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Nos tempos medievais, as igrejas eram construídas gigantescas, com
as imagens de santos e anjos olhando de forma severa para baixo afim
de criar a ideia da enormidade de Deus diante da insignificância do
homem.
A pequena igreja do pastor Wanderson não era nem de longe tão
opulenta quanto as catedrais góticas dos tempos antigos, apenas uma
sala pequena com algumas cadeiras de plástico onde as pessoas se
sentavam para ouvi-lo falar buscando alívio para seus martírios
diários diante do poder divino.
Mas não havia qualquer alívio para Wanderson naquela noite,
enquanto ele tentava em vão debater-se contra as amarras que
prendiam seus braços abertos de costas para o altar de onde tantas
vezes proferira palavras sobre o poder de Deus e sobre o temor que as
pessoas o deviam.
Ele orou, com mais força e convicção do que jamais orou para
impressionar seus fiéis em suas pregações, talvez pela primeira
vez em sua vida verdadeiramente clamando por uma intervenção divina
que o liberta-se daquele suplício.
A figura diante dele não tinha nada de divina, entretanto.
Wanderson podia ver, mesmo na penumbra que dominava a pequena igreja
os chifres que brotavam da cabeça arredondada enquanto sentia as
mãos dele prendendo seus pés juntos em uma crucificação macabra,
seu toque parecia com o de pequenas criaturas rastejantes subindo
pelas suas pernas causando arrepios igualmente de medo e nojo.
Wanderson tentou mais uma vez mover-se. Um único impulso, um chute
bem dado no rosto de seu captor poderia ser o suficiente, mas assim
como ocorrera quando ele prendera suas mãos, as pernas não o
obedeceram.
Fechou os olhos enquanto o cheiro pungente invadiu suas narinas e o
som de líquido sendo derramado se espalhou em seus ouvidos. E orou.
Orou com toda a força que possuía. Pediu perdão por todos os seus
erros, por todo o dinheiro que tomara de seus fiéis, das mulheres
cuja fragilidade ele se aproveitou, de todas as mentiras que contou
ao longo dos anos.
Um barulho ríspido o fez abrir os olhos quando o fósforo na mão
do seu algoz se acendeu iluminando o rosto da criatura. Sim,
criatura, porque não era possível que aquilo fosse humano. Mesmo os
chifres sendo na verdade orelhas pontudas e salientes, a pele
macilenta como de um cadáver e os olhos de um amarelo pustulento não
deixavam dúvidas quanto a isso.
Diante desta visão infernal, Wanderson voltou a orar, mas suas
preces transformaram-se em gritos conforme as chamas o devoravam
lentamente.
* * *
Wanderson levantou gritando com tanta força que empurrou sua esposa
quase derrubando-a da cama.
- Santo Deus, Homem! Que demônio te atacou essa noite?
Ele sentou-se arfando. Por um momento olhou para a mulher ao seu
lado sem reconhecê-la. Sentou-se na cama e aos poucos o mundo foi
voltando para o seu lugar mas a lembrança do sonho ainda era forte,
como se suas mãos ainda ardessem em chamas.
- Você está tremendo. - disse sua esposa as suas costas.
- Foi só um sonho ruim. Nada demais. Deixa isso pra lá.
- Mas você anda tremendo a beça. Tem uns dias que eu estou
reparando nisso. Já te disse que você tem que ver um médico, mas
você é teimoso a beça.
- Eu já disse pra deixar pra lá! - Wanderson gritou se levantando.
O quarto ficou em absoluto silêncio por alguns minutos. De costas
para ela, coçava o bigode branco tentando a todo custo ignorar o
quanto a sua mão tremia enquanto fazia isso. Quando finalmente se
virou, estava sozinho no quarto. Respirou fundo e entrou no banheiro
para começar a se arrumar.
Minutos depois, já de banho tomado e vestido com seu terno marrom
entrou na cozinha e encontrou a esposa lavando a louça. Ela serviu
um café em sua caneca enquanto ele sentava para o café da manhã.
