Ele
tinha que descer doze quarteirões para poder pegar o ônibus a tempo. Cada dia
nessa função, ele amaldiçoava algo ou alguém por morar tão longe da rua
principal da cidade – e, portanto, da parte da cidade que
"importava". E o fazia com muita dramaticidade:
—
Porca miseria! Eu não merecia um tratamento tão desprovido
de apreço e consideração!!!
Porém,
felizmente, o drama parava por aí. Não era muito aprazível sair gritando essas
coisas no lugar em que ele vivia. De fato, ele nem gritava: somente pensava
consigo. Não gostava de demonstrar, por algum motivo, que tinha um conhecimento
elevado, ou que pensassem que se achava superior aos outros. Considerava-se
igual aos demais, com os mesmos gostos e atitudes, mas sabia quem era o Malcolm X que a música dizia, assim como ouvia Ella Fitzgerald e Miles
Davis...
Só que
isto não é sobre o que ele gosta. Bem, é... Mas não como ele gostaria que
fosse: falar sobre o Bakumatsu,
sobre o Movimento dos Direitos Civis ou sobre Egito Antigo, entre muitos outros...
Não é sobre o que ele gosta. É sobre quem ele gostava.
E é,
inclusive, por isso que ele tinha que percorrer os doze amaldiçoados
quarteirões. Ele poderia, simplesmente, acordar uma hora depois e pegar o
ônibus que passava a duas quadras de sua casa e servia, tão perfeitamente
quanto o outro, para ir ao trabalho. Poderia, ainda, evitar a revolta de seus
dois irmãos mais novos – que também só precisariam acordar uma hora mais tarde
– com o barulho que ele fazia no quarto, arrumando-se. Poderia evitar ouvir a
mãe dizendo – e, isto, era todos os dias sob este céu – que ele se mataria
agindo desse jeito (E ele, ironicamente, pensava em Rasputin todas as vezes...).
Ele
poderia, enfim, viver mais simplesmente. Só que, vivendo assim, não veria ela todos os dias.
A
primeira vez foi totalmente por acaso. Pegou aquele ônibus porque teria que
comprar algumas coisas antes do trabalho e a loja abria às sete, o trabalho
começava só às oito horas... Então, ele pegou o ônibus das seis (“Doze
quarteirões... Doze quarteirões...”) e ela estava lá. Já tinham passado oito
meses disso...
Cassandra.
Levou cinco meses para descobrir o nome. E foi num momento em que estava
desatento, pensando em coisas um tanto que impuras com a menina. Um sujeito
meio estranho, meio afetado (“Aff... Só falta esse playba emo ser namorado
dela...) gritou o nome dela, surpreendido pelo encontro inesperado. Ele prestou
atenção no que deu na conversa e ficou contente ao saber que eles nem eram
próximos, só tinham uns amigos em comum, tal e coisa.
Só
que, mesmo com toda devoção que possuía, achava a situação meio ridícula.
Falando sério, não tinha o mínimo de similar com ele aquela atitude. Um dos
irmãos já estava chamando-o de “Homem que Copiava”. Era triste, mas era bem
aquilo mesmo...
Porém,
ele estava certo que era “a mina certa”. Normalmente, ele nem se importaria com
alguém como ela. Roupa de marca, tênis All-Star cheio de onda, lia Capricho... Era até muito
estranho ela ir de ônibus para a faculdade. Faculdade. Era o sonho dele fazer uma.
História, Biologia, Computação Gráfica... Muito do encanto dele (quase todo)
era por isso, não pelo fato dela ser muito linda por demais, olhos verdes, boca
carnuda e com um enorme dum... Ah, é compreensível. Todo caso, Cassandra estava
lendo O Pêndulo de Foucalt quando ele reparou nela. E começou a
cuidar do que ela fazia e gostava, para possuir aquele perfil detalhado quando
arranjasse tenacidade suficiente para chegar nela.
E
as coisas iam indo assim, sem muito o que relatar. Todo dia, a mesma rotina,
observando Cassandra de longe, na esperança, mesmo que pálida, de ter como
chegar nela ou dela reparar nele... Sem muito o que relatar...
Até
que o inesperado ocorreu. De forma terrível e repentina, mas ocorreu, enfim.
Após
economizar por quatro meses, conseguiu comprar um desejado mp3 player. Claro, hoje em dia,
nem são produtos tão onerosos, mas para alguém como ele... Seu contentamento
era sem par. Lembrava um fauno embevecido em hidromel, de fato. Porém, como não
tinha computador e nem, obviamente, uma conexão, pedia a um colega do serviço
para conseguir as músicas da lista que elaborou. Demorou uma semana, porém,
agora, podia ir no ônibus curtindo Wanna
be where you are, Gangsta’s
Paradise, Cantando pro
Santo, Diário de um
Detento, Jeepers Creepers, Soldado do Morro... Era bom,
era calmo, era melhor do que a realidade. E fazer isso admirando Cassandra...
Podia não estar com ela, mas a vida apresentava-se
muito agradável...
O
que ele esqueceu, contudo, é que felicidade, a calmaria, não dura, não é eterna
e imutável. Pergunte a Édipo. Pergunte à Coraline. Pergunte aos mortos, aos
lobos e sombras do mundo.
