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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Indomável - II - Fome e sede




Acordo sentindo meus dentes colados no lábio cortado. A ferida enorme está coberta de sangue que coagula e une lábios, dentes e língua numa só carne e transformando o sabor produzido pelo vomito, sangue e bola de catarro que permaneceu ali, numa mistura salgada e tenra. Engulo a seco parte do conteúdo que há em minha boca e sinto meu estomago jubilar de alegria pela podridão que desce pelo esôfago. Devo estar deitado neste chão há séculos. Não consigo nem imaginar quanto tempo estou aqui e sinto que há um enorme vazio dentro de mim.

Primeiro porque me separaram daquela garota maravilhosa. Seu sorriso doce enquanto balançava nos brinquedos que haviam na praça próxima de casa me encantavam. Seu vestido rosado que ela tanto amava e fazia questão de sempre vestir era belíssimo e mostravam o quão bela aquela adorável garota seria ao completar os seus dezoito anos. Daria um trabalho e tanto e seria cobiçada por muitos. Mesmo em seus dez anos de idade já era cobiçada, imagina nos dezoito!

Segundo porque estou com fome.

Há um pedaço de pão seco perto da porta e isso irradia saliva na boca toda ferida. A dor não é capaz de cessar esse desejo que estou de comer. Meus olhos se abrem como se eu fosse um predador e consigo, com muito esforço, sentar-me para apreciar aquele prato apetitoso. Entretanto fecho os olhos logo em seguida pois a dor de mantê-los abertos contra as luzes que ofuscam-me de qualquer parede do cômodo é insuportável. Mesmo com os olhos fechado são.

Mas nada supera a fome. Tento ficar de quatro e rastejar até o prato de comida velha, mas as costelas parecem enfiar suas lanças contra meu pulmão e diafragma. Cada movimento é como uma faca afiada abrindo a pele, a banha branca escondida por ela e por fim meus órgãos vitais que estão expostos e vazando pelos ferimentos. O cotovelo atingido pelo cassetete ainda parece conter uma navalha por dentro, mas ainda assim prefiro ser aberto e rasgado ao meio do que sentir fome.

Apalpo a pedra comestível e penso em abrir a boca, mas só de pensar choro  E choro incessantemente pois sei que a dor voltará a irradiar pelo corpo. Sentirei a grossa camada de sangue duro descolar da carne e puxar cada fibra e veia que percorre a boca. O sangue jorrará novamente e se misturará com o sal das lágrimas que entrarão nas feridas e arderão como álcool. Sentirei os dentes moles que ameaçarão cair e a gengiva quebrada a reclamar pela falta dos dentes que foram arrancados à força.

Minhas mãos tremem e minha respiração intensifica. Penso em conter a minha fome mas a vontade não passa. Sou caçador incansável que tem no estomago nada, senão vácuo. A dor no estomago irradia pelas costas e me deixam num êxtase que não consigo suportar. Sem pensar duas vezes, para não antecipar a dor novamente, puxo com as mãos o meu lábio inferior, sentindo-o dividir em dois. Puxo o maxilar para baixo para tentar separar os dentes e acabo arrancando mais um, que saiu com raiz e tudo mais, de baixo para cima. Termino por fim de tirar o dente e o restante do sangue seco da boca e percebo que estou morrendo de sede. Minha boca está seca como a alma do diabo e a água, posta em um copo, repousa do lado oposto da sala. Me recuso a ir até lá, sem antes dar uma bocada no pão.

Foi em vão, nem que fosse o homem mais forte da terra, não conseguiria arrancar um naco sequer daquela pedra  sem a água. Ainda mais com os dentes como estão! Bastou apenas uma mordida para que eu percebesse que nem toda a fome do mundo seria capaz de vencer uma dor! Ainda assim forcei e tentei forçar os dentes moles contra a gengiva inflamada e desdentada. O áspero daquela superfície forçando contra as feridas é o mesmo de ter o cú fodido pelo cabo de uma vassoura de madeira. Nem mesmo o sangue, que jorrava, foi capaz de umedecer aquele alimento.

Segurei a comida e parti em direção ao copo de água. O céu de minha boca parecia estar ruindo sobre as rachaduras da superfície da língua. As narinas secas ardiam como se inalassem amônia até mesmo as lágrimas que escorriam dos olhos pareciam jorrar com maior densidade.

Ouvi o ranger das botas e mesmo sentindo as facas nas costelas e a navalha no cotovelo, apressei meu arrastar cruzando metade da sala. Meu opressor , entretanto, foi mais rápido. Abriu a porta e chutou o pequeno copo metálico derramando o líquido no chão. Vociferando:

- Você está pronto para pagar os crimes que cometeu?

Eu duvido que qualquer pessoa que sinta o que eu senti, me compreenderá. Quando se ama alguém na força como eu amava é normal fazer tudo o que eu fiz! Cometi um crime horrendo, sei que cometi. Não quero justificar, muito menos ser compreendido. Gostaria apenas que ouvissem meu lado da história e sentissem tudo o que eu senti e ainda sinto.

Mesmo sabendo de tudo o que aconteceu eu a amo. Com cada fibra do meu corpo eu amo aquela garota e choro por ela todas as noites. Sinto saudades e realmente lamento o que aconteceu.

8 comentários:

  1. Caralho Rainier, esse negócio de boca sangrando e dente e coisa e tal ficou muito bom. Total sensação de asco aqui... parabéns!

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    1. Juliano, como sempre presente! Bom lhe ver por aqui! XD

      Juliano, neste conto meu objetivo foi causar o máximo de desconforto possível. Pode crer, a parada nem começou ainda. Na próxima cena (parte 3) você urrará de dor junto com o personagem. Até agora ele só tomou porradas "leves"...

      A tortura começa agora!

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  2. ai... eu to congelada ainda... Sério, calafrios me percorrendo só de imaginar... Ai que dor!

    Parabéns, você ta tirando isso do fundo da alma... Momento troll como você (ou no caso, ele... tanto faz rs) sabe que a dor se compara a ser estuprado por um cabo de vassoura? - ignore o troll em mim rsrsrs...

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    1. Fico muito feliz por ler isto! Como disse pro Juliano, a intenção foi justamente esta, causar desconforto, asco, nojo, arrepios e dor.

      Ah! E essa do cabo de vassoura tem sentido na história, acompanhe que vc verá o porquê o personagem disse isto! #tenso #flashbackfeelings...

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  3. Adoro contos em primeira pessoa. Passa uma sensação de verossimilhança maior e você faz isso muito bem Rainier. Muito curioso pra saber o desfecho dessa história. Parabéns!

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    1. Valeu demais Edilton, a próxima parte já foi publicada, espero que vc sinta o puxão que ela dá na história! Há Braços!

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  4. Eita, Rainier, este ficou dos diabos! Os dentes se rompendo, o dilema entre fome e dor - que ideias! Senti um nervosismo impressionante enquanto lia.
    Parabéns!

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