Comeu calado, só falando ao tomar o último gole de café.
- O Souza vai passar aqui mais tarde pra deixar uma encomenda. Uma
mochila daquelas. Conta pra ver se tá tudo direitinho e deposita na
conta da igreja que como se fosse doação.
Ela concordou com um movimento da cabeça, ele levantou-se, deu um
beijo na bochecha dela e saiu. Ambos sabiam que não havia
necessidade de desculpas, mesmo ela tendo esquecido que a mulher
devia ser submissa ao homem, ele a perdoava.
* * *
Boa parte do dia do pastor Wanderson consistia em visitar as casas
dos fiéis para levar-lhes palavras de alento e conforto, além de
coletar doações destes para a ampliação de sua sagrada igreja.
Ele se demorava mais em alguns do que em outros, pois cada um tinha
suas próprias questões. Dava uma atenção especial as mulheres
separadas ou viúvas, além de algumas cujos maridos não provinham
com carinho e apoio suficientes para elas. Wanderson tinha muito
prazer em atender as necessidades dessas irmãs em cristo.
Após passar o dia nesta árdua atividade, chegou no final da tarde
a sua igreja onde Maycom o esperava lendo um jornal popular.
- Boa tarde, pastor.
- Boa tarde, Maycom. Como foi seu dia? - cumprimentou enquanto abria
as portas da igreja que não era maior do que uma pequena loja.
Por um momento, Wanderson ficou ali parado observando seu diminuto
templo enquanto um arrepio lhe corria pela espinha. Ele mal escutava
enquanto Maycom falava sobre dependentes de drogas que ele visitara
ao longo do dia e que tinha certeza de que conseguiria salvar em
honra e glória do Senhor.
Seu pensamento estava longe, imaginava a igreja maior que pretendia
alugar para comportar os fiéis que já não cabiam naquelas três
míseras fileiras de cadeiras de plástico, sonhava com o dia em que
estaria ao lado de pastores que tinham verdadeiras fortunas, talvez
até entrasse para a vida pública. Quem sabe, um dia não estaria
ele proferindo o nome de Deus no próprio Congresso Nacional?
O toque de Maycom em seu braço, buscando sua atenção o arrancou
de seus devaneios.
- O senhor viu que coisa horrível, pastor?
Wanderson piscou uma ou duas vezes para se situar enquanto pegava o
jornal que o outro lhe estendia com uma foto de um homem tão
ensanguentado que poderia escorrer pela página.
- O que foi, irmão?
- Esse rapaz que foi retalhado no centro da cidade ontem de noite. -
comentou compadecido. - não encontraram nenhuma identificação, e
o rosto dele está tão desfigurado. Estão achando que é algum
mendigo. Aonde este mundo vai parar?
- A causa disso é a perda dos valores da família, Maycom.
- O senhor acha?
- Tenho certeza! Deve ter se metido com uma daquelas prostitutas ou
até os travecos que perambulam o centro. Teve o castigo merecido,
certamente.
Quando devolveu o jornal, Maycom tomou sua mão.
- O senhor está tremendo de novo.
- Não é nada! - disse rispidamente enquanto puxava sua mão.
- O senhor deveria ir a um médico ver isso. É tão preocupado em
cuidar dos outros mas não se cuida.
- Não é nada, já disse! E mesmo se fosse alguma coisa, tenho fé
de que Deus cuidaria de mim melhor do que a medicina dos homens.
- Então permita que eu ao menos faça uma oração sobre o senhor,
para lhe trazer alento.
Sentou-se enquanto o jovem colocou a mão em sua cabeça pedindo a
Deus por sua saúde e proteção. As palavras foram tão sinceras que
até trouxeram lágrimas aos seus olhos e aliviaram os seus temores
de que estes tremores poderiam significar que estava perdendo o
controle sobre o próprio corpo devido a idade já avançada. Este
era o seu maior medo.
