Tic...tac...tic...tac...
O
porão isolava todos os barulhos externos, unicamente o relógio analógico de
parede mantinha Rafael ligado à realidade. Tirando-se esse fator, ele vagava
pela própria mente nos departamentos menos iluminados.
As
décadas trabalhando no escritório de uma poderosa corporação fizeram com que a
sua perspectiva sobre seu cérebro se tornasse apenas uma palavra:
departamentos. Setores rigorosamente controlados por meio de fichas. Não
demorou muito para que todos os sonhos fossem classificados como arquivo morto
sem qualquer análise prévia.
A
determinação em ser o melhor funcionário possível lhe garantiu uma ascensão
profissional rápida, hoje era presidente. Em compensação, todos os seus cabelos
ficaram brancos antes do tempo e ele insistia em negar que aquele era o seu
rosto. Todavia só tinha as suas crises no lar, pois no trabalho era conveniente
manter-se imaculado.
O
seu terno jamais estava amassado, seus lábios ganharam experiência em forçar
sorrisos e pronunciar palavras vazias, mas que satisfaziam quem as acolhesse.
Coçou
a têmpora direita com a caneta nanquim e começou a escrever.
Às autoridades,
Quero deixar
absolutamente claro que estou em pleno uso de minha sanidade ao planejar o ato
hediondo que estou prestes a realizar. Não tive a colaboração de qualquer
pessoa ou fui induzido a tal por alguém.
Quanto à minha
motivação... liberdade. Vocês e toda a sociedade assassinaram o meu espírito da
forma mais desumana possível, então por que tenho de poupar uma engrenagem tão
preciosa para o sistema?
Pensei em fazer
uso de algumas palavras de baixo calão para expressar todo o meu desgosto e
fúria, contudo vocês me roubaram a simples capacidade de xingar, incutindo em
minha vida a etiqueta.
Não tenho mais o
que falar. Honradamente me despeço.
Rafael Moacyr de
Lemos.
Pousou
a caneta ao lado da folha sobre a mesa impecavelmente arrumada de modo a manter
um equilíbrio espacial, sem um exagero de objetos concentrando-se em um canto.
O Transtorno Obsessivo Compulsivo por organização, em um padrão que somente ele
entendia, foi um dos distúrbios adquiridos ao longo de sessenta anos.
Todos
dormiam na casa – a mulher, o filho de dezenove anos e a sogra rabugenta. Pegou a
machadinha de prata, comprada há muitos anos em uma loja de caça e pesca, em
uma das gavetas de sua mesa no porão e a esfregou com uma flanela, somente para
retirar uma fina camada de poeira.
Subiu
até o primeiro andar furtivamente. Afrouxou a gravata que ainda usava, como um
ato de rebeldia e deu vazão à sua fúria.
Primeiro,
encarregou-se da sogra, desferindo um golpe perfeito no pescoço, decapitando-a.
Depois foi para o quarto do filho, aquele que jamais o respeitou e vivia
sugando seu dinheiro em farras, e cravou a arma entre os seus olhos. O garoto
tentou gritar por socorro, mas antes teve a boca tampada e outro golpe abriu
por completo o seu crânio. A mulher, só restava ela. A companheira que jurou amá-lo
eternamente, mas o traiu incontáveis vezes. Prestadores de serviços, amigos,
vizinhos, a lista era grande.
Deixou
a machadinha na soleira da porta e caminhou cada passo até perto da cama como
um lobo que se esgueira até a sua vítima. Pegou o seu travesseiro, subiu a cama
delicadamente e montou em cima dela.
Ela
começava a abrir os olhos, mas antes de ter consciência do que acontecia,
Rafael pressionou o travesseiro contra o rosto dela. Durante alguns minutos, a
mulher debateu-se. Para garantir que ela estivesse morta, ficou com o
travesseiro pressionando mais um pouco.
Pegou
a machadinha, sentou-se na cama junto com o cadáver da esposa e passou a lâmina
nos pulsos. Enquanto o sangue escorria, repassou mentalmente o discurso que fez
ao tomar a posse da presidência.
**
—Amor,
o jantar já está servido – uma voz feminina disse –, a mamãe e o Pedro só estão
lhe esperando.
Rafael
terminou de escrever mais um conto, amanhã de manhã encaminharia para a
revista.
Ultimamente
o seu ritmo de produção estava satisfatório e os leitores costumavam apreciar a
sua narração, o que lhe rendia alegria como escritor. Guardou a caneta nanquim
em uma das gavetas, mas antes de fechá-la admirou um pouco a machadinha de
prata, a musa tétrica que o ajuda a canalizar a escuridão para o papel,
tocou-a, assim como se acaricia uma virgem e depois afastou a mão. Sorriu,
aliviado pela catarse, indo de encontro ao feliz jantar em família.
Uau!!! Conto surpreendente Junior... Parabéns! Jurava q o final seria outro... hehe
ResponderExcluirBjs
Nica
Poxa, saber que o conto a surpreendeu me deixa tão feliz ^.^ Agradeço as palavras!
ExcluirBeijos!
Como Nica, também imaginei que o fim seria outro. Praticamente um conto dentro do outro, muito bem pensado e escrito. Parabéns, Ednelson.
ResponderExcluirAbraços,
Ana Luisa
Ana, sinto que meu dever foi cumprido ao conseguir lhe surpreender, fazer uma boa virada na trama em pouco espaço não é tão fácil, ainda bem que consegui. Obrigado por sempre estar presente nos comentários dos meus contos.
ExcluirAbraços!
Nada melhor que desabafar de alguma forma, e escrever é uma ótima saída ;)
ResponderExcluirGostei muito, pois no começo achei o conto muito clichê, porém o final surpreendeu e me deixou mais que satisfeita!
Fantasiar faz bem para a mente, mesmo que possa parecer cruel AHAHA
Beijos.
Sim, Tati, volta e meia precisamos desabafar e escrever é uma das opções. A intenção era justamente causar esse estranho de uma parte clichê seguido por uma virada inesperada. Ufa...ainda bem que deu certo. Acho que todos temos demônios ou sombras, isso não nos torna ruins ou perversos, pois nós transformamos isto em coisas construtivas.
ExcluirBeijos.
Correção: seguida*
ExcluirJá matei várias pessoas em sonhos, imaginação ou textos AHAHAHA Adorei!
ExcluirAchei a história muito boa, Ed. Até imagino uma continuação com essa machadinha de prata sendo algo mais do que um simples objeto. rs
ResponderExcluirO final não me surpreendeu, mas o imaginava um pouco diferente. Imaginei se tratar de um delírio, um sonho, algo assim. Até porque um personagem tão enrijecido quanto o que você descreveu dificilmente colocaria em prática esses desejos escabrosos, tendo como alternativa ou a vida da psicose (com uma delírio), ou da sublimação (com um sonho ou um escrito, como você colocou).
Muito bem construído. A machadinha de prata ficou como um elemento distoante que causa o estranhamento necessário em uma história de terror para "desequilibrar" o leitor, tirando-o do lugar do conhecido.
Parabéns!
Obrigado pelas palavras, Sandro. Agora que você falou isso...quem sabe a machadinha voltará? Agradeço a ideia.
ExcluirRapaz, considerando a sua área de atuação (além da literatura), sinto-me honrado com os elogios.