Ainda no chão, deu algumas goladas,
derrubando mais bebida no chão e na sua camisa do que na própria boca.
—Olá, – ouviu uma voz grave – precisa de
ajuda? A noite está muito fria.
Os olhos de João viraram para a esquerda,
onde viu dois sapatos sociais pretos. Começou a subir o olhar. O dono daquela
voz trajava um terno Giorgio Armani da mesma cor dos sapatos. Tinha pele
branca, levemente bronzeada, e um cavanhaque, acompanhado de um cabelo
intensamente negro penteado para trás. Além destas coisas, circulava uma moeda
entre os dedos de sua mão esquerda.
—Que-em é você? – replicou com a voz
distorcida pelo álcool.
—Alguém que não suporta ver um campeão
sofrendo, então, precisa de ajuda?
Os olhares se cruzaram, pareceu que o mundo
parou por um segundo.
Mesmo sem refletir direito, João largou a
garrafa de uísque e estendeu a mão.
O gentil estranho solicitamente o ergueu.
—Pensava que jamais fosse conhecer João
Punhos-de-ferro, o maior pugilista da história do boxe brasileiro!
—Então, você me reconhece? – como mágica,
parecia que o álcool já tinha saído de sua corrente sanguínea, restituindo a
ordem de sua mente.
Mas João não atentou para o fato, era uma
peça menor no jogo.
—Claro! Fiquei sabendo que você está
procurando lutas, estou certo?
—É verdade, estou precisando de grana para um
assunto importante. A minha filha, Lucyle... – enfrentar homens que eram puro
músculo era fácil, mas aquele demônio... – ela está... – até mesmo dizer a
palavra era difícil, pois a imaginava no leito de hospital, magérrima,
sussurrando o seu nome e o da mãe que a abandonou recém-nascida – com câncer.
Não podia chorar, nunca derramou uma lágrima,
julgava como coisa de maricas.
—Então, estou organizando um espetáculo,
entretanto... – olhou ao redor, depois voltou a encarar João – é algo muito
exclusivo, entende?
Claro, João, como pugilista veterano, sabia
da existência de lutas clandestinas na cidade.
—Está interessado? – como um prestidigitador,
o desconhecido já mostrava um cartão.
Os pugilistas nesses combates geralmente eram
homens no ápice da forma, mas ninguém é imbatível.
—Claro – respondeu e pegou o cartão. Poderia
morrer, mas que escolhia tinha?
O desespero nos conduz por caminhos
escarpados, cheios de feras, mas o trunfo dos monstros é acharmos que eles são
apenas lendas.
—Esteja no local indicado amanhã às 18:00,
certo?
João encarou o pedaço de papel mais uma vez.
—Pode apostar que irei.
—Te encontro amanhã, campeão.
Os dois seguiram seus caminhos.
Antes de entrar em um beco, o homem de terno
jogou a moeda com que se entretinha para o alto e continuou a andar. A moeda
tocou o chão e ficou girando como um pião, até perder a velocidade. Todavia, ao
contrário do que seria normal, não pendeu para um de seus lados, mas sim ficou
parada. Deixando as duas faces à mostra. Eram serpentes enroscadas em uma
árvore.
***
O dia seguinte passou rápido. Antes de ir para
o local da luta, João visitou a filha que estava em coma induzido em um
hospital, localizado em um bairro nobre da cidade. A internação estava lhe
retirando os últimos centavos, mas jamais desistiria de sua menina.
Foi difícil entrar no quarto depois do
horário de visitas, mas nada que cinquenta reais na mão de uma enfermeira não
resolvessem.
A sós com Lucyle no quarto, foi breve, fez o
que devia e partiu. Teve um pesadelo horrível na noite anterior, lembrava-se
apenas de sentir fogo consumindo a sua carne. Algo lhe disse que deveria fazer
isto.
***
O lugar era um grande armazém, o número seis,
em uma rua cheia de imóveis abandonados. Bateu na porta de ferro e ouviu uma
voz retrucar:
—Quem é!?
—João, um dos lutadores da noite.
—Entre pela porta dos fundos.
—Okay – caminhava silenciosamente, tendo a
sensação de que era observado.
A porta dos fundos era exatamente igual à da
frente, exceto por uma pichação excêntrica que dizia: “ELE está vindo, arrependam-se”.
Bateu.
—João, estávamos todos ansiosos por você –
era o homem do cartão, reconheceu a voz.
A porta se abriu, revelando um pequeno
vestiário.
—Pode entrar, meu camarada!
Exceto por algumas listras verticais brancas,
o terno era idêntico àquele que o homem gentil trajava na noite anterior.
—O seu calção e as luvas estão nesse armário
às suas costas, coloque-os e depois passe pela porta dupla lá na frente do
vestiário...
Enquanto o desconhecido continuava falando, João
despiu-se sem cerimônias, vestiu o calção e colocou as luvas. Em lutas ilegais,
esses eram os únicos acessórios.
—...Você vai estar dentro de um túnel. Siga
em frente até o ring, o seu oponente estará lhe aguardando e eu, como juiz,
também. O ring é coberto por uma cúpula, ligada ao túnel, que impede a visão de
fora para quem estiver em seu interior. Questão de segurança, entende?
—Por mim, tudo bem. O que importa é o
pagamento depois.
—Se a plateia apreciar o espetáculo, pode até
ser que ganhe algo, mesmo não vencendo. Bem, agora devo ir, até daqui a pouco e
boa sorte – o desconhecido sumiu por entre os armários, rumo à frente do
vestuário.
