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domingo, 6 de janeiro de 2013

Sinal vermelho


Sábado. Noite. Vinte e uma horas e trinta minutos. Cidade de Maceió. Avenida Fernandes Lima. Sinal de trânsito em frente a uma agência bancária qualquer. 

O sinal acabou de ficar vermelho. 

A bolha temporal que se forma nesse curto espaço de tempo se estabeleceu. 

Os poucos segundos poderiam ser uma eternidade em pensamentos. 

Esse era um instante em que a respiração urbana dava uma pequena pausa, para retomar o fôlego, prosseguir em seu destino, sua marcha irrefreável atropelando os pequenos animais que não fossem espertos o suficiente. 

Se o devir seria negro como um céu sem estrelas, onde o negrume pareceria uma tinta fresca prestes a pingar em nossas cabeças, ou belo e brilhante como as praias da cidade em que as águas assumem um tom azulado nos dias de sol mais escaldante unicamente o amanhã revelaria. Na verdade cada dia só podia assegurar como ele estava sendo, um dia de bonança não garantia que o próximo nascer do sol seria como um coral de anjos nessa selva. 

Todos os dias muitos filhos dessa loba chamada Maceió, nome este que vem do Tupi "Maçayó" ou "Maçaio-k" que significa “o que tapa o alagadiço”, tombavam, não era à toa avaliada como a cidade mais violenta do Brasil. Alguns entravam no sono eterno ceifados por seus semelhantes, outros vitimados pela falta de empatia do poder que regia as suas vidas desde a instrução nas escolas públicas até o momentos fatídico em que agonizavam em leitos hospitalares lutando o pior embate que um mortal pode travar...o combate contra a morte. 

Culpados...Inocentes...quem poderia discernir com absoluta clareza? 

Quem eram os réus: 

Os governantes ambiciosos, com suas taças de vinho sempre a transbordar assim como os césares de tempos antigos, e com escrúpulos tão podres e fétidos quantos os alimentos que os urubus conseguiam nos lixões, disputando espaço com os catadores que não almejavam luxo, mas só tirar do lixo um sustento, ao menos um pão para repartir entre a família numerosa? 

Aqueles que optavam pela vida perigosa, mas em que havia chances de alto lucro bastando somente não ter um alto grau de piedade e não se importar em arrebatar os bens de pessoas que mal conseguiam ter três refeições por dia, pessoas estas que tinham de realizar o verdadeiro milagre da multiplicação não deixando sequer migalhas sobrando para alimentar as formigas de suas moradias que morriam de inanição. Miseráveis subtraindo de miseráveis, essa face da humanidade era mais escura que o lado negro da lua e superava em horror qualquer outro monstro engendrado pela imaginação humana ou que realmente caminhasse pelo asfalto que asfixiava as plantas que jamais cresceriam. Serão estes os Judas que merecem receber o veredicto? 

Uma terceira possibilidade seriam os omissos que em seus apartamentos de luxos, torres de Babel, proferiam muitas palavras que faziam os pássaros caírem mortos tamanha a concentração de veneno. As mulheres são como manequins numa vitrine que anuncia a felicidade à preços de saldão, com seus corpos esculpidos por metais frios assim como seus corações, e os homens eram seres cuja maior preocupação existencial era qual o carro que comprariam no próximo ano e como estava o seu saldo bancário. Então, os réus estão nessa terceira categoria? 

Essa não era uma questão que cabia, por exemplo, ao único motoqueiro que estava montado em sua Harley Davidson em frente à faixa de pedestre. 

A Harley Davidson tinha sido comprada de um turista gringo, não se lembrava da nacionalidade dele, que veio passar as férias na Praia de Ponta Verde. Foi uma pechincha. Durante as poucas conversas que tiveram notou que o turista, que falava um português muito precário, sempre era evasivo quando perguntado sobre a sua vida no país de origem. Devia ser um fugitivo. 

O motoqueiro se chamava Alessandro e para ele a vida urbana com o seu adubo de mortes era uma pústula sobre o planeta que jamais poderia ser curada, era um parasita, um vírus, muito lucrativo. Cada cadáver que dava entrada no Instituto Médico Legal era uma moeda que tilintava no caixa. 

A cidade sempre estava acordada. 

Algumas vezes mais calma, outras tão alucinada quanto um usuário de ecstasy dançando ao som de luzes multicoloridas, uma fumaça branca que se arrastava pelo chão e corpos que brilhavam com o suor brotando dos poros. 

A cidade era um organismo vivo, as pessoas iam e vinham, mesmo que não soubessem essencialmente para onde iam ou o motivo de irem, mantendo-a viva. 

Nem todos eram vistos no meio da massa, dentre eles haviam os incorpóreos. Os incorpóreos respiravam um ar mais baixo, pesado, soturno, viviam numa atmosfera abaixo da cintura das demais pessoas. Constantemente eram vistos com seus braços estendidos clamando por um trocado ou seria um pouco de amor? Seja qual das suas opções for, recebiam muito pouco. Eram as cartas jogadas para fora do baralho. 

