Eu sei que ela existe. Não
do modo como as pessoas pensam. Não a mitológica figura com a foice e sua capa
negra, ceifando vidas e conduzindo os mortos ao limbo. Definitivamente, ela
existe. E para ser mais sincero, acho que a palavra “ela”, não se aplica. Não
há sexo entre os anjos. Com certeza não há.
Desde pequeno eu persigo a
oportunidade de vê-la. Minha avó sempre dizia que aqueles que viam a morte
frente a frente estavam destinados a receber seu abraço e, com isso, findar sua
existência. Porém, o que mais me chamava a atenção era que, segundo as lendas,
o homem que a visse ceifando uma vida, no exato momento do toque fatal,
receberia o dom da imortalidade. Seria como se a morte se tornasse o seu anjo
da guarda, impedindo o mal de se aproximar de você. Interessante, não?
Assim, movido por esse
desejo, tornei-me repórter fotográfico de um grande jornal do Rio de Janeiro.
Dizer que já presenciei inúmeras mortes, como profissional, torna-se
irrelevante, já que sou repórter policial. Retratar a desgraça e a morte é meu
passatempo. Não é um obrigação... é um prazer.
Anos se passaram desde meu
início como fotógrafo. Sempre busquei estar nos lugares onde o caos reinava.
Neles, eu teria a oportunidade buscada desde menino. A oportunidade de encarar
a morte nos olhos. A chance de encarar o anjo da morte no instante em que
cumpre sua missão. Não havia outro meio de me tornar imortal... e meu tempo
estava passando. A cada novo dia, o abraço se aproxima. O beijo da morte se
torna mais tangível.
Eu não quero morrer...
Fui convocado para
fotografar o incêndio de um grande prédio. As chamas estavam desde o 22º andar
até o 30º, restando apenas mais dois andares como local de segurança para as
pessoas acuadas. Já haviam relatado 21 suicídios de pessoas que pularam com
medo das chamas. Era uma verdadeira tragédia. Era a minha oportunidade, a minha
grande chance.
Cheguei ao local com um frio
na barriga. Uma sensação de êxtase, de
ansiedade. Eu sabia que algo de bom iria acontecer comigo. Havia certeza de
sucesso no ar.
Com a máquina fotográfica em
mãos, iniciei minha seqüência de fotos. Eu conseguia captar as faces
horrorizadas das pessoas nas janelas, acuadas pela fumaça e pelo fogo. Com o
zoom da máquina, eu podia ver suas expressões de dor. “A fumaça traz tanto
calor quanto o fogo”, comentou um bombeiro próximo a mim.
De uma das janelas, uma
mulher gritava. Aproximei seu rosto e fui tomado pelo horror quando vi sua face
direita tomada por bolhas. As queimaduras estavam provocando uma dor
inimaginável nela. As lágrimas eram sua única forma de refrescar o ardor das
chamas.
Não tirei mais o foco dela.
Algo me dizia que ali estava para acontecer algo surpreendente. Ali estava
minha oportunidade.
E eu estava certo...
No momento em que a mulher
não mais suportou o calor, ela se desprendeu do beiral da janela. Eu e centenas
de pessoas paralisamos os batimentos cardíacos enquanto o corpo caía. Era
possível ver as chamas na saia da mulher.
O tempo decorrido até ela
atingir o chão foi de poucos segundo, mas a sensação era de que horas estavam
se passando até o impacto. Durante a queda, com a câmera, fui acompanhando e
fotografando cada instante. Seis fotos eram batidas por segundo, lotando o
cartão de memória. Em um destes instantes, antes do choque, eu vislumbrei. Meus
olhos não acreditaram no que viam. Uma criatura caía junto à mulher. E antes
dela bater, as mãos desta criatura tocaram o peito da suicida. Naquele
instante, eu sabia que ela já estava morta. Naquele instante eu encarei a
profundidade do olhar da morte durante a concretização de sua tarefa na Terra.
Naquele instante eu ganhei o dom da imortalidade, há tanto tempo buscado.
A
par do que aconteceu, o Anjo da Morte se aproxima de mim. Eu recuo, olhando
assustado para o lado e constatando, infelizmente, que os outros não viam
aquela cena assustadora. Tropecei e cai de costas. Minhas mãos tremiam e a
câmera jazia no chão, com a lente partida. As pessoas olhavam para mim sem
entender o que ocorria.
Tomado pelo medo, fechei os
olhos, esperando o meu fim. Mas a única coisa que ocorreu foi um sussurro. Uma
voz sepulcral ditou as seguintes palavras para mim: “agora que tem o que tanto
desejou, espero que não se arrependa. Viva com sabedoria, mas jamais implore
minha chegada. Ela não virá”.
E desmaiei...
Despertei em um leito de
hospital. Meu quadro, segundo o médico, era estável. Aparentemente, eu havia
tido uma parada respiratória. Mas o problema foi contornado com eficiência.
Nenhuma seqüela. Nenhum problema adicional.
Sai algumas horas após. E,
deste dia em diante, nada mais me afetou.
Escapei de acidentes
incríveis, totalmente ileso. Nunca mais peguei sequer um resfriado. Eu era
praticamente indestrutível.