- Obrigado, Maycom.
- Não por isso, pastor. O senhor me salvou e ainda poderá salvar
muitos outros como eu.
Wanderson ficou observando enquanto o outro se afastava para arrumar
as cadeiras para o culto dali algumas horas. Ele fora uma das
primeiras ovelhas de sua congregação, quando tinha recém-deixado a
cadeia. O jovem era um drogado que vivia nas ruas e olhe para ele
agora.
Se um dia teria que prestar contas diante do Criador, sabia que pelo
menos uma coisa boa havia feito nesta vida.
* * *
O culto daquela noite foi inspirado. Wanderson falou sobre o fogo do
inferno sobre os pecadores que não abraçavam o caminho de Cristo
causando um furor entre os seus fiéis. Até citou a reportagem que
Maycom lhe mostrara antes para ilustrar a perda dos valores
familiares na sociedade decadente.
Ao final, muitos foram cumprimentá-lo e abraçá-lo, concordando
com suas palavras e elogiando o fato de ao menos ele ser um homem com
coragem para dizer o que ninguém tem coragem de dizer.
Maycom se aproximou dele acompanhado de uma velha senhora, dizendo
ser sua avó que ansiava muito em conhecê-lo. Ela abraçou o pastor
muito emocionada agradecendo por ter curado seu netinho querido.
Depois Maycom se desculpou por não poder ficar para ajudá-lo a
fechar a igreja porque tinha de acompanhar a avó até em casa. Mesmo
contrariado, Wanderson sorriu amarelo e permitiu que ele assim o
fizesse e garantindo que não haveria problema algum para ele fechar
arrumar tudo quando todos saíssem.
Os últimos fiéis ajudaram o pastor a fazer as arrumações, mas
ele se despediu alegando que precisava fazer algumas orações
sozinho com Deus. Quando se encontrou sozinho pegou a caixa de
dízimos e foi conferir a arrecadação da noite. Percebeu que alguns
deixaram de contribuir e fez uma nota mental para incluir um alerta
quanto a isso na próxima pregação. Como queriam que Deus
realizasse os milagres pedidos se eles não contribuíam para a
glória de sua igreja?
Enquanto estava entretido em suas contas, pensando em quanto ainda
precisaria para conseguir seu sonhado templo, a luz começou a piscar
e por fim se apagou. Ele amaldiçoou, imaginando se tratar apenas de
uma lâmpada queimada. Usando a luz do celular para se guiar, guardou
a caixa e se dirigiu para a saída, quando a porta da igreja se
escancarou de repente, mesmo tendo trancado-a quando o último fiel
saiu.
Wanderson foi jogado ao chão pela mesma força que arrobara as
portas e viu uma figura de pé a sua frente, iluminada apenas pela
luz da lua, deixando apenas enxergar sua silhueta, na qual podia se
ver o que pareciam dois pequenos chifres saindo das laterais da
cabeça.
O pastor estava apavorado diante da figura que o assombrara em seu
pesadelo. Sabia que não eram chifres, mas as pontas de suas orelhas
salientes. Também sabia que ele o olhava com olhos amarelos da cor
do pus de uma ferida a muito infeccionada. E podia sentir o seu
sorriso macabro como se ele escorregasse por sua pele.
- Faça suas preces! - O estranho disse em uma voz rasgada.
E sem poder mover seu corpo, foi o que Wanderson fez...
Uau! Este trecho da história ficou ainda melhor que o primeiro. Está criando uma ótima atmosfera de suspense e nos deixando com gosto de quero mais. Parabéns!
ResponderExcluirOi Ana,
ExcluirA ideia era essa mesma. Criar o clima para depois começar a mudar tudo. hahahaha.
Na verdade essa história começou como um conto avulso, daí veio a ideia desse segundo e comecei a pensar em quem era o serial killer, e as ideias para as próximas partes foram aparecendo (e ainda não pararam. hehe).
Abração!