Sexo também era uma valiosa moeda de troca por essas bandas. A orla no trecho da Praia da Avenida era cheia de mulheres de todas as faixas etárias que negociavam seus corpos com os mesmos homens que em suas casas davam um beijo de boa noite na filha e diziam para as esposas que iriam resolver assuntos de trabalho. Para os gostos mais exóticos havia também travestis que mediante um bom pagamento poderiam participar de qualquer sodomia. Muitos clientes davam vazão para a pederastia em seus carros, que durante a semana inteira transportavam a família para passeios. Eles queriam poupar o dinheiro que gastariam no motel. 

O cheiro que Alessandro mais apreciava era o aroma de gasolina. Sim, ele amava aquela fragrância. Ela traduzia tão bem a resposta do que era ser urbano de verdade. Pensar que o petróleo que estava no tanque de sua moto pode ter sido originado da matéria decomposta há milênios de ancestrais daqueles que agora se deslocavam em seus monstros de metal era poesia pura. 

A morte dando combustível para o futuro. 

A gasolina também despertava uma mania sua. 

Ele gostava de ver coisas queimando. Virando cinzas, afinal esse era a sina de todos os seres humanos e criaturas viventes. Correto? 

O fogo era a síntese do sentido da vida. Consumir, crescer, consumir mais, queimar tudo pela frente e no final ser apagado por um sopro gélido. Essa também era a programação dessa máquina de ossos, carne, secreções, sonhos, desejos, delírios denominada bicho homem. 

O sinal daqui a pouco iria abrir novamente. 

Alessando rapidamente retirou o capacete negro com chamas verdes desenhadas, revelando um rosto que parecia ter pouco mais de vinte anos, contudo fazia quem o observasse se sentir na presença de alguém muito mais velho. Arrumou seu cabelo castanho claro. Ajeitou também os óculos escuros que usava. 

Apesar de ser noite gostava de sempre estar com os óculos que comprou em uma loja de conveniência em um posto. Havia um ditado que dizia que os olhos são a janela da alma...mas quando sua alma é um abismo que suga como um buraco negro tudo o que se aproxima não convém ficar expondo-a. Pode assustar os desavisados. 

A cidade não era muito diferente dele, talvez o espirito da cidade fosse a coisa que mais se assemelhasse com a sua existência. 

Colocou o capacete novamente na cabeça, mas dessa vez deixou a viseira levantada. 

Pegou um cigarro em um dos bolsos da jaqueta que usava e colocou na boca. Na outra mão já estava o isqueiro quadrado de cor dourada. Acendeu o cigarro. Baixou a viseira. Não se importava com as cinzas que cairiam nele, sentir um pouco de dor poderia ser bom. 

A dor servia de parâmetro para o prazer que se procura. Ele também queria aspirar todo o câncer da fumaça do cigarro, sentir o melhor do sabor de viver em uma sociedade que vendia a doença e a um preço ainda mais alto poderia lhe dar a cura também. Era uma sociedade admirável mesmo! Um mundo genial! 

Uma velhinha, o último dos pedestres estava no meio do caminho para o outro lado, ela tinha artrose o que fazia de cada movimento uma dor imensa e a sua velocidade era como a de uma tartaruga, quando sinal abriu. 

A bolha de tempo lento se dissipou e tudo voltou com o peso do concreto de todos os prédios do mundo. 

Os motores dos carros roncavam. Pareciam animais prestes a darem o bote em suas presas. Mesmo assim os carros aguardavam que a senhora idosa chegasse ao outro lado. 

Alessandro acelerou sua moto, expelindo uma grande quantidade de fumaça pelo carburador cromado, e antes mesmo que a idosa se desse conta do que estava se formando, a sinfonia fúnebre que tocava, se viu sendo jogada no chão. Sua cabeça bateu com muita força no asfaltado que estava quente por causa do calor acumulado durante o dia. 

Sangue, muito sangue, começava a sair do corte que se formou na cabeça coberta de cabelos brancos que agora adquiriam mechas vermelhas. A vítima não se mexia. 

Alessandro olhou por um dos retrovisores da moto e viu que alguns motoristas saiam de seus carros, não para prestarem socorro e sim para filmarem tudo com seus celulares de última geração e mais tarde colocarem os vídeos na internet. Esses não eram diferentes dos urubus. 

Quando alguém com bondade e compaixão suficiente aparecesse a mulher já teria falecido. Aqueles homens e mulheres às vezes o faziam perceber que não era tão mal quanto imaginava. 

Alguns metros a frente sentiu o cheiro do sangue em contato com o asfalto, esse era outro perfume que o agradava. Deu um sorriso com os dentes fechados, mantendo o cigarro preso, seus dentes caninos maiores do que o normal, amarelados e afiados como agulhas ficaram ressaltados. 

Alessandro prosseguiu seu rumo sem qualquer inconveniente. A noite era sua. A cidade era ele. Havia muito alimento para o seu coração negro ali.

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