Orgânica e um de Literatura já prometiam muita
insanidade para as próximas horas.
***
As coisas
pioraram muito para Luana e, principalmente, Brenda, nos últimos meses. Não era
algo “oficializado”, mas muito da “segurança pessoal” que possuíam era derivada
da presença de Francine. Três medalhas de ouro por três anos consecutivos em
campeonatos escolares consolidavam a fama de qualquer uma como “artista marcial
boladona”. Contudo, poucos sabiam da inteligência dela e só duas amigas
comemoram quando a mesma passou no vestibular da Federal – para Educação
Física, é claro, mas poderia ser qualquer coisa – e conseguiu o “avanço
escolar”. Com sua média, podia se dar por aprovada, àquela altura, e partir
logo para “seu passo adiante”.
Nesse meio
tempo, algo aconteceu com Brenda, também. O primeiro e-mail de “brendologo001@hotmail.com” foi especial.
Seus pedidos sobre “um cara que fosse especial” pareciam ter sido atendidos,
finalmente. Daí, adicionar no Messenger
e conversar sobre tudo tornou aquilo muito mais maravilhoso... No começo,
pensou que era um dos meninos do curso de inglês, mas o “Júnior” – era assim
que ele se nomeou – revelou que estudavam, na verdade, na mesma escola, e que
ele não se assumiria enquanto não resolvesse um “impedimento”.
Normalmente,
Brenda não daria assunto para alguém nessa situação. Ora, qualquer um sabe –
garotas, sobretudo – que não dá para confiar em alguém que se esconde atrás de
um monitor. Mas o primeiro texto tinha sido, sim, incrível, e mostrava muita
inteligência. E era alguém que conhecia tudo sobre seu dia a dia escolar e,
acima de tudo, tinha uma admiração sincera.
Assim,
ela se deixou envolver. Depois de algumas semanas, assumiu que os bilhetes com
recados fofos e desenhos bonitos fossem de “Júnior”. Assumiu isso, também,
quando os livros que comentara apenas com Luana e ele, os que desejava muito
ler, apareciam embaixo de sua carteira, assim como os bilhetes, embalados como
presentes. Era tudo tão... Tão cheio de beleza e apreço. Era... Amor?
Podia
ser, mas ela não devia ter se deixado envolver.
De
alguma forma, “Júnior” – ou o Paulo Enrique, da turma B, se preferirem – deixou
que sua “quase-ex-e-impeditiva-namorada” descobrisse sua troca de e-mails e
mensagens com Brenda.
“Foi
um acidente, me desculpa, por favor, eu não queria”, ele disse.
O
que disseram para Brenda, por outro lado, foi bem diferente. E sujo e cruel e
furioso.
O
pior nem foi ser “chamada de tudo para baixo”. Hoje em dia, palavrões ou
expressões chulas são usadas para, por exemplo, se elogiar um amigo. Tanto faz.
O terrível foi o espancamento. Dessa vez, tinham conseguido pegá-la
desprevenida.
A professora
de Educação Física tinha deixado a quadra para atender uma ligação na secretaria.
Luana passava a aula sentada em um canto – dispensa médica, obviamente. Os
meninos – os únicos que poderiam, talvez, defendê-la – estavam treinando em
outra parte da escola, e nem todos frequentavam essas aulas. E, claro, a
“não-ex” de Paulo Enrique, Irene, e suas amigas estariam nessa aula.
Brenda foi
espancada. Mesmo quando caiu, desorientada e com olhos embaçados pelas
lágrimas, continuou apanhando. Toda sua roupa foi rasgada, deixada aos fiapos.
Toda. Quando chegou nesse ponto, Luana já estava correndo o máximo que podia e
gritando o nome da amiga – fora isso, sua lágrimas também atrapalhavam a visão.
Portanto, quando a professora retornou e levou um minuto para entender o que
acontecia, a pobrezinha foi levada à enfermaria praticamente nua – e muitos
outros estudantes viram-na nessa situação.
“Pelo menos,
estava com uma lingerie bonita”, ela pensaria, no futuro.
E, com
certeza, se algo muito pior não aconteceu, foi porque Luana protegeu sua única
amiga com o corpo, levando pontapés e socos em seu lugar. Apesar de seu
tamanho, era muito fraca, e dizem que não desmaiou por simples força de
vontade...
Sim, ocorreram
expulsões. A professora Marcia só não foi demitida por omissão porque se
comprovou que, coincidentemente, recebera uma chamada urgente. “Comportamento
de animais selvagens, de criminosos!”, gritaram a diretora e a orientadora
educacional, nas assembleias gerais que rolaram quase que diariamente, depois
do ocorrido. Brenda não viu nada disso, nas semanas que passou no hospital...