Eles
– não só Cassandra e o seu “devoto”, mas os outros passageiros, o motorista e o
cobrado e, até mesmo, a senhora que vendia flores artificiais – já estavam
nessa história por mais de uma ano. E nada de drástico havia ocorrido em todo
esse tempo. Talvez, em uma possibilidade muito remota, algum deles tenha
pensado que aquele ônibus era seu Éden, sua Terra sem Mal, seu Jardim das
Hespérides...
Tão
repentino como um rinoceronte nos céus – que, todos sabem, quer dizer uma
tempestade feroz surgida do nada –, a ilusão caiu. Chegaram ameaçando,
esbravejando palavras de fúria e terror, com seus trovões portáteis, escondidos
em ferramentas de aço. Apontavam e blasfemavam, como behemots com uma gula
assassina.
Ou,
ao menos, era como a coisa funcionava na cabeça dele. Muita leitura faz isso,
nessas horas. E nas outras também. Foram retirando dos passageiros o que era de
interesse: celulares, dinheiro, uma ou outra coisa de valor, como roupas e
tênis. Geralmente, subtraíam essas coisas só pelo prazer da humilhação...
Ironicamente, ignoraram-no. Pro seu próprio bem – ou mal, principalmente à
noite – a aparência que tinha lembrava um deles. Talvez, até mais. As roupas,
ao menos, eram iguais. Assim como outros detalhes inquietantes... Imaginavam,
provavelmente, que era um deles. Talvez, até pior... Bom, não era por bem
pouco... Não conhecia alguém de fora que não tivesse, pelo menos, pensado nessa
vida. Ele mesmo, mais de uma vez, tencionou falar com um patrão e mudar de
vida. Isso era sonho, a realidade é pior.
Como
o ignroraram, só fez observar, cuidadosamente. Sem alarde, afinal, era bem
comum a ele esse tipo de acontecimento. Era só ficar na dele...
Só
que nem a inação é perdoada, deixada em paz. Repararam, até demais, em
Cassandra. Em como era bonita. Em como sua pessoa destacava-se entre outras.
Não, usaram, claro, essas palavras, mas, certamente, era como deveriam se dirigir
à ela. Não vulgarmente, não desse jeito. E, principalmente, sem tocar. Não
daquele jeito, naqueles lugares. Desrespeitando sua intimidade violentamente.
O
que Codinome V faria? E Perseu, Musashi ou Luke
Cage?
Agiriam.
Lutariam. Protegeriam.
E,
novamente, para seu próprio bem ou mal, ele tinha uma altura física um pouco
acima do comum. Era, visivelmente, alguém a ser temido em caso de
enfrentamento, pois não só a altura, mas toda sua compleição, demonstravam que
era forte demais.
Só
que isso não serve para tudo. Nem sua inteligência e sua imaginação irrefreável
e prolífica o protegeriam. Nem saber como Zatanna diria sua magia para mudar aquilo, nem
lembrar como Isamu Minami fazia para mutar... Ele não era Luke Cage. Não era o Pantera Negra. Não era, para
seu infortúnio final, alguém que contariam histórias. Não existiria uma Viagem Noturna para ele.
Entretanto,
ele conseguiu ser rápido e tolo o bastante para derrubar o primeiro. O qual não
se moveu mais. O que fez os outros pensar que estava morto, não só desacordado.
E o que, logo em seguida, fez de quatro a sete trovões soarem, ninguém estava
muito certo em quantos, dentro do coletivo.
E,
mesmo assim, ele não caiu. A princípio. Essa demonstração de resistência fez
seus algozes fugirem. Ou ele raciocinou, turvamente, assim. Recolheram o
desmaiado – já acordado, na verdade – e partiram com sua pilhagem.
O
ônibus parou. O motorista correu pra pedir ajuda. Os passageiros, dois ou três
desceram, os outros ficaram olhando o corpo agonizante, sem saber o que fazer.
Ele estava deitado no banco ao lado do que estava Cassandra. E foi ela que fez
algo.
—
Eu estudo Medicina! Dexa eu passar, porra! Eu posso ajudar – Eu...
Ele
fez um rio de sangue por ela. Um rio do sangue dele. Por ela: sua Andrômeda,
sua Saori, sua Evey Hammond, sua Ororo... E ela estudava Medicina!
Devia ser inteligente mesmo... E, se tivessem conhecido um ao outro, ele
saberia que ela morava no mesmo bairro que ela, numa rua entre os doze malditos
quarteirões. Que não era filha de um banqueiro ou neurocirurgião, como
imaginava, e, sim, de uma mãe solteira e empregada doméstica. Que estudava pela
manhã para trabalhar da uma da tarde as 11 da noite em um restaurante, para
poder comprar seus livros, pagar o ônibus diário e as roupas caras, usadas só
na faculdade, para não “fazer feio no meio dos playbas”, como ela mesma dizia –
em casa, na verdade, poderiam confundi-la com uma sem-teto... A faculdade,
então, ela só cursava com uma bolsa integral que conseguiu orgulhosa, mas
sofridamente.
E,
o principal: tudo bem, ela nunca havia reparado seriamente nele,
não mais do que se repara em alguém que pega o mesmo ônibus com você todos os
dias, mas que, se soubesse como ele gostava dela e como eram parecidos, teria,
muito certamente, chegado a casar e passar os restos dos seus dias sob o Sol
com ele.
Só
que tudo que ele conseguiu foi:
Talvez, hoje, ele esteja em Nanda Parabat.
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