Antes de ler o conto abaixo, talvez seja mais interessante, antes, ler Brenda, Victor , Campeão e o da tempestade. Embora as histórias sejam fechadas, todas fazem parte do mesmo processo... Assim como os próximos dois contos deste autor.
Tudo que pode dar errado dará. A
situação era urgente e, para variar, estava sem seu carro pessoal – três dias
antes, o radiador tinha, praticamente, derretido –, sem uma viatura e, segundo
sua mãe, não poderia envolver Rita nisso – ou seja, sem carona. “É um problema
de família, literalmente”, advertira dona Carmen. Para piorar, não frequentava
o bairro onde passou a infância desde que entrou para a PM – mesmo à paisana,
podia ser perigoso. Quando foi possível ingressar uma faculdade e estudar
Medicina, se afastou ainda mais daquela realidade... Porém, aquela tempestade
levou tudo isso embora; algo horrível estava acontecendo e não podia continuar
negando.
A mãe tinha o contaminado com a
preocupação pela irmã, sua tia Ivone. Nunca entendeu a relação das duas, essa
conexão. Na verdade, não eram irmãs biológicas: Ivone foi adotada quando já
era, para os padrões da época, uma mulher. O assunto não era muito abordado,
mas dava a entender, às vezes, que foi o mínimo que podiam fazer em
agradecimento... Um assunto do passado que ainda era vivo, influente... Uma das
poucas vezes que, ainda criança, perguntou sobre isso – a diferença entre as
duas estava “na pele” –, era distraído com algum bolo ou coisa assim recém-saídos
do forno. Agora, esses aspectos pareciam cruciais... Por isso, a espera pelo
ônibus 3531 era desesperadora. As outras vinte e poucas pessoas à sua frente,
na fila, eram desesperadoras. O vento, parecendo anunciar outra tempestade, era
desesperador.
Algo horrível estava acontecendo.
E o ônibus estava atrasado.
***
A manhã de Jussara se tornava
péssima no momento em que abria os olhos. Precisava acordar às quatro horas da
manhã, arrumar-se, sair, andar por quarenta e cinco minutos e esperar o Everson,
motorista do 3531, e começar o primeiro turno do dia. E, pessoalmente, passaria
o turno odiando o dia, o seu emprego, os passageiros, o Everson, o 3531 e o que
mais fosse possível.
Ninguém entendia Jussara ou as
escolhas que fez. Era jovem, era relativamente bonita – sinceramente, seu corpo
era chamativo e farto, mesmo que o resto não fosse – e poderia ter sido mais
bem sucedida, se tivesse procurado estudar quando teve a chance. Contudo, algo
deu errado, no meio de sua trajetória, e se tornou uma mulher que odiava tudo
que destacasse sua mediocridade, seu fracasso...
Assim, sonolenta e odiando,
cruzando ruas vazias e com iluminação precária, não percebeu o vulto se
aproximando.
***
“Mulher odiosa”, Victor pensava
enquanto tentava se acomodar no ônibus lotado. Até pensou em usar da sua
autoridade para questionar aquilo, mas resolveu não se deixar levar. Ninguém,
afinal, reagia ou reclamava da situação: para todas as pessoas que passavam
pela roleta, a cobradora dirigia um olha de desprezo cheio de fúria. Mesmo
quando o passageiro era mais simpático, ignorava os cumprimentos e as
tentativas de conversa fiada. Victor considerava isso aviltante; primeiro, se
não gosta de lidar com gente, não trabalhe com gente, e, depois, um mínimo de
educação e boa vontade. “É esse tipo de pessoa que torna o mundo um lugar
pior”, refletiu, e o veículo começou a se mover, finalmente.
Era difícil, dada à situação, não
pensar em Rita e no menino ou menina que estavam para por no mundo. Um mundo
cheio de maldade e terrores indizíveis, pelo jeito. Onde uma menina era
espancada por colegas, onde esses colegas eram mortos por outro estudante às
machadadas, onde menininhos eram abandonados e se tornavam monstruosidades... E
isso era só o que ele sabia. No caso de Matheus, por exemplo, passou noites
estudando para encontrar uma explicação para aquilo. Não havia – como diria Liz
Tremayne, apenas “o horror em nossas vidas” explica.
Por isso,
estava tão nervoso, e isso era visível: quando reparou, a mão que usava para
manter o equilíbrio, segurando na barra de metal mais próxima, estava sangrando.
E era muito sangue. A ansiedade, a preocupação e o medo cobraram seu preço...
...E mais.
***
Ninguém entendia Jussara ou as escolhas que fez. E, agora,
ela não entendia o que havia lhe acontecido... Inconscientemente, ela soube que
aquele ódio, alimentado por muitos anos, ganhara nova força, um sentido e,
talvez... E, talvez, tivesse permitido matar a vontade que ela tinha matar.
Por isso, ao
longo das horas de trabalho – as detestáveis horas de trabalho –, em sua mente,
só ocorria a fugaz e confusa lembrança de um vulto saltitando na escuridão em
sua direção... E, depois, um sorriso com mil dentes de jade.
Com isso, o
odor do sangue – o odor do sangue da sua presa! – despertou algo, finalmente.
E, Deus, era
bom demais!
