Por: Andre Cordenonsi*
O
choro invadiu a madrugada, alto, histriônico, arrancando o parco descanso do
pai que correu até o quarto do filho, em uma cena que se repetira nos últimos
meses. Ali, agarrou o bebê de sete meses, embalando-o com uma canção de ninar
tão fraca e desconexa quanto os seus pensamentos. O cérebro embotado não se
lembrava da letra, tampouco a melodia e foi muito mais pelo aconchego que o
bebê voltou a adormecer, embalado nos braços mirrados do pai.
Ao longe, no quintal do vizinho, um
galo cantava novamente, fazendo com que o bebê fechasse os olhos com força e
arrancando um suspiro irritado do pai.
“Maldito galo!” – pensou com toda a
força do seu pensamento, a mente subitamente desperta pelo animal desgraçado
que estivera acordando o seu filho, todas as noites, nos últimos meses.
Por um momento, ele não se segurou e
a sua mente irrompeu em pensamentos numa enxurrada que desencadearam as
lágrimas quentes nas suas faces ressequidas. A preparação pela chegada do
filho, a aquisição da casa nova, longe do centro, em um subúrbio afastado, a
decoração do quarto. Tudo aquilo desaparecera como uma cortina de fumaça numa
noite distante.
A mulher acordara aos berros, banhada em sangue; a
bolsa irrompera, mas havia algo errado. A casa, afastada do barulho do centro
da cidade, de repente se tornara uma armadilha. Nunca as estradinhas
empoeiradas se pareceram tão longas quando aquela noite, com os gritos da amada
a lhe corroerem as entranhas enquanto o carro voava pelos pedregulhos até a
avenida principal que os levou ao hospital.
Tinha sido em vão. Ela se fora momentos antes do marido
irromper pela recepção.
Restara-lhe o filho, salvo a duras penas pelos
médicos. Os primeiros dias foram como um borrão; tinha parcas lembranças daquele
tempo que passou como uma procissão de faces com olhos borrados, apertos de mão
frios e palavras sem sentido. Quando se deu por conta, estava de volta a casa,
com uma velha ama dormindo no escritório; uma senhora já de idade, severa e de
modos eficientes, recomendada pela irmã da sua esposa. Ele não tinha certeza se
ela estava ali para tomar conta dele ou do seu filho, mas sua mente aceitou a
situação da mesma forma como aceitara todo o resto. Resignado. Indiferente.
As semanas passaram, uma a uma. Ele voltou a
trabalhar e o simples fato de sair de casa desembaralhou o seu cérebro. Ainda
se pegava chorando na cama, mas se acostumara rapidamente com o filho. Agora,
passava horas brincando com o bebê, que parecia feliz com ele, mas que chorava
desesperadamente ao ser deixado com a ama. Aquilo o deixou consternado. Depois,
preocupado. O que acontecia enquanto ele estava fora? Porque a ama encarava o
bebê não com os olhos de alguém que se importava, mas de quem tinha medo?
Este sentimento o atormentou por semanas. Aconselhou-se
com os amigos. O que poderia fazer? Mude seus horários, sugeriram.
Ele gostou da ideia. Uma tocaia. Uma chegada
inesperada.
No outro dia, logo após o relógio marcar às quinze
horas, ele retornou para a casa. Ele girou a chave na fechadura com cuidado e
abriu a porta. A cena em sua sala escurecida pelas cortinas cerradas até hoje ainda
lhe perturbava a mente.
A ama havia retirado o casaco cinza e a saia reta e
trajava somente um camisolão vermelho sobre o corpo branco. No chão límpido,
uma estrela de cinco pontas havia sido traçada com as cinzas da lareira. Em
cada uma das pontas do pentagrama, uma vela colorida irradiava o seu brilho fugidio.
No centro, o bebê, nu, chorava descontroladamente enquanto a ama gritava e
dançava como que possuída por uma entidade demoníaca.
