Para a Pati, de novo.
O ônibus ainda teria que atravessar uma cidade e meia inteira, mas já estava superlotado. A situação não parecia que mudaria tão logo... Para piorar, embora fosse fim de tarde, a temperatura, lá fora, beirava os 40 ºC. E isso foi bem antes da tragédia.
O ônibus ainda teria que atravessar uma cidade e meia inteira, mas já estava superlotado. A situação não parecia que mudaria tão logo... Para piorar, embora fosse fim de tarde, a temperatura, lá fora, beirava os 40 ºC. E isso foi bem antes da tragédia.
Leonardo estava sentado em uma das cadeiras, observando todo o enclausurador ambiente com sofreguidão. O calor demasiado afetava seus sentidos e a sua resistência, mas isso era apenas uma parte: a cefaleia lhe dava vertigens e o seu estômago estava--
"MOTORA! PARA ESSA PORRA, MOTORA!!", uma velha gritava, querendo descer. Não tinha sequer sinalizado sua vontade, mas se via no direito de culpar o motorista, o governo, os demais passageiros e o Diabo. Isso foi o bastante para discursos de diferentes naturezas começarem: alguns criticavam o sistema de transporte público e seus funcionários; outros, a partir daí, expandiam a coisa para o governo, a corrupção e afins; alguns, culpavam a idosa e, por fim, alguns apelavam para a fé.
O vozerio se agregava ao calor excessivo. Era como se, ao caminhar durante o dia pelo deserto, alguém lhe forçasse a usar um manto feito de brasas. Na verdade, essa era a visão quase delirante que Leonardo tinha, no momento... O barulho era demais. O calor era demais.
A dor era demais.
Nisso, a coisa toda não dava sinais de melhorar. No ponto seguinte ao da velha, o ônibus ficou cerca de dez minutos parado. Parado. O ônibus estava visivelmente lotado, mas uma, aparentemente, família de sete integrantes precisava adentrá-lo a qualquer custo. Como não conseguiam muito espaço, obviamente, o motorista não podia avançar. O cobrador só olhava. Aí, o que parecia ser o marido falou que a esposa estava grávida - numa mescla de súplica e intimidação -, ao que alguém respondeu, como uma voz afetada:
"Grávida o quê?! Ela só é GOOOOORRRRDA!". As gargalhadas foram gerais. E o homem ficou furioso. Numa tática pouco eficiente, queria que o engraçadinho se acusasse e dissesse aquilo na sua cara. Todos riam, ainda, mas ninguém assumiu a autoria da piada. Depois de tentar, por mais alguns minutos, arranjar um espaço para os seus, o tal homem desistiu e desceu de volta para a calçada.
Com isso, o vozerio aumentou. E muito.
Conscientemente, Leonardo sabia que, logo mais, estaria em casa e aquilo seria lembrado, em algum bar com os amigos, como uma história divertida de um dia estressante. Inconscientemente, ele sabia que isso nunca aconteceria. Sabia nas fibras de seu coração.
Momentos antes disso tudo acontecer - e muito antes do horror -, um forte cheiro tomou o coletivo inteiro. Quando do caso da velha, todos já tinham se acostumado, as janelas foram totalmente abertas e o assunto fora esquecido. Leonardo não esqueceu. Ao que tudo indicava, a sacola de compras de alguém arrebentou, dentro do ônibus, e um nauseante caldo percorria o chão de um lado para o outro... Peixes, provavelmente.
Antes disso, Leonardo estava se segurando. Acreditava que estava com algum problema de gases. Comera um simples pastel, antes, e sentia, agora, uma pontada fulminante em toda a área do estômago. Tinha esperanças que não fosse uma intoxicação alimentar - da última vez que sofrera uma, passou dias sem poder trabalhar e estudar. Mas o cheiro tornou a coisa muito mais lancinante; sentia o estômago, os intestino e algo mais, sabia lá, revolvendo. Tinha medo de vomitar - ou pior - dentro do ônibus. Não suportaria a vergonha. Pelo mesmo motivo, não tinha "liberado" os gases, anteriormente... Respeitava muito a si mesmo e ao espaço dos demais para isso.
Contudo, desgraças nunca são poucas.
A pessoa que carregava os peixes - ou o que fosse, nesta altura - estava sentada logo atrás do convalescente Leonardo. E pretendia descer. Quando se ergueu entre aquele maciço de gente, suas sacolas, primeiramente, acertaram a nuca do rapaz. Na sequência, o conteúdo daquela sacola terminou de cair... Na cabeça de Leonardo.