***
O que se seguiu, segundo o
próprio Victor, “foi mais rápido do que o tempo que leva pra contar”. Ao tentar
limpar o sangue e ver se o corte era, enfim, grave, algo no limiar da
consciência o alertou – como se algo muito antigo, lá no fundo, soubesse o que
estava por vir.
Nisso, levantou o rosto e viu a
cobradora. Retorcendo-se. Emitindo sons mudos. Estalando todos os ossos do
corpo simultaneamente – e em ângulos impossíveis. E algo denso como neblina
erguia-se de seu corpo, tomando parte do teto da condução. Acreditando que
estava mais afetado do que imaginava, fechou os olhos e esperou que o delírio
passasse... Contudo, não percebeu que ss demais pessoas no interior do veículo
também viam a cena... E não sabiam como reagir! Era como assistir ao parto de
uma baleia ou a filmagem de alguém fazendo algo que daria comicamente errado;
não se consegue desviar o olhar!
Com esse poucos momentos de
estarrecimento imóvel, a “neblina” tomou todo o ônibus e, portanto, Victor
nunca soube dizer o que aconteceu naqueles minutos, exceto por um fulgor
esmeralda que atravessou, mesmo assim, suas pálpebras cerradas. Mais tarde, ele
saberia que “isso” era “poder”, simplesmente. Porém, mais uma vez, isso era
coisa para se pensar quando pudesse parar de correr e atirar.
***
“Leve a arma contigo. E não me
olha assim! Eu sei que tem uma... Se é que é só uma... Em casa!”, Carmen
ordenou. E ele seguiu a ordem. Um dia, questionaria a mãe sobre essas
previsões, mas, no momento, precisava ficar escondido e tomar ar. Controlava-se
para não ofegar alto demais – o som atrairia muitos. Pior que ofegar era, na
verdade, o medo. Em seis anos como policial militar, mesmo invadindo áreas
dominadas pelo tráfico e com tiros de 9mm e de sete-meia-dois passando a
centímetros de sua cabeça, nunca se sentiu assim; na verdade, entre seus
colegas, o apelido que possuía era “Palha”, como em “coração de palha” – um
cara que não vacilava sob pressão. Aquilo, entretanto, era pavor verdadeiro.
Pavor da caçada – e entendia, agora, porque todo fogueteiro era encontrado
chorando, urinando nas próprias roupas em uma viela suja.
O maior problema era que o
transporte coletivo foi só o começo: eles se multiplicaram, nas ruas. Era uma
ciranda selvagem de transeuntes, comerciantes, os passageiros do 3531, três ou
quatro garis e, num gracejo mórbido, até um b-boy e um capoeirista, Victor
reparou. E todos agindo como uma consciência coletiva de ódio...
“Como predadores... Como um arcossauro!”,
e isso trouxe lembranças antigas que não faziam o menor sentido, considerando
tudo. A preocupação, agora, era que as balas estavam acabando... E uma ele
precisaria para o caso de “ficar sem opções”. Por ora, estava conseguindo
manter-se escondido e salvo, mas o comportamento de rapina era eficiente, e
Victor estava muito ciente disso.
***
Aquilo que foi Jussara fazia
parte, agora, de uma única mente e, exceto pelo homem sábio e a cozinheira,
ninguém era excluído... Todos eram o coletivo. Todos eram filhos da senhora
sorridente, agora.
***
Por um milagre... Ou por mera piada...
Victor chegou ao portão da pequena casa de sua tia. A tensão e a adrenalina,
nesta altura, eram avassaladoras... Por algum motivo, seus sentidos pareciam
igualmente afetados: podia ouvir, nitidamente, a espécie de gorjeio que os
caçadores faziam, mas, era engraçado, o seu olfato denunciava o incrível aroma
do bolo de milho que só Ivone era capaz de preparar. Com isso, criou coragem
para se mexer, novamente. Precisava entrar na casa. Precisava saber. Mas e aquela sensação? Novamente, uma concepção ancestral de perigo o alertava... E uma memória de infância endossava isso. Só que não podia abandonar sua tia, podia?
Entrou.
E aquele
sorriso o recebeu.
Várias pistas, eu deixei.
ResponderExcluirAlgumas coisas começam a se encaixar nessa multidão de confusões. Digo que essa parte fez as outras, antes bagunçadas, se tornarem mais saborosas.
ResponderExcluirAguardo ansiosamente o tempero final e o servir do prato (as próximas duas partes). Algo me diz que só sentirei o sabor do alimento perfeitamente assim que concluído; algo me diz que vou adorar o desfecho... XD
Alguém voltará, só digo isso. :P
ExcluirAAAAAAAAI que agonia!!! Cadê as outras partes Sr Mano??? Ansiedade!!!!!
ResponderExcluirParabéns ^^
Mano... Você é "o cara" (nada de pejorativo rs). Muito bom... Aliás... Todas as suas histórias são muito boas. Eu compraria um livro seu numa boa (se fosse baratinho, é claro... kkkk)
ResponderExcluirParabéns!
Poxa, valeu, Edilton! :D
ExcluirSignifica muito.
Ainda escreverei um livro sobre ex-participantes de reality shows envolvidos com a maldição de uma lhama infernal. Será acessível, hahaha.
Muito bom! Gosto dessa alternância entre recordação/passado e ação/presente. Dá para construir o personagem e narrar a história simultaneamente.
ResponderExcluirSegue bem!
Em breve lerei as duas partes finais.