Hey you, out there in the cold, getting lonely, getting old, can you feel me?[1]
Amanda chorava, deitada em sua cama forrada com um lençol branco, maculado por algumas manchas de sangue já coagulado. Suas testemunhas eram pôsteres de cantoras pops, retratos de galãs do cinema e algumas bonecas e bichinhos de pelúcia dispostos em uma prateleira na parede, acima do leito. Depois de ser abusada novamente pelo padrasto, cobria o corpo impúbere com um baby-doll rosa. O que ocultava parcialmente as marcas de mordidas e socos em sua pele morena.
O ódio criava raízes ainda mais profundas em seu coração. Em meio ao pranto copioso, clamava por um anjo que lhe retirasse desse sofrimento. Afastando-a do monstro que lhe violava e da mãe – vítima de violência doméstica – que se mantinha indiferente ao seu sofrimento, alimentando o amor doentio por um homem hediondo.
Entre soluços, ouviu algo bater levemente na janela de seu quarto que dava para o quintal da residência – imediatamente, direcionou o olhar – percebeu dois pontos amarelos, como faróis de um carro, lhe observando. Não sentiu medo, pois eles transmitiam um tormento que encontrava respaldo no seu próprio. Perguntou-se:
—Será que ela pode me sentir?
Depois, sem hesitar, disse:
—Entre, a noite está fria – sua voz era monótona.
Hey you, standing in the aisle with itchy feet and fading smile, can you feel me?[2]
A figura abriu a janela e adentrou o cômodo furtivamente, tal como uma serpente que se aproxima de um homem incauto. Seus cabelos longos e sedosos eram vermelhos como carvão em brasa, a mesma cor que os de Amanda, porém um tom mais escuro. Ela usava um vestido preto com vários lírios brancos bordados.
Seus passos foram lentos, até ficar de frente para Amanda que constatou que ambas possuíam a mesma altura e tom de pele, até mesmo os lábios tinham igual formato, finos e pequenos. Entretanto, a face da visitante noturna era enrugada, característica que contrastava com a beleza do resto de seu corpo. Se não fosse pelo detalhe mencionado anteriormente, poderiam ser consideradas gêmeas.
Por alguns minutos, as duas perderam-se em contemplação, mutuamente analisando-se. Quando um trovão ressoou, sendo o arauto de uma tempestade, a visitante sorriu debilmente, parecia que ela não usava os músculos faciais para a ação simples há muito tempo.
Hey you, don't help them to bury the light, don't give in, without a fight.[3]
Amanda, timidamente estendeu os braços na direção de sua nova amiga. O gesto carregava um pouco de temor, considerando que as últimas pessoas a tocá-la lhe marcaram de um modo nem um pouco carinhoso, incutindo-lhe o receio de estabelecer vínculos físicos. Entrelaçou os dedos e experimentou um sentimento reconfortante, algo desconhecido desde os oito anos. Aquela ligação a envolvia em uma redoma instransponível para os demônios que a assombravam.
—Não se entregue, não deixe que eles roubem a sua luz – a visitante sussurrou – Eu vou lhe ajudar.
Abraçaram-se, selando o trato.
Hey you, out there on your own, sitting naked by the phone, would you touch me?[4]
Elas não verbalizavam as palavras, a comunicação era intuitiva, quase uma telepatia.
—Eu tenho medo, me senti sozinha por tanto tempo que não me lembro de como é ter verdadeiramente companhia. O que você quer comigo? Como desnuda os meus sentimentos tão facilmente? Por acaso é uma alucinação de minha mente? – Amanda respirava vagarosamente.
—Eu lhe sinto há muito tempo, nossos corações funcionam no mesmo ritmo, sinta – a garota pegou a mão esquerda de Amanda e colocou sobre o peito dela e a outra sobre si mesma – Dizem que quando duas pessoas se amam tanto, seus batimentos entram em sincronia.
Tum...tum...tum – a harmonia era perfeita.
Hey you, with your ear against the wall, waiting for someone to call out, would you touch me?[5]
—Você me chamou, correto? Você conseguiu romper o muro que lhe separava de uma camada bela deste mundo. Do mesmo jeito que lhe toco agora, você conseguiu me tocar do outro lado. Cada lágrima sua, era como uma lança se cravando em mim. A dor... – a convidada inspirou uma grande quantidade de ar e continuou: – era excruciante, mas não se importe. Agora estou aqui e tudo será resolvido.
—Mesmo? – Amanda fez um muxoxo.
—Sim – então as duas saíram do quarto e foram até a cozinha da residência, caminhando descalças.
—Antes de irmos para o outro lado, precisamos comprar a nossa passagem, será fácil, apenas fique ao meu lado.
Hey you, would you help me to carry the stone? Open your heart, I'm coming home.[6]
A cozinha era pequena, tinha apenas uma geladeira creme com ferrugem nas laterais, um fogão branco novo, presente de uma vizinha caridosa e um armário de madeira com o princípio de uma infestação de cupins, além da pia, onde pratos estavam acumulados com restos de comida. Um banquete para as moscas.
Amanda abriu uma das gavetas do armário e remexeu-a até encontrar uma peixeira de aço inox, pegou-a. Mesmo o material sendo muito leve, parecia pesar demais, sua mão não suportava. Percebendo isto, a visitante segurou a mão de Amanda e disse:
—Abra seu coração mais um pouco, esse peso será dividido entre nós duas...