Todo aquele líquido revoltante. As carcaças.
E alguns, com isso, começaram a gargalhar, novamente.
Foi aí que algo despertou e abriu caminho pelas entranhas de Leonardo.
Só o motorista sobreviveu para dar depoimentos e entrevistas à horda de equipes de noticiários que surgiram após o caos que se seguiu e os informes policiais. Na verdade, ele não parecia dizer coisa com coisa, mas tragédias populares sempre vendem bem...
Considerando apenas um pouco de senso comum e o relato hipotético da sargento que, com seu colega, foi a primeira a chegar ao local, o motorista só conseguiu escapar porque a coisa, pelo jeito, começou perto do fundo do ônibus e, com a quantidade de pessoas ali dentro, foi relativamente lenta, apesar do estrago realizado... Quando percebeu o alvoroço e a fonte do mesmo, Afonso Gomes da Silva, motorista da Floresta Viações há dez anos, pelo menos, pulou do seu assento para rua e correu além do que, normalmente, um homem sedentário de cento e vinte quilos correria.
Alguns dias, depois, na investigação e inquérito policial, se descobriria que, antes de sair em disparada, ele fechou a porta dianteira do ônibus por fora. Assim, ninguém escaparia e... Ele ganharia tempo. Depois disso, ele acabou como o "monstro" da história.
Um engano tremendo, mesmo que compreensível.
Das oitenta e duas pessoas que estavam - muito mal acomodadas, por sinal - no veículo, não foi possível reunir os restos mortais de apenas duas. Uma, claro, era o motorista. Pelo registro da catraca, entretanto, havia, mais uma pessoa no meio daquele massacre... Um outro sobrevivente, talvez? O IML passou, ao todo, cento e trinta e três horas catalogando pedaços humanos e reunindo-os, da melhor forma possível, naquelas condições, para serem identificados e encaminhados aos parentes das vítimas.
Nos jornais, nos canais de TV e nas conversas informais por todo o território nacional, o assunto se resumia em duas perguntas cruciais e enigmáticas:
Quem é o responsável por tamanha carnificina?
Quem é a pessoa desaparecida?
Essas perguntas duraram por várias semanas, até o país - e o interesse das pessoas - seguir adiante para para o próximo escândalo na política, a polêmica foto de alguma celebridade ou o clima festivo de algum campeonato. Claro, alguns ainda se perguntavam. Principalmente, as famílias dos mortos. Raramente, inclusive, alguma pequena nota de jornal falava em alguma marcha em memória das vidas perdidas e que exigia explicações ou sobre algum indício...
Mas, no fundo, na verdade, ninguém se preocupava mais e a dúvida persistiu. Afinal, nenhum jornal, revista ou canal de TV mostrou, por motivos desconhecidos, a parte da entrevista onde o motorista - que, logo, se suicidara por "remorso ou culpa", alguns diriam - falava no "bicho grande, pelo brilhando e cheio de garra e dente. Ardia fogo nos olhos".
Todavia, em noites que a chuva caía como martelo em uma bigorna, uma pessoa atenta ouviria um bramido distante... Em céus remotos.
O vozerio se agregava ao calor excessivo. Era como se, ao caminhar durante o dia pelo deserto, alguém lhe forçasse a usar um manto feito de brasas. Na verdade, essa era a visão quase delirante que Leonardo tinha, no momento... O barulho era demais. O calor era demais.
A dor era demais.
Nisso, a coisa toda não dava sinais de melhorar. No ponto seguinte ao da velha, o ônibus ficou cerca de dez minutos parado. Parado. O ônibus estava visivelmente lotado, mas uma, aparentemente, família de sete integrantes precisava adentrá-lo a qualquer custo. Como não conseguiam muito espaço, obviamente, o motorista não podia avançar. O cobrador só olhava. Aí, o que parecia ser o marido falou que a esposa estava grávida - numa mescla de súplica e intimidação -, ao que alguém respondeu, como uma voz afetada:
"Grávida o quê?! Ela só é GOOOOORRRRDA!". As gargalhadas foram gerais. E o homem ficou furioso. Numa tática pouco eficiente, queria que o engraçadinho se acusasse e dissesse aquilo na sua cara. Todos riam, ainda, mas ninguém assumiu a autoria da piada. Depois de tentar, por mais alguns minutos, arranjar um espaço para os seus, o tal homem desistiu e desceu de volta para a calçada.
Com isso, o vozerio aumentou. E muito.