***
Quando
Francine a visitou, e viu como seu rosto estava, chorou por horas. “Eu deveria
estar lá”, balbuciava. “Cê sempre precisa de mim, menina. Desculpa. Eu te amo,
tá? Desculpa.”
***
O ano letivo
terminou e Brenda não voltou para aquela escola. Seus pais se tornaram
superprotetores e os processos judiciais que iniciaram contra a administração
da instituição tornariam o ambiente muito pior, como se a coisa toda já não
fosse render dedos apontados e sussurros por muito tempo, se continuasse lá...
Por isso,
preferia acreditar que seria esquecida em pouco tempo. Talvez, já tivesse sido
esquecida. Supostamente, nada era duradouro na vida de adolescentes. Nem
linchamentos.
O saldo
positivo, até aí, foi poder rever Francine com frequência – aulas de defesa
pessoal, na mesma academia que, agora, aquela boa amiga conseguiu um emprego.
Luana sumiu por um tempo, mas reapareceu, repentinamente, oitenta e cinco
quilogramas mais magra e namorando. “Na verdade, estamos noivos”, revelou
depois de poucos minutos de conversa.
“Tudo, tudo,
tudo vai dar pé” era o mote que dormia e despertava com Brenda em seus
pensamentos. Sim, seu drama seria esquecido e ela esqueceria daquilo. Ela
acreditava nisso.
Acreditava.
Até três noites atrás.
Brenda não
saberia dizer se acordou com o incongruente e constante som de passos em seu
quarto – dormia sozinha, afinal, e seus pais estavam fora – ou se foi o cheiro.
Ela tinha que conferir se não um sonho, simplesmente. Sentou-se na cama e
esticou o braço para o abajur, mas não precisou liga-lo. O quarto estava
iluminado à luz de várias velas. Velas longas e elegantes, colocadas
cuidadosamente entre suas coisas, na escrivaninha, no roupeiro, na cabeceira...
E elas tornavam o vulto que a observava, parado em pé aos pés da cama, muito
mais sombrio e insólito. Só que ele estava lá, sim, Brenda sabia. O “presente”
sobre um saco plástico preto na cama tornava tudo muito real. Isso, e estar tão
assustada que não conseguia gritar.
“Eu não
consegui que você entendesse que os bilhetes e os livros eram presentes meus.
Meus!”, o vulto falava exaltado, se aproximando. “Me perdoa, eu ouvia, claro,
todas as suas conversas. Você era... Era o meu ar! Mas eu lembrei, daí: você
precisava de um herói, de... De um viking! Alguém que lutasse por você! E eu
desci e me sujei onde você não poderia Brenda! Tá aí, ó, o que você merece, meu
amor!”.
Gostei muito do conto. Acho que mostrou uma visão necessária e verdadeira do bullying e principalmente do machismo - que muitas vezes vem das próprias mulheres (no caso, as meninas do conto que agrediram Brenda).
ResponderExcluirO terror foi diferente nesse conto: foi muito real e por isso, talvez, muito mais amedrontador. É algo que pode acontecer, e na verdade acontece, de diversas maneiras, em diversos lugares. Excelente.
Valeu, Karen! A intenção era exatamente essa... Inicialmente, tinha um detalhezinho sobrenatural, mas achei que, no fim, a realidade era bem pior. :D
ExcluirNo final de tudo, a realidade é sempre mais apavorante. :)
ExcluirMano, o conto ficou extremamente bom, brother. A contemporaneidade, a exata compreensão de fatos atuais e a descrição rápida fazem com que o leitor fique preso, atento ao que se lê. É um grande início, meu amigo e sei que muito mais virá dessa mente.
ResponderExcluirParabéns pelo conto e seu final fantástico. Abração...
Franz.
Obrigado, Franz!!!
ExcluirUm terror real e existente em nosso dia-a-dia. Perfeito mano, sem mais o que dizer. Perfeito!
ResponderExcluirValeu, Rainier! :D
ExcluirEu ja disse o que achava via twitter... Me lembrou demais coisas que vivi...
ResponderExcluirBullying e perseguição, todos temos historias disso kkkkkkkkkk
Muito bom!
Sssssim!
ExcluirA ideia é continuar nessa pegada.
Obrigado, chuchu!
Muito bacana a narrativa, já deu pra ver que essa pegada realística e macabra é tua área mesmo, haha Se continuar nesse ritmo, teremos ótimos textos pela frente no projeto, o que agradaria bastante! Deixo aí meus parabéns pelo conto, bem escrito e detalhado, com uma realidade nua e crua, bastante crucial no terror da rotina do cotidiano que todos nós vivenciamos um dia. Parabéns!
ResponderExcluirMeu brother, valeu por esse e pelo outro comentário! Até me 'mocionei! :D
ExcluirParabéns Emanuel, excelente conto.
ResponderExcluirPô, Bruno, valeuzão! De você, significa muito! :D
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