Antes de se levantar, João tocou a própria
face calejada pelos anos de prática esportiva e os cabelos grisalhos. Ergueu-se,
recordando um trecho de seu filme favorito:
“O mundo não é feito de arco-íris. É um lugar ruim e duro, e não importa o quão forte seja, vai colocá-lo de joelhos e vai deixá-lo lá. Ninguém vai bater mais forte do que a vida [...]”
Essa era a batalha mais importante de sua existência.
***
Uma luz parca clareava o ring e no canto mais
seguro estava o seu oponente. Ele usava uma máscara preta e vermelha, como
alguns farsantes da luta livre, e em seu peitoral tinha tatuado a cabeça de um
carneiro.
—Senhores e senhoras, – anunciava com pompa o
juiz – hoje teremos um maravilhoso embate! Façam as suas apostas! Como sei que
vocês já estão ávidos por sangue...que comece a luta!
Um gongo soou e, sem dar qualquer espaço de
tempo, o oponente de João investiu furioso, acertando-o com um cruzado de
esquerda nas costelas.
A troca de golpes era fascinante, a luta
correu por muitos rounds em completo equilíbrio, ambos os lados estavam
igualmente fatigados e feridos. O ring estava com diversas pequenas poças de
sangue.
O juiz não interferiu em qualquer momento,
pelo contrário, parecia deleitar-se com a dor dos lutadores.
Começava o nono round e entre jabs, diretas,
cruzados e ganchos, João percebeu que a máscara de seu oponente estava se
rasgando e isso revelava uma cicatriz no queixo dele idêntica a que ele mesmo tinha.
Aquela palhaçada já o irritava e depois de
conseguir atordoar o mascarado com uma direta de esquerda bem no nariz, arrancou
a máscara com a mão direita. O que viu lhe deixou sem reação, dando uma brecha
mais que suficiente ao rival.
Recebeu outro gancho nas costelas e dessa vez
escutou vários estalos, depois uma direta no olho esquerdo, sentiu uma dor
horrível e ouviu algo como o som de gelatina caindo no chão. Era o seu olho que
estourou com o soco. Como se a tortura não fosse suficiente, continuou
recebendo uma série de golpes que alternavam entre o tronco e a face.
Tombou, mas com o olho bom ainda consiga
enxergar aquele que era...ele? Mas como diabos aquilo era possível?
Em resposta, João sentiu o cheiro de enxofre surgir
no local e incontáveis pessoas, todos de ternos, de pele vermelha e com chifres
de vários tamanhos brotarem das sombras e ouviu o outro “ele” dizer:
—João, eu sou o outro lado da moeda...este é
o seu próprio ring...a sua mente...adeus.
Recebeu um pungente chute no rosto, mas,
antes de morrer, derramou uma lágrima. Ao menos a sua pequena se salvaria, esse
era o trato por um bom espetáculo e nove rounds era um feito digno de muitos aplausos.
***
No hospital Lucyle acordava milagrosamente do
coma induzido, sentiu que segurava algo e olhou. Era um bilhete.
“Querida Lucyle,
Nunca fui bom com palavras, assim como não o fui com a
paternidade, só peço que me perdoe. Você terá raiva de mim por um tempo, ora
bolas...até eu tenho, por que acha que bebo? Quero ver se mato o meu lado ruim
afogado. Está bem, a piada não foi boa. Enfim, se você está lendo isso é sinal
que consegui...saiba, onde eu estiver, você é o meu alento, meu anjo. Esse
velho lobo espera que você tenha uma boa vida, torne-se uma boa esposa para
quem merecer e dê um abraço em meus futuros netinhos.
Beijos, Papai. ”
Nem preciso comentar né Ed? Adoro seus textos, ja deve estar até cansado de me ouvir repetir isso!!! rs
ResponderExcluirInfelizmente o espaço foi curto... poxa, ficou com gosto de quero mais! Precisava de mais caracteres pra poder desenvolver mais sobre o assunto... Mas adorei.
Parabéns!
Você é um amor, Taty, sempre me apoiando ^.^ Obrigado!
ExcluirRealmente, o conto poderia ter sido melhor, caso pudesse usar mais espaço, mas como ficou acertado quatro páginas...esse é um dos desafios! :D Tive que cortar muitas coisas, mas consegui me adequar ao formato.
Mais uma vez, agradeço as suas palavras.
Interessante ,gosto de blogs assim.
ResponderExcluirTenha muito sucesso.
Obrigado por comentar, Kenia! Continue visitando o blog ^.^
ExcluirOras bolas, meu Rapaz!! Apesar de não gostar de textos do gênero "terror", como já lhe disse anteriormente, gostei do micro-conto acima. Realmente, muito bom!! Esse é um tipo de gênero literário que está ganhando muito espaço junto a garotada. Então, continue investindo. Abraços.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Janethe :) Sei que você não é uma leitora de terror e o fato de ter gostado da história mesmo assim me deixa extremamente feliz. Abraços!
ExcluirAmei Ed! Introspectivo, né? Gosto destes suspenses que deixam você pensando nas reais motivações, medos e frustrações da personagem. Super bem escrito! Parabéns! *"....mas o trunfo dos monstros é acharmos que eles são apenas lendas" - AMEI ISSO!
ResponderExcluirSim, nesse conto tentei ser introspectivo, falar de um homem tentando se redimir. Poxa, obrigado mesmo pela generosidade nos elogios.
Excluir