Pages

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

"Será que chove?"


Antes de ler o conto abaixo, talvez seja mais interessante, antes, ler Brenda, Victor e Campeão. Embora as histórias sejam fechadas, todas fazem parte do mesmo processo... Assim como os próximos três contos deste autor. 





Os telejornais, as revistas semanais, os sites de notícias... Até mesmo os programas de “variedades”... Todos falavam e queriam mostrar um pouco mais sobre a “terrível tragédia” que assolou aquelas pobres almas. alguns, quando a pauta estava fraca demais para chamar muita atenção, desenterravam acontecimentos similares com mais de cinquenta anos... Ou traziam suas “celebridades” com uma afinidade remota com o lugar para falar sobre aquela infelicidade ímpar – sem mencionar, claro, que a afinidade era algo como um primo distante que morava na cidade vizinha. Contudo, nenhum deles mostrou o que se seguiu.


***

Normalmente, em janeiro, não se espera um clima tão tempestuoso – tanto calor, é sabido, gera chuvas e, algumas vezes, até muito fortes... Torrenciais. Mas nada como aquilo.

Mal passava das oito horas da manhã quando dona Ivone olhou para o céu, fungou e soube que algo chegaria. Sua primeira reação foi ligar para Carmen e avisar. Ou ligar para Victor, seu sobrinho, e “sugerir” que ele mencionasse isso para sua mãe – de uma forma mais sutil e comedida, portanto. No fim, desistiu da ideia e resolveu que o melhor seria sair e comprar bolachas salgadas, garrafas d’água e algumas coisas mais... Coisas que pudessem ser consumidas por semanas. “Melhor prevenir”, não é?

E começou a descer em direção ao mercadinho. Ela até poderia telefonar e pedir que entregassem em sua casa, mas o percurso e a interação no local era o mais importante, no momento. Conversas casuais sobre o clima tomavam proporções incríveis, se aplicadas corretamente – com o açougueiro, com o padeiro, com as senhoras na fila do caixa –, e poderiam mudar muita coisa... “Tomara”, pensava Ivone.

As compras levaram apenas vinte minutos. A conversa jogada fora com quem fosse, quase duas horas. Com um fugaz sentimento de orgulho pela sua competência, pegou o rumo de volta para casa. E pensando nas medidas que ainda deveria tomar, mal notou o movimento rápido, no limite da visão periférica. Quando se virou na direção do vulto, ele já estava esperando, agachado em um canto da viela. Ela tentou não tremer, não demonstrar medo.

“N-não comigo aqui! Não desta vez!!”, ela quase gritou. A resposta foi um silvo pútrido de escárnio. Logo, ela estava novamente sozinha. Por pouco não se levou pelo desespero; agora, sabia que tinha que evitar aquilo a qualquer custo.

***

O vento foi mudando e as nuvens se acumulando ao longo do dia. Fora isso, nenhuma mudança relevante. Até parecia que esperavam pelo fim da tarde... Pelo horário que mais pessoas estariam em suas casas, acomodadas e tranquilas... Isso, claro, seria a percepção de alguém despreparado; Ivone não era essa pessoa. Não era coincidência.

Minutos antes das dezoito horas, “aquela porcaria daquele celular de merda” começou a tocar. Na tela, o número da casa de sua irmã. Atendeu, quase afoita, e Carmen contou algo que a deixou muito mais preocupada: Victor tinha sido chamado para uma ocorrência e, nela, uma criança mostrou “habilidades incomuns”, como a polícia registraria, mais tarde. Repetiu cada detalhe que o filho tinha narrado e, depois, confirmou a suspeita da irmã:

“Lembra daquela vez...? Em São João?”

Infelizmente, quase sessenta anos depois, não deixava de lembrar. Nunca esqueceria. Nunca antes correu e gritara tanto. E aquele cheiro...

Ao abrir a boca para responder, percebeu que algo estava acontecendo. O vento mudou, mais uma vez. Estava mais intenso. Mais feroz. Respondeu qualquer coisa, pediu para esperar um minuto e largou o celular na mesa, enquanto se dirigia para a janela da frente. Sobressaltou-se. Voltou-se para o celular; precisava avisar a irmã, que ela ficasse em casa e se preparasse, estava vindo e...

Começou.

