Leia antes: Indomável - I - Lar doce lar
Acordo sentindo meus
dentes colados no lábio cortado. A ferida enorme está coberta de sangue que coagula e une lábios, dentes e língua numa só carne e transformando o sabor produzido pelo
vomito, sangue e bola de catarro que permaneceu ali, numa mistura salgada e
tenra. Engulo a seco parte do conteúdo que há em minha boca e sinto meu
estomago jubilar de alegria pela podridão que desce pelo esôfago. Devo estar
deitado neste chão há séculos. Não consigo nem imaginar quanto tempo estou aqui
e sinto que há um enorme vazio dentro de mim.
Primeiro porque me
separaram daquela garota maravilhosa. Seu sorriso doce enquanto balançava nos
brinquedos que haviam na praça próxima de casa me encantavam. Seu vestido
rosado que ela tanto amava e fazia questão de sempre vestir era belíssimo e
mostravam o quão bela aquela adorável garota seria ao completar os seus dezoito
anos. Daria um trabalho e tanto e seria cobiçada por muitos. Mesmo em seus dez
anos de idade já era cobiçada, imagina nos dezoito!
Há um pedaço de pão
seco perto da porta e isso irradia saliva na boca toda ferida. A dor não é
capaz de cessar esse desejo que estou de comer. Meus olhos se abrem como se eu fosse um predador e consigo, com muito esforço, sentar-me para apreciar aquele
prato apetitoso. Entretanto fecho os olhos logo em seguida pois a dor de mantê-los abertos
contra as luzes que ofuscam-me de qualquer parede do cômodo é insuportável.
Mesmo com os olhos fechado são.
Mas nada supera a
fome. Tento ficar de quatro e rastejar até o prato de comida velha, mas as
costelas parecem enfiar suas lanças contra meu pulmão e diafragma. Cada
movimento é como uma faca afiada abrindo a pele, a banha branca escondida por
ela e por fim meus órgãos vitais que estão expostos e vazando pelos ferimentos.
O cotovelo atingido pelo cassetete ainda parece conter uma navalha por dentro, mas ainda assim prefiro ser aberto e rasgado ao meio do que sentir fome.
Apalpo a pedra
comestível e penso em abrir a boca, mas só de pensar choro E choro
incessantemente pois sei que a dor voltará a irradiar pelo corpo. Sentirei a
grossa camada de sangue duro descolar da carne e puxar cada fibra e veia que
percorre a boca. O sangue jorrará novamente e se misturará com o sal das
lágrimas que entrarão nas feridas e arderão como álcool. Sentirei os dentes
moles que ameaçarão cair e a gengiva quebrada a reclamar pela falta dos dentes
que foram arrancados à força.
Minhas mãos tremem e
minha respiração intensifica. Penso em conter a minha fome mas a vontade
não passa. Sou caçador incansável que tem no estomago nada, senão vácuo. A dor
no estomago irradia pelas costas e me deixam num êxtase que não consigo suportar.
Sem pensar duas vezes, para não antecipar a dor novamente, puxo com as mãos o
meu lábio inferior, sentindo-o dividir em dois. Puxo o maxilar para baixo para
tentar separar os dentes e acabo arrancando mais um, que saiu com raiz e tudo
mais, de baixo para cima. Termino por fim de tirar o dente e o restante do
sangue seco da boca e percebo que estou morrendo de sede. Minha boca está seca
como a alma do diabo e a água, posta em um copo, repousa do lado oposto da
sala. Me recuso a ir até lá, sem antes dar uma bocada no pão.
Foi em vão, nem que
fosse o homem mais forte da terra, não conseguiria arrancar um naco sequer
daquela pedra sem a água. Ainda mais com
os dentes como estão! Bastou apenas uma mordida para que eu percebesse que nem toda
a fome do mundo seria capaz de vencer uma dor! Ainda assim forcei e tentei
forçar os dentes moles contra a gengiva inflamada e desdentada. O áspero
daquela superfície forçando contra as feridas é o mesmo de ter o cú fodido pelo
cabo de uma vassoura de madeira. Nem mesmo o sangue, que jorrava, foi capaz de
umedecer aquele alimento.
Segurei a comida e
parti em direção ao copo de água. O céu de minha boca parecia estar ruindo
sobre as rachaduras da superfície da língua. As narinas secas ardiam como se
inalassem amônia até mesmo as lágrimas que escorriam dos olhos pareciam jorrar
com maior densidade.
Ouvi o ranger das
botas e mesmo sentindo as facas nas costelas e a navalha no cotovelo, apressei
meu arrastar cruzando metade da sala. Meu opressor , entretanto, foi mais rápido. Abriu a porta e chutou o pequeno copo
metálico derramando o líquido no chão. Vociferando:
- Você está pronto para pagar
os crimes que cometeu?
Eu duvido que
qualquer pessoa que sinta o que eu senti, me compreenderá. Quando se ama alguém
na força como eu amava é normal fazer tudo o que eu fiz! Cometi um crime
horrendo, sei que cometi. Não quero justificar, muito menos ser compreendido.
Gostaria apenas que ouvissem meu lado da história e sentissem tudo o que eu
senti e ainda sinto.
Mesmo sabendo de
tudo o que aconteceu eu a amo. Com cada fibra do meu corpo eu amo aquela garota
e choro por ela todas as noites. Sinto saudades e realmente lamento o que
aconteceu.
Caralho Rainier, esse negócio de boca sangrando e dente e coisa e tal ficou muito bom. Total sensação de asco aqui... parabéns!
ResponderExcluirJuliano, como sempre presente! Bom lhe ver por aqui! XD
ExcluirJuliano, neste conto meu objetivo foi causar o máximo de desconforto possível. Pode crer, a parada nem começou ainda. Na próxima cena (parte 3) você urrará de dor junto com o personagem. Até agora ele só tomou porradas "leves"...
A tortura começa agora!
ai... eu to congelada ainda... Sério, calafrios me percorrendo só de imaginar... Ai que dor!
ResponderExcluirParabéns, você ta tirando isso do fundo da alma... Momento troll como você (ou no caso, ele... tanto faz rs) sabe que a dor se compara a ser estuprado por um cabo de vassoura? - ignore o troll em mim rsrsrs...
Fico muito feliz por ler isto! Como disse pro Juliano, a intenção foi justamente esta, causar desconforto, asco, nojo, arrepios e dor.
ExcluirAh! E essa do cabo de vassoura tem sentido na história, acompanhe que vc verá o porquê o personagem disse isto! #tenso #flashbackfeelings...
Adoro contos em primeira pessoa. Passa uma sensação de verossimilhança maior e você faz isso muito bem Rainier. Muito curioso pra saber o desfecho dessa história. Parabéns!
ResponderExcluirValeu demais Edilton, a próxima parte já foi publicada, espero que vc sinta o puxão que ela dá na história! Há Braços!
ExcluirEita, Rainier, este ficou dos diabos! Os dentes se rompendo, o dilema entre fome e dor - que ideias! Senti um nervosismo impressionante enquanto lia.
ResponderExcluirParabéns!
Inspiração divina em Orwell.
ExcluirObrigado Rodrigo! XD