As palavras arrepiaram os cabelos da nuca de Amanda.
—Vamos, em minha casa os preparativos para a sua chegada estão sendo concluídos e meu povo costuma valorizar a pontualidade...
But it was only fantasy, the wall was too high, as you can see. No matter how he tried, he could not break free and the worms ate into his brain.[7]
As garotas chegaram até a frente do quarto em que o padrasto e a mãe de Amanda dormiam profundamente, roncando.
Quando o olhar da visitante mirou a soleira do aposento, a porta se abriu. A luz de um abajur, perto da cabeceira da cama, rasgava as trevas. Deixando explícita a nudez dos corpos obesos rendidos à Morpheu.
Amanda estava cabisbaixa, quando a visitante tomou a faca de sua mão e andou até perto do casal inconsciente, depois de uma bebedeira. O martelo da justiça bateria, mas na forma de uma lâmina.
Amanda entrou no ninho das bestas tropegamente, chorando por causa de um leve desconforto na cabeça.
—Não chore, isso passará daqui a pouco, eis o seu remédio – o cabo da faca foi ofertado.
Hey you, out there on the road, always doing what you're told, can you help me?[8]
Amanda olhou para o pênis flácido de seu padrasto e teve náuseas ao sentir o ranço que vinha dali. Cada vez que ele a penetrava, era horrendo. A sua lascívia era a de um animal selvagem, incontrolável. Quando ele a lambia, a saliva lhe causava um asco, visto que era mais grudenta que o normal. A coisa piorava quando era forçada a fazer sexo oral. Já tentou mordê-lo, mas desistiu de tentar uma vingança depois dos primeiros socos e chutes.
—Controle-se, não deixe que ele a domine, você está a um passo da liberdade, ouse prosseguir. Expulse os vermes que devoram o seu cérebro! – a luz que era amarela, passou para vermelha.
Hey you, out there beyond the wall, breaking bottles in the hall, can you help me?[9]
Amanda sorriu com os olhos arregalados, a adrenalina lhe deixou alucinada. Cada vez mais rápida, a faca mergulhava nas gargantas – primeiro do padrasto, depois da mãe.
Todavia, somente aquilo não era a justiça cobiçada. Em seguida, abriu as barrigas e retirou as tripas, pulmões, corações, fígados, rins. De vez em quando engolindo um naco das variadas carnes.
—Gostoso? – indagou a visitante.
—O melhor doce que já provei! – pensou Amanda.
Ela comeu até estar farta.
Hey you, don't tell me there's no hope at all, together we stand, divided we fall.[10]
Com o desvario apascentado, falou, pela primeira vez na noite:
—Quem é você? – seus lábios pintados de vermelho transbordavam uma sensualidade macabra.
—Sou o teu negativo, o outro lado do espelho – sorriu ternamente – Vamos para o meu mundo, lá as coisas serão diferentes – com os braços cruzados, atravessaram um espelho que havia em uma penteadeira no cômodo.
Viveram felizes para sempre no Mundo Negativo, a uma distância inalcançável para o mal.
[1] Ei você, aí fora no frio, ficando solitário, ficando velho, você pode me sentir?
[2] Ei você, de pé no corredor com pés sarnentos e sorriso fraco, você pode me sentir?
[3] Ei você, não os ajude a enterrar a luz, não se entregue sem lutar.
[4] Ei você, aí fora sozinho, sentado nu ao telefone, você poderia me tocar?
[5] Ei você, com o ouvido contra o muro, esperando alguém gritar, você poderia me tocar?
[6] Ei você, você me ajudaria a carregar a pedra? Abra seu coração, estou indo para casa.
[7] Mas isso era apenas fantasia, o muro era muito alto, como você pode ver. Não importava o quanto ele tentasse, ele não conseguia se libertar e os vermes comeram seu cérebro.
[8] Ei você, aí fora na estrada, sempre fazendo o que te mandam, você pode me ajudar?
[9] Ei você, aí fora além do muro, quebrando garrafas no corredor, você pode me ajudar?
[10] Ei você, não me diga que não há mais nenhuma esperança, juntos nós resistimos, separados nós caímos.
É o que sempre digo, o nosso outro lado um dia vai se mostrar, depende apenas do momento certo. Ninguém é 100% do bem e nem 100% do mal, temos 50% de cada um e um certo controle sobre eles. Excelente conto, Ednelson. Parabéns!
ResponderExcluirAbraços,
Ana Luisa
Ana, somos aquilo que escolhemos, não acredito nessa clareza entre o bem e o mal. O que há são ações com objetivo de criar, conservar ou destruir. Se você apenas busca destruir, principalmente outras pessoas, então adotou ideais perniciosos (maus). Obrigado por comentar.
ExcluirAbraços.
Boa, não uma interpretação da musica, mas sim uma reimaginação. Uma nova forma de romper o muro. Muito bom, Ednelson!
ResponderExcluirSim, Rainier. A minha intenção era dar um novo sentido (macabro) para a letra tão boa do Pink Floyd, ainda bem que consegui...mesmo que sem tanta habilidade xD
ExcluirBoa, não uma interpretação da musica, mas sim uma reimaginação. Uma nova forma de romper o muro. Muito bom, Ednelson!
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