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domingo, 14 de abril de 2013

Quebrado


Conto inspirado na música "Hurt" do Nine Inch Nails...


♫ I hurt myself today to see if I still feel. I focus on the pain, the only thing that's real...The needle tears a hole, the old familiar sting. Try to kill it all away, but I remember everything [1] ♫ 

Penso várias vezes antes de começar a escrever, não tenho muita segurança de que é isto mesmo que desejo, mas assim que percebo uma centelha de sentimento se formar, começo a alimentá-la sem pestanejar, quero incendiar-me. 

Sentir, como definir tal experiência? Seria apenas um conjunto de fenômenos químicos operados pelo meu cérebro e meu espírito que se debatem em uma agonizante busca por propósito? Aliás, será a cisão entre prazer e dor tão clara assim? O que os dois lados podem me ensinar? Confesso que a dor me instrui mais sobre mim mesmo do que o prazer de sorriso tão enganador que entorpece a minha percepção e transforma-me em um mendigo sedento por mais um pedaço de coração. Admire os meus olhos chorosos, consegue dizer-me não? Entretanto, afasta-te cálice, antes que eu prove de teu vinho! 

Cavando em muitos corpos, tentei encontrar as engrenagens deste mecanismo tão complexo a que chamamos vida. Fiquei viciado nesta droga, todavia nunca consegui ser um espelho da intensidade pulsante com que me encontrei várias vezes em diversos formatos. Cada um foi precioso, contudo nenhum foi mais especial ao ponto de atingir o meu cerne, colocando-o em movimento.


♫ What have I become? My sweetest friend...Everyone I know goes away in the end.[2] ♫ 

Qual a forma que assumi nesta busca desenfreada, durante a qual cheguei perigosamente perto de meu próprio fim? Do ápice ao mais profundo, somente neve me recobre, nunca senti o ardor do sol em minha pele de inúmeras cicatrizes. 

A velocidade de nossa civilização me deixa aturdido, então prefiro a companhia de corpos frios, ouvintes pacientes, tolerantes, fiéis. Eles sabem guardar segredos, mas depois de um tempo eles também vão embora de minhas mãos, não conseguem mais alimentar o meu apetite, tenho sempre necessidade de mais, logo caço. 

Pelo visto, não sou tão diferente do monstro canibal a quem abomino – sociedade. Apenas sou mais honesto, retirando o meu véu como uma noiva no instante do beijo diante do altar, mas as minhas carícias são incisivas – invasivas seria uma palavra melhor – Porém, sou dedicado a cada toque, não sou como estes jovens imersos em um caldeirão de hormônios. Gosto de saborear o deleite como um enófilo.


♫ You could have it all, my empire of dirt. I will let you down. I will make you hurt.[3] ♫ 

“Qual o legado deixado por ele?” Indubitavelmente alguns corvos midiáticos irão indagar. Deixo-lhes registrado que a herança que gentilmente entrego somente aos corajosos é cabível, visto que ela é a liberação das sombras encravadas nos cantos mais ermos da mente humana. Pranto e ranger de dentes, causei e ainda causarei, uma vez que tenho a certeza de que muitos reviverão as minhas pegadas. 

Posso me diluir na realidade, rumo a dimensões além daquela mais ordinária. No entanto ao espalhar-me, descaracterizando-me, atingindo o status de uma face borrada que inspira o medo, ainda terei o domínio sobre muitos. Não sou mais Eu, sou um arauto d’O mal, imortal, atemporal...por que não infernal? Reverenciem-me, fiquem de joelhos e iniciem o coro: Piedade, piedade! Eu quero viver!


♫ I wear this crown of shit, upon my liar's chair, full of broken thoughts I cannot repair. Beneath the stains of time, the feelings disappear. You are someone else, I am still right here.[4] ♫

Eu conquistei o meu posto neste mundo, fui classificado como uma espécie de rei venenoso, extremamente nocivo aos “bons costumes”, um atentado ambulante à vida e violento como uma tempestade que a tudo arrasta com indiferença. Com um sorriso sarcástico e olhar alucinado ao contemplar a lua por uma janela, penso em como os mesmos que atiram flechas em mim são os que encarnam o papel de Caim pela omissão – curioso, não? 

Entenda-me, como qualquer homo sapiens – agora vejo que não passamos de animais com uma porção mínima de consciência ou vai me replicar dizendo que somos evoluídos, apesar de exemplos como Hiroshima e Nagasaki – quero apenas encontrar o meu lugar nesse quebra-cabeça. Você treme ao pensar em mim, me chama de louco, pensa em modos requintados para me matar, afinal segundo você eu mereço toda a dor que for possível infligir a um homem. O teu sadismo velado não passa despercebido ao meu faro, reconheço um de minha tribo. Largue a tua dissimulação, ator de quinta categoria, deixe a arte do homicídio para quem sabe lidar com as suas sutilezas! Alguns de vocês dizem amar o “terror”, mas sabem mesmo o que é O Terror?! Vocês são crianças amedrontadas, congeladas ao verem a sombra do monstro, imaginem quando contemplarem O Monstro. 

