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domingo, 17 de fevereiro de 2013

A confissão de um rejeitado


O homem que usava farrapos entrou na igreja, buscando o alívio do peso que carregava há muito tempo. A  pele era cheia de feridas que exalavam um odor agressivo demais até para os olfatos mais tolerantes. Coçava-se como um cão sarnento.

Quando uma pessoa que saia do local o olhou com desprezo, levantou o capuz do casaco encardido para evitar ainda mais humilhação. 

Deslocando-se pelos cantos, almejando passar o mais despercebido possível, chegou até o confessionário e entrou. 

—Será que eles estão atrás de mim agora?! Não quero que eles me peguem! Eles querem me matar, eu sei! Eu sei! Não adianta mentirem, sempre soube! Maldição! Por que confiei neles?! 

O seu delírio paranoico foi interrompido pelo som do padre entrando no cubículo adjacente com passos lentos devido à avançada idade. 

Olhou para os próprios pés, protegidos por galochas pretas com os solados quase descolando e balbuciou: 

—Abençoai-me, padre, porque pequei. Eu pecador me confesso a ti. Nunca me confessei – “não pensei que precisaria”, completou em pensamento – Meus pecados são os seguintes... – uniu as mãos entre as pernas, imaginando por onde começar, depois as relaxou sobre os joelhos. 

—Pode falar, filho. Deus é misericordioso, capaz de perdoar a todos nós – o pároco dizia cada sílaba vagarosamente, o que acentuava o seu sotaque estrangeiro, talvez alemão. 

—Tudo começou quando acreditei possuir algo firme sobre o qual caminhar e outra acima de mim para conquistar, sempre fui um sonhador incorrigível. Não posso negar. Megalomaníaco? Um pouco – coçou a barba e tossiu levemente, lançando gotículas de sangue no chão – Desculpe-me, mas retomando o que dizia. Todos os meus caprichos eram satisfeitos, nada se escondia de minhas mãos. Não havia escuridão impenetrável. 

O padre apenas absorvia as palavras enigmáticas, tentando decifrar o que verdadeiramente o homem queria dizer. 

—Quase fui engolido pelas maravilhas que embriagavam os meus sentidos, então comecei a separá-las. Estabelecendo assim esferas distintas, tendo sucesso em manter as aparências nos momentos convenientes. Como os homens fazem. 

—Continue, sinto que você ainda precisa desabafar. 

—O senhor está correto. 

Os últimos fiéis que oravam saíram. O barulho dos passos se diluía no ar. 

—Esperança...se ela fosse algo vivo e não um conceito ao qual tudo o que pensa se agarra, desejaria que tivesse a morte mais pavorosa... 

O padre comentou assustado: 

—Filho, esse sentimento que você carrega é venenoso, saliva da própria serpente! Policie o teu coração, mas continue a confissão. 

O mendigo tossiu novamente. 

—Estou morrendo, padre, queira relevar os meus pensamentos perniciosos – tomou fôlego – A esperança foi o que me manteve caminhando. Quando vi aquele feixe de vida brotar, chorei. Fiquei emocionado de verdade. Desse ponto em diante, me senti impulsionado a criar, experimentar.

O homem de nome desconhecido gesticulava demasiadamente, sentindo o coração acelerar. Os olhos dele se moviam como se quisessem capturar todas as direções ao mesmo tempo. 

—Tenha paciência, respire – a voz monótona o centrou. 

Ajeitou-se na cadeira e prosseguiu. 

—Estava seduzido pelo esplendor que me impressionava, era quase como a primeira vez de um virgem, mas sabia que não podia deixar-me perder o norte, logo usei das ferramentas de que dispunha para estabelecer fronteiras. Colocar a luz de um lado e a escuridão de outro. Ela não podia ficar aqui – tocou a testa com o indicador da mão direita. 

—Os demônios frequentemente nos assolam com os seus murmúrios vindos do abismo. A fé é nossa única arma, o resto é coisa do mundo. 

—“Coisa do mundo” – balançou a cabeça, pesando aquela ideia vaga, mas não emitiu qualquer juízo – Retornado à libertação de meu fardo. As coisas melhoraram com o isolamento das contrapartes. Não demorou para que um novo “coelho” saísse da cartola, mas aquilo ainda estava sob os meus domínios. Hoje percebo que tudo seria uma maravilha se não tivesse ido adiante, mas estava em alta velocidade, não podia parar. Eu queria ver o que estava na próxima esquina! 

O mendigo olhou para as mãos com expressão de arrependimento. 

—Antes de cair na inércia que me trouxe aqui, ousei dar vazão ao meu intuito supremo. Não calculei os seus efeitos e ele está me flagelando, apresentando-me à morte em parcelas. Ele é a coisa mais tenebrosa em todo o universo, duvido ser contestado. Temo que este seja meu último dia. 

—Quem está lhe ameaçando? Esta pessoa fez ameaças tão graves assim? 

—Sim, padre – disse enfiando a mão esquerda em um dos bolsos, onde tocou um metal frio – Ela quer me matar – as lágrimas surgiam, enquanto retirava o objeto do bolso esquerdo. 

—Ela ou ele, meu filho? Como assim... – antes que pudesse concluir a frase, foi brutalmente interrompido. 

—Ela toda, padre – disse gritando – a humanidade! Ela me condenou a este estado deplorável – engatilhou o revólver que continha apenas uma bala – Eles me deixaram horrorizado! Eu perdi minha fé nela! 

—Qual o seu nome, filho? – disse gemendo o padre com a voz trêmula, sentindo dor em todo o seu corpo. 

Aquele que usava andrajos revelou, enquanto levava em câmera lenta o cano do revólver para dentro da boca: 

—Javé, Aará, Adon Hakavod, El-Qana, El-Shadday, Elohim, Eloah, Shadday, Shaphatar, Yahweh e muitos outros...ou simplesmente...Deus! – o projétil da arma penetrou o céu da boca e saiu pelo topo da cabeça, fazendo o corpo imundo cair no chão de pedra. 

O sangue que manchou o teto do cubículo e agora formava uma poça onde o cadáver tombou era dourado, mas progressivamente foi assumindo um tom mais escuro até virar preto. 

—Oh! – a dor no corpo do padre estava excruciante, ele jogou-se no chão, arrastou-se até abrir a porta do confessionário e sair rastejando. 

De onde estava, podia ver as portas da igreja abertas. 

Nas ruas, as pessoas começaram a se agredirem descontroladamente, carros colidiam, algumas choravam ajoelhadas e outras sangravam por todos os poros. 

—Por que!? – o padre sentia coisas movendo-se dentro de si. 

Ele emitiu um grito que pode ser ouvido no quarteirão vizinho, antes que dezenas de ratos, baratas, escorpiões e lacraias eclodissem de sua barriga. As pragas e vermes o devoraram até que ficassem somente os ossos. Estrelas explodiram. Em um piscar de olhos o universo deixou de existir e a paz nasceu.

2 comentários:

  1. Belo texto, rapaz. Mostrou claramente do que a humanidade, atual, é capaz de fazer com nossas vidas. Temos que lutar com tantos demônios que nos afligem diariamente e nem sempre conseguimos. E, muitas vezes, acabamos nos entregando a eles. Não consigo achar outra palavra a não ser, brilhante. Parabéns!

    Abraços,
    Ana Luisa

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    1. Agradeço o comentário, Ana. Sim, a humanidade é encantadora e terrível, depende de qual lado da moeda estivermos observando. Lutar com a sombra guardada em nossas cabeças não é fácil sempre, mas esse conflito é uma parte essencial do ser humano. Obrigado!

      Abraços!

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