– Ah! Não! Mãe!
– Vamos Carlos, deixa de frescura. Você sabe que não enxerga bem! Precisa usar óculos e usará! - Ele era um menino manhoso, irritado e terrivelmente disperso nas aulas, foram estes os sintomas que levaram a professora e a mãe entrar num consenso de que alguma coisa estava errada com o garoto: Ele não enxergava bem. – Agora vai se arrumar que eu vou te levar até a ótica fica a umas dez quadras da escola, você pode ir à pé que eu já estou atrasada.
– Mãe... Eu não quero usar óculos.
– Moleque, vai se arrumar agora. Senão... – O olhar da mãe disse tudo ao garoto de 12 anos, mesmo sendo bagunceiro sabia que encarar a mãe naquele humor era ameaçar a morte. Ele botou a camiseta cinza com o logotipo de estado de Minas Gerais no peito, uma calça azul tristeza e penteou o cabelo com as mãos. Escovou os dentes apenas por quê a mãe lembrou e entrou no Uno quadrado.
O menino se assustou com o lugar em que a mãe o levara. Era um bairro escuro e mofado, com cheiro de naftalina e sangue. Talvez do açougue na esquina, talvez de algo oculto em uma das casas pichadas com um simbolo estranho e quase antiquado. Apenas de olhar a estrela, os chifres e tridentes adornados com um círculo seu coração já disparou e o sangue correu mais rápido, esquentando e colorindo as bochechas imaturas e gordas.
– Toma filho, é só levar esse papel na loja que eles vão te entregar o óculos. – Ele tomou o papel na mão, abriu a porta e saiu. – Não vai dar um beijo na mãe? – Seu rosto já corado ficou ainda mais vermelho, agora por motivos diferentes. Deu a volta no carro e beijou sua mãe pela ultima vez pela janela do motorista.
Acenou e viu o carro desaparecer no congestionamento. Entrou na pequena loja onde um senhor apessoado, mas medonho o atendeu. – Ah! Sua mãe me ligou mais cedo. Só um momento que já te trago o óculos – Foram cinco eternidades de espera e então aquele objeto estranho com duas lentes e armação de um metal frio apareceu. – Des
culpa a demora – disse abrindo um sorriso – Aqui está!
Quando o óculos ornou a face de Carlos o mundo mudou de definição. Ele enfim conseguiu diferenciar vogais, consoantes e letras que sempre se embaralharam. O mundo ficou mais nítido e ele pode enxergar coisas que nunca havia visto antes.
Ele olhou no espelho e pensou "Nem estou tão feio assim" e começou a aceitar o objeto que lhe dava a chance de enxergar o mundo. Concentrado no espelho, ele deliciava-se em observar todos os detalhes que nunca vira antes. Incluindo uma sobra que correu-lhe pelas costas. Um sopro gelado suspirou em sua nuca eriçando todos os pelos e parte dos cabelos curtos que tinha.
Olhou para trás, mirando a vista naquele simbolo que encheu seus olhos de assombração. Nele havia um buraco que se fechou deixando uma fumaça clara fugir do centro. O garoto engoliu a seco e virou-se para perguntar ao homem que lhe atendera se ele vira o que ocorreu.
– Algum problema, garoto? – Era um senhor de uns sessenta ou setenta anos, não aquele jovem educado que há pouco conversara – Garoto? O gato comeu tua língua? Precisa de mais alguma coisa?
–Eh... Não... Está tudo... É só que... – Confuso apontou o dedo para o simbolo já inexistente – É... Deixa, tá tudo bem. – Não estava, ele sabia disso.
Saiu correndo pela rua e notou que de todos os lugares sombras surgiam, dançando pelas paredes, brincando pelas ruas e serpenteando no céu. Correu, tentando fugir do caos e multidão de sombras. Tudo se misturava na loucura da fumaça dos carros e caminhões, nas pinturas negras que o mofo desenhava nas paredes. Tudo se descolava e girava, rodopiava em sua mente através de monstros e figuras horrendas formadas de uma pele negra, escura e sem nenhuma reflexão.
As sombras saiam e entravam das pichações deixando mais fumaça no ar, o cheiro era similar ao de naftalina ou daqueles venenos baratos, deixando o garoto um pouco enjoado e com a cabeça girando. As sombras se juntavam tornando-se uma só, e o pobre garoto não tinha opções senão gritar e correr.
Foi o que fez. Saiu como maluco pelas ruas, gritando por socorro e correndo daquele monstro negro, de sete cabeças de onde brotavam seis chifres, como o de um carneiro, e um central afiado e longo. Os dentes também feitos de sombras eram afiados e se projetavam sempre que o monstro urrava. De seu ventre sombras brotavam e eram engolidas e se misturavam com os pés ou patas que iam e vinham como ondas de um mar. Mas no lugar de matéria sombra, apenas sombra.
O garoto correu quatro quarteirões, gritando e olhando para trás. Tudo o que ele podia ver era a besta se aproximando e enfim no meio de um cruzamento sentiu seu corpo consumido pela sombra. Tudo se tornou escuridão. Não há mais sol ou luz, não há mais os faróis de carros. Seus olhos se fecharam completamente e ele deixou de enxergar.
Em seu corpo ele sentiu um vento quente, infernal. Consumia sua pele, deixando-a em bolhas ferventes que explodiam em pus e água que evaporava de seu corpo. Já a carne congelava e endurecia, sentia seus nervos e músculos tornando pedra. Quando já estava escalpelado e duro, sentiu um furação subir seu corpo e então um pó fino começou a lapidar seu corpo, como um jato de areia cortando um vidro. Sentiu o nariz e as orelhas se desintegrando, sua face foi completamente deformada e o processo de erosão se expandiu arrancando-lhe os braços e pernas. Por vezes sentia seu próprio dedo, levado pelo vento intenso, se chocando contra seu corpo e explodindo em milhares de pequenas pedras.
E então, quando sentiu-se apenas como pó, uma pichação se abriu e de dentro dela sentiu um poço de lava e um puxão que sugou todo o pó. E do pó consumido pela lava, subiu apenas um pó branco, como água sendo fervida.
Já para os que estavam na rua a única cena presenciada foi a de um menino desatento correndo e parando no meio da rua. Um carro acertou-o em cheio, jogando-no no centro da rua. O empurrão do carro não seria suficiente para matá-lo mas um motoqueiro apressado encarregou
-se do golpe final, acertando a roda dianteira na cabeça do pobre rapaz, que explodiu espalhando o seu cérebro por toda a rua. O menino ficou completamente desfigurado, mas o óculos em seu rosto permaneceu...
Dedico este post ao Ednelson. Sem ele este texto não existiria.
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