Tomado por essa consciência,
resolvi aproveitar meu tempo para viajar e conhecer novas culturas e povos. Eu
tinha sede de registrar o mundo através de minha lente. Eu queria adquirir
conhecimento, pois tinha tempo mais do que suficiente para tal empreitada.
E assim fiz. Rodei o mundo. Conheci pessoas que jamais sonhei. Vi coisas que a maioria da população do mundo nunca verá. E, desta forma, mais dez anos se passaram.
Eu não sei bem o que aconteceu. Mas a verdade é que numa manhã de domingo, após passar a noite inteira nas ruas francesas, despertei e me deparei com uma verdade: eu estava envelhecendo.
E assim fiz. Rodei o mundo. Conheci pessoas que jamais sonhei. Vi coisas que a maioria da população do mundo nunca verá. E, desta forma, mais dez anos se passaram.
Eu não sei bem o que aconteceu. Mas a verdade é que numa manhã de domingo, após passar a noite inteira nas ruas francesas, despertei e me deparei com uma verdade: eu estava envelhecendo.
Minha mente girou e senti os
olhos tremerem nas órbitas. Algo estava muito errado. Como seria possível
envelhecer se eu era imortal? Eu cheguei a pensar que estava tendo ilusões, mas
havia fios brancos em minha cabeça e as rugas já ganhavam seus contornos.
Realmente estava envelhecendo.
Mas
o que teria me cegado durante este tempo todo para que eu não percebesse? Será
que eu estava tão entorpecido pela ganância de conhecimento a ponto de não
perceber o tempo?
Olhei novamente para o
espelho e, involuntariamente, ergui o braço e soquei o vidro, quebrando-o.
Apenas um pequeno filete de sangue desceu pela minha mão. Nada mais.
Horas mais tarde, em uma
pequena praça, parei para pensar no que estava acontecendo. Será que fui
enganado pela morte e eu iria morrer como todos os outros?
Senti os cabelos na nuca se eriçarem quando uma voz soou bem atrás de mim, dizendo: “Eu não minto... mas você deveria ter lido as entrelinhas do contrato, humano. Acaso lhe prometi juventude eterna?”. E a voz se foi com um sonoro riso.
Senti os cabelos na nuca se eriçarem quando uma voz soou bem atrás de mim, dizendo: “Eu não minto... mas você deveria ter lido as entrelinhas do contrato, humano. Acaso lhe prometi juventude eterna?”. E a voz se foi com um sonoro riso.
E por longos anos este riso
ecoou dentro de mim.
Hoje, mais de setenta anos
após, ainda me encontro vivo. Angariei uma enorme fortuna. Eu tive tempo para
isso. E é graças a esta fortuna, que me mantenho protegido.
Hoje, estou em um leito hospitalar.
Não me restam forças e uma equipe médica toma conta de mim. Não tive coragem de
ter filhos. Eu não suportaria vê-los definhar enquanto o tempo não daria cabo
de minha vida. Seria dor demais para uma só pessoa.
Estou com o corpo frágil. Velho, não posso mais gerenciar minha própria vida. Estou confinado a uma cama. E nela, todos os dias eu clamo por piedade. Todos os dias eu chamo pelo anjo da morte... peço que me silencie e me dê descanso. Peço perdão a Deus. Tudo em vão.
Estou com o corpo frágil. Velho, não posso mais gerenciar minha própria vida. Estou confinado a uma cama. E nela, todos os dias eu clamo por piedade. Todos os dias eu chamo pelo anjo da morte... peço que me silencie e me dê descanso. Peço perdão a Deus. Tudo em vão.
Várias tentativas de
eutanásia foram realizadas sem sucesso. Eu não tenho permissão para morrer,
porém não posso viver neste corpo vegetativo. Meus ossos são frágeis, minha
língua mal sente os sabores. Meus dentes há muito se foram. Sou um velho senil,
à beira da morte... a mesma morte que me rejeita. Meu único amor se foi há
longa data. Em meus braços eu vi o Anjo tocá-la e partir com sua alma. Mas
porquê ele não foi piedoso e me levou junto???
Com
lágrimas, tento mover os ombros, mas sou tomado pela dor. Com lágrimas, a
consciência dos anos que ainda virão me atormentam. Gostaria de poder voltar no
tempo e corrigir o maior erro de minha vida: a vontade de prolongá-la
indefinidamente.
Eu quero apenas morrer...
Muito bom, Franz! Me lembrou de um episódio do Além da Imaginação em que a morte para de matar! Gosto de pensar que a morte é um processo não só natural, mas também necessário.
ResponderExcluir"Cuidado com o que deseja... Você pode conseguir" Sempre ouvi isso e sempre achei um conselho realmente valioso...
ResponderExcluirParabéns pelo conto Franz^^
Ótimo conto, Franz! E bem interessante a história que motivou o protagonista a fotografar a morte. Sagazes também as tais "entrelinhas" do contrato, hehehe!
ResponderExcluirMe lembrou do "As intermitências da morte", do Saramago (mas admito que não consegui terminar de ler esse livro dele...).
Parabéns!