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terça-feira, 14 de maio de 2013

Mudança de hábito.


Os olhos se abrem e, imediatamente, a luz atinge-os, provocando uma dor muito forte. O silêncio incomoda e atordoa. Onde, afinal, ele está?
Pequenos lampejos de lembranças chegam e somem com igual velocidade. Ele recorda de ter saído para comprar mais bebida. Também se lembra do sorriso da filha e do cheiro gostoso do churrasco. Mas o que trouxe até aquela sala cheia de plástico? O que estava acontecendo?

Sua visão se adaptou à luminosidade forte, vinda das telhas transparentes, e rapidamente começou a vasculhar o ambiente. Seu corpo estava deitado sobre uma mesa de madeira, antiga e pesada. Fitas o mantinham preso à mesa, o corpo nu estava parcialmente entorpecido pelo período longo grudado na mesa. Quem, afinal, o teria posto ali? 
Foi então que seu coração disparou. Em um canto à frente dele estava um santuário, um lugar que parecia um oratório, cheio de fotos e pequenos retratos 3 X 4. Eram muitas crianças no oratório, todas retratadas em momentos felizes, suas faces sorridentes e cheias de promessas. Imortalizadas de certa forma. 
- Merda. - vociferou o homem preso. - Ei, alguém me tire daqui. Sou policial, não podem me manter trancado. Tem alguém por perto? Por favor, me tirem ...
Um som o fez silenciar. Passos lentos fizeram com que o medo o atingisse. Quem o prendeu estava perigosamente próximo...
- Ei, me escute. Eu não sei o que quer ou quem é. Não vi seu rosto. Não ouvi sua voz. - disse, não podendo disfarçar o temor. - Eu tenho algum dinheiro e posso ajudá-lo. Mas não me machuque, por favor.
Uma mão tocou sua testa, fazendo-o contrair todos os músculos do corpo. A mão estava envolvida em uma luva plástica. O cheiro de látex era nauseante.
- Eu... - começou o homem escondido no anonimato e nas trevas - não temo que ouça minha voz. Também não vejo problemas em que saiba quem sou. Quanto ao seu dinheiro, posso garantir que não precisará mais dele. Compreende?
As lagrimas escorriam pela face do preso. Sua mente urrava por piedade, porém ele sabia o quanto poderia ser ruim demonstrar mais fraquezas. Sua sobrevivência dependeria de sua astúcia.
Ele girou a cabeça, buscando encontrar a face de seu carcereiro. Era vital travar um contato visual, enquanto os ânimos de seu captor não estavam exaltados.
- Quer me ver? - questionou o homem que se escondia sob as sombras. - Olhe para mim, mas antes contemple suas vítimas.
Um som de algo mecânico encheu a sala. Parecia que algo deslizava e, então, o preso entendeu o que era: um projetor. As imagens que se seguiram não serviram de esperança para aquele indivíduo deitado e amarrado à mesa. Fotos de crianças sorrindo, muitas entre 5 e 8 anos. Todas privadas de suas vidas por um animal incontrolável, viciado no odor da morte. Ele havia sido descoberto...
Algo frio atingiu seu rosto, provocando um leve torpor e, logo após, um filete de sangue. O homem era agora parte de um ritual, informavam seus instintos. Os mesmos instintos ordenavam-no que mantivesse a calma, a esperança.
- Cada uma dessas crianças foi devorada por você. Covardemente, elas tiveram suas vidas ceifadas para apaziguar um desejo. Pais cometeram o suicídio após a descoberta de suas perdas. Futuros foram apagados quando as matou. Tem algo a dizer?
O prisioneiro tremeu. Sua voz parecia abafada diante da grandiosidade do predador à sua frente. Era o momento de arriscar.
- Escute. Somos muito parecidos. Você é um vingador, tira os maus do caminho dos bons. Eu entendo... e respeito. Porém não sou um assassino. Eu livro as crianças de um mundo mal, cruel e impiedoso. Por mim, elas são poupadas das dores e de um futuro sujo e injusto. Meu trabalho é evitar que a pobreza e os males de uma vida privada de quaisquer benefícios os transformem em algo próximo do que sou. A árvore é cortada antes que possa tombar pelo vento e destruir o que se encontra em seu caminho. Eu sou a mão de Deus. Você também é uma dessas mãos. Somos irmãos através de nossas missões. Entende o que digo?
Pela primeira vez Dexter estagnou. Em parte, ele concordava com as palavras do homem, mesmo sabendo que jamais ferira um inocente. Eram animais, predadores que precisavam de sangue e dor para suprir suas necessidades. Mas nunca a carne, os lamentos e o sangue dos puros. Isso, nunca.
Dexter respirou profundamente, encarou sua vítima e disse:
- Você é um instrumento de Deus? Ok. Vamos por essa afirmação à prova. 
Os gritos ecoaram. O homem preso urrava a cada novo corte de bisturi em seu corpo. Essa seria uma morte terrível, pensou ele, assim como também pensou que jamais iria salvar outra crianças. O fim estava próximo... seus olhos foram fechando e a dormência atingiu seus braços e pernas. Hora de morrer.
...
- Acorde!
Um tapa atingiu sua face, violentamente. Ele despertou, cheio de dores e deitado em um chão frio. Os cortos foram suturados com muito cuidado. Será que o matador mudara de ideia?
O prisioneiro viu um vulto próximo a ele, envolto em sombras, mas não distante. Havia um cheiro diferente no ambiente, algo incomum. Não soube distinguir o que era. Tentou se levantar, mas seu pescoço estava preso por uma coleira e uma corrente, assim como seus tornozelos. 
- Ouça. Eu refleti sobre suas palavras e não o matei. Você pode realmente ser um anjo da morte, um enviado do Deus. Mas não cabe a mim afirmar isso. Você pode ser um homem santo, porém é a eles que terá que provar...
Uma porta se abriu e dela saíram cinco rotweillers, magros de fome, rosnando e farejando. 
- Antes que esqueça, você está banhado com sangue e um feromônio que atrai esses bichos. Mas isso não será problema para um homem santo, não?
Dexter se vira e fecha a porta com um cadeado. Ele quebrou seu próprio ritual por uma boa causa. As crianças haviam sido devoradas e mereciam uma retratação à altura. 
Ele se afastou do lugar convicto de uma única coisa: não havia santidade naquele homem.
 

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