***

Pouca gente percebeu o que aconteceu. Quer dizer, os sobreviventes sabiam que alguma coisa terrível tinha acontecido – o cenário indicava isso, afinal. Entretanto, ninguém poderia relatar quando, realmente, teve a percepção do fato em si... Era como se, racional e conscientemente, não pudessem explicar o início das últimas onze horas.

Da mesma forma, ninguém viu quando, por trás daquelas nuvens sombrias e densas, o céu ficou esmeralda.

Afinal, os principais problemas, agora, eram os alagamentos e os deslizamentos de terra. Do cume ao pé do morro, tudo ruía. E, entre o uivo do vento e o estampido eventual de um trovão, ninguém notou os gritos.

***

Nos telejornais, nas revistas semanais, nos sites de notícias... Em todos, você encontraria alguma referência ao assunto. “A maior tragédia de nossos tempos”, alguns afirmariam. Fazia sentido: materialmente, toda a cidade tinha sido afetada. Era algo sem precedentes. Do distrito industrial aos bairros mais ricos, do centro às periferias, era como se uma onda de destruição tivesse vindo para conhecer a cidade e passeasse por todos seus bairros e caminhos, subindo e descendo ladeiras.

Contudo, como sempre, os bairros mais pobres foram mais afetados. Casas inteiras alagadas, levadas por toneladas de lama e entulho ou destruídas, simplesmente, pela vontade inexorável da ventania.

E o mais curioso, diziam os analistas: aconteceu em vários lugares aleatórios do país, aquele mesmo “evento climático”. Lugares em que a última chuva de verdade tinha sido há mais de dois anos, inundados e, em alguns casos, em “estado de calamidade pública”.

A comoção nacional – e, logo, mundial – foi muito linda de se ver. Todos queriam tomar parte daquilo, ajudar. Começaram a exigir dos representantes públicos, demonstraram solidariedade, iniciaram programas de doações e projetos assistências para aquelas milhares de pessoas superarem o acontecido, retomarem suas vidas...

Porém, em nenhum lugar, entre nenhum dos afligidos pela calamidade, se falava do mais importante. Em todos os lugares, centenas, talvez milhares, tinham sumido. Simplesmente, desaparecido. E ninguém se dava conta. Ninguém falava nisso. Era como se não soubessem que algo faltava em suas casas, em seus cotidianos... Era um silencioso grito de desespero, mas estava lá, presente. Centenas ou milhares de crianças... Todas desaparecidas – ou pior: como se nunca tivessem existido.

A única pessoa que falava nisso era, agora, vista como uma velha louca.









5 comentários:

  1. Muito bom!
    Você consegue manter o suspense na medida certa: não o exagera a ponto de impacientar o leitor, mas tampouco o corta bruscamente. Tudo bem calculado.

    E gostei da construção da personagem. (Gostei especialmente do parágrafo sobre o vulto - o artifício de que a protagonista captou algo "no limite da visão periférica" caiu muito bem.)

    E o mistério está superinteressante. Passarei a acompanhar o site e lerei os demais contos desta sua série, Emanuel.

    Enfim, parabéns!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Poxa, Rodrigo, um dos melhores elogios que já li. Valeu, mesmo!


      E só para te deixar mais bolado: o lance do vulto é baseado em experiências pessoais, "para a vergonha deste ser". o.O

      Valeuzão, novamente!

      Excluir
  2. Não estou entendendo bem a história... Estou meio perdido em como esses acontecimentos estão ligados. Mas mantenho-me lendo principalmente porque o mistério está muito massa. O que o Rodrigo disse é verdade: "Você consegue manter o suspense na medida certa"

    Congrats. Vamos continuar lendo para encontrar a solução, ou pelo menos a resposta de todo esse mistério.

    ResponderExcluir
  3. CadêÊêêêÊÊ o restoooooooooooooo *ansiosa*

    Muito bom!!!

    ResponderExcluir
  4. Mais um conto excelente de quinta-feira, sempre me lembro de passar por aqui e acompanhar a sua 'série', hehe. Que ela prossiga no sucesso assim, nos apresentando a novos personagens sem deixar de lado as antigas experiências, e então que as coisas se revelem gradativamente, já que o clima de mistério está realmente elogiável! Parabéns pelo texto, fico na espera da continuação.

    ResponderExcluir