No fundo, apenas há algo irreversivelmente quebrado dentro de mim, justamente aquele dispositivo que nos impede de matar uns aos outros, aquele senso de dualidade – certo e errado – que nos freia quando queremos matar por estrangulamento a velhinha que demora com as suas compras no supermercado ou enfiar a caneta no pescoço daquele tagarela que nos aborrece quando necessitamos de concentração. Portanto, como me tachar de culpado? Eu não possuo uma natureza tão livre quanto a de vocês! Compreendam! Assim nasci e assim morrerei, culpem o vosso deus pelos meus atos hediondos! Pelas grávidas, idosos e bebês mortos! Ele permitiu que eu existisse!


♫ What have I become? My sweetest friend....Everyone I know goes away in the end. You could have it all, my empire of dirt. I will let you down, I will make you hurt. If i could start again, a million miles away, I would keep myself, I would find a way...[5] ♫

Então, doce amigo, desbravador de cadáveres a que chamam legista, o que acha de minha arte? O sangue obviamente está coagulado, o que encobriu parte dela, mas você já deve ter passado um jato d’água para revê-la, você é um tremendo curioso. Tem minha permissão para copiar e publicar o texto em um desses blogs voltados ao macabro. Quero que outras pessoas me leiam. 

Em um mundo um pouco diferente, talvez a minha aptidão fosse direcionada para algo menos letal. Poeta, pintor, escultor...escritor...sim, isto! Escritor, eis uma profissão que poderia adotar, mas é lamentável que meu primeiro texto com mais de uma página, creio que dê cerca de três depois de digitado, seja algo póstumo. Será que emocionarei alguém? Ó, mundo que me pariu, por que me abandona somente agora? Por que não me abortou antes mesmo que as minhas trevas conhecessem a luz? Começo a esfriar. 

O que é isto escorrendo pela minha face e tocando meus lábios? O gosto é salgado. Lágrimas? Sim, é isto! Como é bom o calor que está me consumindo, estou em chamas! Isto é melhor do que esfaquear, estrangular, queimar, cortar, espancar, envenenar e todos os verbos da senhora morte. Estou tão feliz que abro um sorriso de orelha à orelha com o bisturi. Estou com as pupilas dilatadas pelo prazer. Encosto a minha cabeça na banheira sem água e olho o piso do banheiro com uma enorme poça rubra ao meu redor. Quase não vejo mais espaço em meu corpo para escrever, mas consegui dizer tudo o que queria, ponho o bisturi ao meu lado... 

Desculpe-me, uma última observação: Não levei o meu cão para passear, por favor, peço a quem me encontrar que se encarregue dessa tarefa e o adote, se for possível. Dois pontos finais, são os meus olhos.

Três dias depois, vizinhos desconfiaram da falta de movimentação na residência, arrombaram a entrada e encontraram o cadáver. No porão da casa foram descobertos vários esqueletos. A perícia apontou que eram pessoas desaparecidas nos últimos dez anos na cidade de Maceió.



[1] Eu machuquei a mim mesmo hoje para ver se eu ainda sinto. Eu me concentro na dor, é a única coisa real...A agulha abre um buraco, a velha picada familiar. Tento matá-la de todos os jeitos, mas eu me lembro de tudo. 
[2] O que eu me tornei? Meu doce amigo...Todos que eu conheço vão embora no final. 
[3] Você poderia ter tudo isso, meu império de sujeira. Eu vou deixar você pra baixo, eu vou fazer você sofrer. 
[4] Eu uso essa coroa de merda, sentado no meu trono de mentiras, cheio de pensamentos quebrados que não posso consertar. Debaixo das manchas do tempo, os sentimentos desaparecem. Você é outro alguém, eu ainda estou bem aqui. 
[5] O que eu me tornei? Meu doce amigo...Todos que eu conheço vão embora no final. Você poderia ter tudo isso, meu império de sujeira. Eu vou deixar você pra baixo, eu vou fazer você sofrer. Se eu pudesse começar de novo, a milhões de milhas daqui, eu me guardaria, eu acharia um caminho...

Um comentário:

  1. Triste desabafo... Realmente acredito que existe ser humano pior que qualquer monstro que possamos imaginar, porém, quando "cai a ficha", a realidade pode se tornar insuportável.
    Triste terror...
    Parabéns, Ednelson.
    Abraços,
    Ana Luisa

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