O pai gritou e seu urro foi mais forte do que a dor
que lhe partira o coração meses atrás. Pega de surpresa, a ama deu um passo
para trás, cambaleante. Ele foi até a frente, derrubando as velas e
esparramando o pó cinza com os passos apressados. Em segundos, o bebê estava em
seus braços, soluçando com seus grandes olhos azuis fechados. O pai o abraçou
com força, sentindo cada nervo do seu ser clamar por vingança, o ódio
escorrendo pelos poros como suor em um dia escaldante.
Quando ele se virou para a ama, ela já recolhera sua
bolsa e suas roupas. Ele tentou dizer algo para ela, mas as palavras haviam se
trancado em sua garganta. Não havia o que falar para um ser tão abominável.
- Roanoke! – sussurrou ela a uma distância segura –
Roanoke não irá embora por vontade própria!
O pai tentou avançar contra aquele ser demente, mas
antes que pudesse se dar por conta, a ama saiu porta fora, correndo pelo jardim
e desaparecendo nos terrenos baldios que cercavam a propriedade. A polícia foi
chamada, a casa da senhora foi revistada, mas nada foi encontrado. Ela
desapareceu, abandonando para sempre o pai horrorizado e o seu bebê.
Fora difícil se recuperar deste segundo baque.
Depois pelo que passara, prometeu não deixar mais o filho sozinho com quem quer
que fosse. Após uma longa negociação, conseguiu um acordo para trabalhar em
casa, com uma considerável redução em seus vencimentos. Aquilo não lhe
importava; tudo o que ele queria era ficar de olho no filho. Ele contratou
outra babá, uma garota jovem e meio histérica, que ria sem parar das macaquices
do garoto. Mesmo assim, ele não tirava os olhos dela e do filho..
À noite, porém, o garoto passou a ter pesadelos.
Histérico, o garoto acordava gritando alto e soluçando como se alguém o
açoitasse. Por algum tempo o pai achou que aquilo era um reflexo da maldita
experiência que o bebê tivera com a ama, mas, depois de alguns dias, ele
percebeu que o cacarejo de um galo das vizinhanças precedia o choro do filho.
Todas as noites, exatamente às quatro da manhã, o bicho gritava para os seus,
arrancando o bebê dos braços do sono e irrompendo a madrugada com a força dos
seus pulmões.
Os dias se transformaram em semanas e as semanas, em meses. Ele tentara
falar com o vizinho, mas o granjeiro pouco podia fazer. Afinal, precisava do
galo para a produção dos ovos. Ele vai se acostumar, dissera com um sorriso
tímido. O garotinho só precisa de um tempo.
Mas a situação piorava a cada dia. O galo passou a
cantar duas, três vezes por noite. O garoto se tornou arredio e brigão e a exaustão
do pai não melhorava em nada a situação familiar. Sua produção caiu e, agora,
perdia horas se explicando para os chefes. O bebê comia pouco, perdendo peso de
forma assustadora. As brincadeiras da babá já não faziam efeito e uma atmosfera
depressiva tomara conta da casa, como se uma nuvem negra houvesse pairado sobre
o lugar.
O pai, que ainda balançava o bebê enquanto estas
recordações o atingiam, largou o garoto de volta ao berço. Com os pés
arrastados, ele voltou para a cama, olhando para o relógio. Duas da manhã.
Aquele tinha sido o primeiro canto. Pelo menos mais duas vezes o galo
irromperia na madrugada. Com as pálpebras pesadas, ele cerrou os olhos,
adormecendo logo a seguir.
Ele acordou com o sol a lhe perturbar os olhos
ressecados. Zonzo, ele demorou a reconhecer que estava na própria cama.
Soltando um grande bocejo, consultou o relógio da cabeceira. Oito e trinta.
Aquilo o despertou na hora. Deixando os lençóis para
trás, ele foi com os passos rápidos até o quarto do garoto, escancarando a
porta. Por muito pouco ele não vomitou; seus joelhos dobraram e ele se viu
agachado no chão. Pelo quarto, penas
negras balançavam na brisa da janela aberta. No chão, as vísceras do galo
estavam espalhadas em um círculo onde o filho repousava tranquilamente. Na
parede, uma única palavra, escrita em sangue.
Roanoke.
* Professor e escritor, Andre atua nos sites azcordenonsi.com.br e duncangaribaldi.com.br
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