Conscientemente, Leonardo sabia que, logo mais, estaria em casa e aquilo seria lembrado, em algum bar com os amigos, como uma história divertida de um dia estressante. Inconscientemente, ele sabia que isso nunca aconteceria. Sabia nas fibras de seu coração.
Momentos antes disso tudo acontecer - e muito antes do horror -, um forte cheiro tomou o coletivo inteiro. Quando do caso da velha, todos já tinham se acostumado, as janelas foram totalmente abertas e o assunto fora esquecido. Leonardo não esqueceu. Ao que tudo indicava, a sacola de compras de alguém arrebentou, dentro do ônibus, e um nauseante caldo percorria o chão de um lado para o outro... Peixes, provavelmente.
Antes disso, Leonardo estava se segurando. Acreditava que estava com algum problema de gases. Comera um simples pastel, antes, e sentia, agora, uma pontada fulminante em toda a área do estômago. Tinha esperanças que não fosse uma intoxicação alimentar - da última vez que sofrera uma, passou dias sem poder trabalhar e estudar. Mas o cheiro tornou a coisa muito mais lancinante; sentia o estômago, os intestino e algo mais, sabia lá, revolvendo. Tinha medo de vomitar - ou pior - dentro do ônibus. Não suportaria a vergonha. Pelo mesmo motivo, não tinha "liberado" os gases, anteriormente... Respeitava muito a si mesmo e ao espaço dos demais para isso.
Contudo, desgraças nunca são poucas.
A pessoa que carregava os peixes - ou o que fosse, nesta altura - estava sentada logo atrás do convalescente Leonardo. E pretendia descer. Quando se ergueu entre aquele maciço de gente, suas sacolas, primeiramente, acertaram a nuca do rapaz. Na sequência, o conteúdo daquela sacola terminou de cair... Na cabeça de Leonardo.
Todo aquele líquido revoltante. As carcaças.
E alguns, com isso, começaram a gargalhar, novamente.
Foi aí que algo despertou e abriu caminho pelas entranhas de Leonardo.
***
Considerando apenas um pouco de senso comum e o relato hipotético da sargento que, com seu colega, foi a primeira a chegar ao local, o motorista só conseguiu escapar porque a coisa, pelo jeito, começou perto do fundo do ônibus e, com a quantidade de pessoas ali dentro, foi relativamente lenta, apesar do estrago realizado... Quando percebeu o alvoroço e a fonte do mesmo, Afonso Gomes da Silva, motorista da Floresta Viações há dez anos, pelo menos, pulou do seu assento para rua e correu além do que, normalmente, um homem sedentário de cento e vinte quilos correria.
Alguns dias, depois, na investigação e inquérito policial, se descobriria que, antes de sair em disparada, ele fechou a porta dianteira do ônibus por fora. Assim, ninguém escaparia e... Ele ganharia tempo. Depois disso, ele acabou como o "monstro" da história.
Um engano tremendo, mesmo que compreensível.
Das oitenta e duas pessoas que estavam - muito mal acomodadas, por sinal - no veículo, não foi possível reunir os restos mortais de apenas duas. Uma, claro, era o motorista. Pelo registro da catraca, entretanto, havia, mais uma pessoa no meio daquele massacre... Um outro sobrevivente, talvez? O IML passou, ao todo, cento e trinta e três horas catalogando pedaços humanos e reunindo-os, da melhor forma possível, naquelas condições, para serem identificados e encaminhados aos parentes das vítimas.
Nos jornais, nos canais de TV e nas conversas informais por todo o território nacional, o assunto se resumia em duas perguntas cruciais e enigmáticas:
Quem é o responsável por tamanha carnificina?
Quem é a pessoa desaparecida?
Essas perguntas duraram por várias semanas, até o país - e o interesse das pessoas - seguir adiante para para o próximo escândalo na política, a polêmica foto de alguma celebridade ou o clima festivo de algum campeonato. Claro, alguns ainda se perguntavam. Principalmente, as famílias dos mortos. Raramente, inclusive, alguma pequena nota de jornal falava em alguma marcha em memória das vidas perdidas e que exigia explicações ou sobre algum indício...
Mas, no fundo, na verdade, ninguém se preocupava mais e a dúvida persistiu. Afinal, nenhum jornal, revista ou canal de TV mostrou, por motivos desconhecidos, a parte da entrevista onde o motorista - que, logo, se suicidara por "remorso ou culpa", alguns diriam - falava no "bicho grande, pelo brilhando e cheio de garra e dente. Ardia fogo nos olhos".
Todavia, em noites que a chuva caía como martelo em uma bigorna, uma pessoa atenta ouviria um bramido distante... Em céus remotos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário