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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Mortos


Goiânia,
25 de Janeiro de 2012.

Meu nome é Francisco Edilton Reinaldo Nunes. Tenho vinte e seis anos e a maioria das pessoas que um dia conheci durante esse período estão mortas. Não fui o responsável por isso. Falando sinceramente, acho que ninguém sabe ao certo quem foi realmente o principal responsável por espalhar toda a coisa. Nem mesmo se houve um responsável. Talvez a coisa tivesse simplesmente desandado, fugido para fora dos padrões pré-estabelecidos pela natureza. Talvez tivesse evoluído, dado um passo enorme, milhares de anos a frente, geneticamente falando. Ou ao contrario. Talvez tivesse se esgueirado para fora, como um rato de laboratório fugindo das mãos predadoras do homem. De qualquer forma, isso não redime ou altera minha parcela de culpa, ainda que ínfima, nisso tudo. Portanto tentarei tratar sobre o assunto da maneira mais respeitável e sincera possível. Talvez minhas palavras soem um tanto quanto arrogante as vezes, mas admito que trata-se apenas de um mecanismo de alto-defesa, criado com o intuito de preservar o pouco de sanidade que ainda me resta. Diante dos recentes acontecimentos, creio que seja perfeitamente normal agir dessa forma. É sinal de que ainda sou humano, passível de erros. Mas por hoje é só. Há tempos não sei o que é buscar refugio nas entrelinhas das folhas abarrotadas de um caderno. Por isso caminho devagar por esse velho, conhecido e praticamente inexplorado terreno. As próximas palavras ficam para amanhã...

26 de Janeiro de 2012.

Acordei cedo. Bem mais do que eu pretendia. Tenho dormido pouco ultimamente, mas não devido ao medo. É incrível como com o tempo você acaba se acostumando a enxergar as coisas por outra perspectiva. Foi o barulho que me fez acordar. Um deles derrubou uma lata de lixo em meio a sua busca infrutífera por alimento, por carne, fresca ou não. O ruído da tampa de metal chocando-se contra o chão foi muito alto. Sou do tipo de cara que tem o sono pesado e que dificilmente acorda durante a noite. Mas muita coisa mudou nos últimos meses, desde aquela fatídica manhã do dia 23 de dezembro do ano passado, véspera de natal. Mas esse também não é um assunto com o qual devo me importar agora. O sol está prestes a nascer e eles não andam durante o dia. Dizem que o sol machuca a pele e seus olhos, tão maravilhosamente acostumados com a escuridão. Não sei se a informação é ou não verídica, mas o fato é que eu jamais os vi durante o dia. Apesar disso, a única coisa que sei é que isso me da certa vantagem sobre eles. Posso premeditar algumas de suas ações e agir antes. Me adiantar. As vezes funciona, as vezes não. Tanto faz. Não pretendo ficar a mercê da presença deles para sempre. Tenho um plano.

26 de Janeiro, 06:45.

Preparei o café da manhã com os olhos ainda latejando de sono. Ovos fritos, pão integral e suco de laranja. Não tenho o costume de beber, mas nas ultimas semanas aprendi que uma boa taça de vinho após a refeição matinal tem um sabor revigorante. Mas procuro manter-me moderado. Não posso me dar ao luxo de perder a sanidade, mesmo que isso seja apenas fruto do excesso de álcool na corrente sanguínea.
Quando terminei o café, recolhi toda a tralha, guardando os pedaços restantes de pão, junto as sobras em cima da mesa e os copos descartáveis sujos de suco de laranja e vinho em um saco plástico. Não tinha porque fazê-lo. Ninguém reclamaria ou iria se opor a um pouco de bagunça premeditada. Mas eu não sou esse tipo de pessoa. Minha época de pré-adolescente irresponsável já passara há muito tempo. A necessidade de um pouco de limpeza me revigora, acentua um pouco mais minha humanidade, sempre que eu estico o rosto pela janela e vejo o mundo inteiro destruído do outro lado. Manter-me limpo e organizado faz com que eu me sinta melhor do que as coisas que vigiam as ruas e caminham lá fora, à noite, enquanto durmo.

26 de Janeiro, 08:17.

Tentei sintonizar alguma radio. Buscar informações detalhadas sobre os últimos acontecimentos. Sobre a infecção e é claro, sobre outros sobreviventes, mas a única coisa que consegui ouvir foi o barulho irritante da estática. O ruído me incomoda, me deixa nervoso. Me lembra o barulho de um telefone velho, defeituoso. O tipo de aparelho pelo qual aprendi a nutrir um ódio quase mortal desde quando trabalhei em uma empresa de call Center; “Suporte técnico, Edilton, bom dia, em que posso ajuda-lo?”. A fraseologia ainda me da calafrios.

26 de Janeiro, 09:10.

Vasculhei a casa inteira em busca de algo que pudesse me servir de proteção. Fiquei surpreso ao encontrar uma arma em uma cômoda no quarto do casal, ao lado da cama. Calibre 38. Quatro balas no tambor. Duas tinham sido disparadas, talvez recentemente. O cheiro de pólvora queimada no cano ainda era muito forte. 
Examinei a arma com cuidado. Era grande, mais robusta do que um 38 normal. Era quase que inteiramente personalizada. O cabo era recoberto por duas armações laterais de madeira impecavelmente envernizadas, contracenando perfeitamente com o metal brilhante e vivo que revestia o cano e o tambor. Na lateral direita do cabo, próximo ao gatilho, duas pequenas iniciais haviam sido marcadas, cuidadosamente esculpidas por mãos habilidosas sobre a madeira envernizada; J.R.
Examinei a outra gaveta, procurando por um documento de identidade ou qualquer outra coisa que me ajudasse a compreender o significado das iniciais, mas não encontrei mais nada, além de um pedaço amassado de papel com uma receita de bolo escrita nele, um documento de isenção de matricula para o vestibular e um livro velho, de paginas amarelas e aspecto desagradável. “Cujo”, de Stephen King. Coincidentemente, meu autor predileto. 
Na gaveta seguinte encontrei um porta-retratos quebrado. O vidro rachado em diversos pontos deixava o rosto das pessoas do outro lado disforme, mas não desfizera ou escondera o sorriso em seus lábios. Na foto, um homem alto, de cabelos negros, curtos e lisos, com ligeiros filetes brancos despontando nos cantos, segurava uma garotinha nos braços. Ela tinha os olhos grandes e redondos. Tão verdes quanto o trecho do gramado bem cuidado em que eles se encontravam parados. Sorria para a câmera com a incrível desenvoltura que só as crianças que ainda não tem maturidade suficiente para entender as complexas equações da vida tem. Ao lado dos dois, orgulhosamente parada, a que provavelmente deveria ser a mãe da garotinha. Apenas um pouco mais baixa do que o pai, tinha os cabelos longos e pintados de vermelho, caindo por sobre seus ombros em ondas lisas e bem cuidadas. Pareciam felizes. Por um momento me perguntei onde estariam agora. Fariam essas pessoas parte das estatísticas? Teriam elas sucumbindo aos horrores “daqueles que andam de noite?”. Ou, assim como eu, permaneciam escondidos, apenas esperando o momento certo... Mas “momento certo para o quê?”. Não havia mais esperança. O mundo inteiro havia sucumbido diante do acontecimento que futuramente veio a ficar conhecido como “A praga”. A praga dizimou 99,9% da população mundial. Não acredito, em hipótese alguma, ser o único sobrevivente, mas a porcentagem destacada pelos jornais e outros meios de comunicação antes que a coisa simplesmente ruísse é inacreditável. Precisava de respostas, mas era obvio que ali, parado, observando com curiosa atenção uma foto antiga num porta-retratos quebrado eu jamais as encontraria.
Tirei a foto do porta-retratos em cuidado, temendo que ao menor deslize fizesse com que o papel se rasgasse e guardei-a no bolso de trás do jeans surrado que eu usava. Examinei, com um pouco mais de cuidado a arma, abri o tanque e tirei as quatro ultimas balas que restavam. Guardei-as no bolso da frente, sentindo o frio desconfortável do metal tocar em minha pele sobre o jeans. Girei o tambor, certificando-me de que não havia mais nenhuma bala ali.  Guardei a arma na cintura, escondendo-a parcialmente com a camisa, fechei a gaveta da cômoda e sai. O dia estava apenas começando, e eu tinha muita coisa ainda a fazer.

26 de Janeiro 10:37.

O sol estava excepcionalmente brilhante. Grandes ondas de calor atravessavam os telhados das casas e se não fosse pelo silencio anormal e o estado de total abandono das ruas, poderia até ser um dia agradável. Não se ouvia uma única alma viva sequer. Os cães haviam debandado, logo no inicio do processo, antes mesmo que se registrassem as primeiras mortes. Parece que a capacidade deles de farejar o perigo no ar é bem mais aguçada do que a nossa. Os pássaros também. Migraram um verão antes do Cataclisma se abater sobre nós. Criaturas espertas...

26 de Janeiro 11:30.

O carro era um celta, preto, modelo 2007. Encontrei-o com a porta amassada e o vidro traseiro estraçalhado. Poderia invadir mil e outras casas, prédios, estabelecimentos comerciais e etc, em busca das chaves de um veiculo um pouco melhor. Mas aquelas já estavam na ignição. Vasculhar locais desconhecidos, mesmo durante o dia, ainda era perigoso. Alguns deles se escondiam nesses lugares, esperando pela noite, e por ventura, por algum visitante desatento. A tática nunca funcionava, mas aquelas criaturas eram persistentes, e, ao contrario do que muitos pensavam, também não eram burras. Ao menos, não completamente. Tinham noções básicas e instintivas de sobrevivência suficientemente fortes para mantê-los “vivos” (se é que posso usar tal termo). E além do mais, uma porta amassada e um vidro quebrado não faria tanta diferença. Não seria atacado em plena luz do dia, e jamais tencionava sair durante a noite. Seria um erro, provavelmente fatal.
Sentei no banco do motorista e dei a partida. Na primeira tentativa o motor engasgou e não pegou. Não me surpreendi. O mostrador que exibia a quantidade de gasolina do carro estava quase no zero, na zona vermelha, mas pelos meus cálculos ainda havia combustível suficiente para chegar ao próximo posto. Girei novamente a chave na ignição e mais uma vez o motor engasgou e ameaçou não pegar, entretanto, apenas alguns segundos depois, o ruído que inicialmente fora fraco, como o arquejo de um velho moribundo em seus últimos momentos de vida, fortaleceu-se. Segurei o pé no pedal da embreagem e tirando o carro do ponto morto, acelerei. Um rugido alto e gutural saiu do motor, junto a uma torrente de fumaça negra que saia do escapamento. Fechei a porta, coloquei o cinto, tendo em mente que velhos hábitos nunca morrem, engatei a primeira marcha e sai devagar, com o sol refletindo sobre o teto negro e sujo de poeira do carro.
A visão ao meu redor era desoladora. Casas e prédios inteiros estavam destruídos, alguns depredados pelos vândalos na época em que “a coisa” havia se espalhado, gerando pânico. Outras nada mais eram do que o resultado do que alguns achavam ser uma espécie de vírus. Cientistas do mundo inteiro, pessoas importantes, creio eu, tentaram isolá-lo, evitar a propagação em massa. Usavam trajes de contenção para examinar os “infectados”. Leitos de hospitais, salas escolares e outras repartições publicas foram transformados em unidade de terapia intensiva. Um regime de quarentena foi implantado e ninguém entrava ou saia da cidade. Muitos relembraram o acidente com o césio 137, em setembro de 1987, mas no fundo a maioria sabia que o que teríamos de enfrentar futuramente seria algo bem pior, de proporções catastroficamente maiores.
Dirigi devagar, deixando que as lembranças se dissipassem em minha mente, passando por uma rua apertada que dava, por fim, em uma grande avenida. A Avenida Anhanguera, por onde passava a antiga linha de ônibus, que atravessava a cidade, de uma ponta a outra. Dos coletivos nada mais havia sobrado, há não ser pó. Cinzas grudadas pelo calor das chamas aos contornos metálicos dos ônibus queimados. Uma grande fileira de cadáveres metálicos. Alguns corpos ainda estavam dentro dos ônibus, carbonizados, misturando-se ao ferro derretido, sentados sobre as poltronas queimadas, tranquilamente, como se esperassem pacientemente pela morte iminente. Havia crianças também. Uma delas estava deitava sobre os braços da mãe. Seus contornos ficaram quase irreconhecíveis. O maxilar proeminente caia por sobre o queixo, exibindo uma fileira de pequenos dentes bem cuidados. Era o único detalhe que não havia sucumbido por completo ao calor das chamas. Em sua cabeça uma pequena e delicada tiara de plástico derretido separava os tufos de cabelos queimados. Desviei o olhar e segui em frente, com a imagem dos ônibus queimados e da garotinha com a tiara sobre a cabeça gravadas para sempre em minha mente.
Quando cheguei no posto de gasolina já passava das onze horas. O clima estava seco e ensolarado, não chovia há dias. Desliguei o carro, retirei o cinto de segurança e sai. Estacionara o veiculo ao lado da bomba de gasolina, planejando não demorar muito. Meus olhos ardiam pela falta de sono e o clima seco não ajudava.
Assim como em todos os outros lugares pelos quais eu já passara, o posto estava completamente deserto. Em um canto, uma bomba defeituosa deixava pingar álcool no chão em ralas gotas, formando pequenas, mas expressivas manchas sobre o relevo empoeirado do solo. A vitrine da loja de conveniências estava quebrada, partida ao meio pela força de um cadeira arremessada contra ela. As luzes no interior da loja estavam apagadas, o gerador provavelmente já consumira toda a energia armazenada e exalara seus últimos suspiros de vida, mergulhando o lugar na completa e perigosa escuridão. Um refugio ideal, mas não para mim.
Apressei-me e comecei a encher o tanto do carro, em uma das poucas bombas que ainda funcionava perfeitamente. Enquanto o tanque enchia, afastei-me alguns metros, deixando que uma réstia de sol que ultrapassava as telhas quebradas do posto me encontrasse. Tirei do bolso um surrado masso de cigarros e levei um deles até a boca. Do outro bolso tirei um isqueiro, já quase sem álcool e pressionei com força o botão metálico, junto a ponta do cigarro. Uma tênue faísca amarelada surgiu e sumiu da mesma maneira, misteriosa, antes mesmo que o cigarro absorvesse seu calor. Fiz outra tentativa, novamente sem sucesso. Ergui o isqueiro, irritado, contra o sol, apenas para comprovar o que eu já imaginara; O Álcool estava mesmo quase no fim. Sacudi o isqueiro, sentindo seus contornos metálicos aderirem a palma da minha mão soada como um inseto preso numa teia de aranha. Voltei a pressionar o botão, de leve, e dessa vez uma modesta, mas suficiente, chama irrompeu da ponta do isqueiro, enquanto eu permanecia pressionando-o, agora com um pouco mais de vontade. Levei-o rapidamente até a boca e apenas alguns segundos antes que a chama oscilasse e se apagasse por completo, consegui acender o cigarro. A sensação não foi, de modo alguma, prazerosa. O cheiro do cigarro era ruim e o teor elevado de nicotina deixava uma sensação de nauseante na boca. Antes mesmo de partir para a terceira tragada sentia como se estivesse mastigando um pedaço de papel queimado. A sensação de sujeira, especialmente na ponta da língua, era extremamente desagradável. Entretanto, eu precisava de algo para me apegar. Um refugio físico, uma distração fútil e sem sentido, mas ainda assim uma distração.
Inspirei a fumaça em duas ultimas e grandes tragadas, joguei a quimba do cigarro no chão, em um ponto bem distante das bombas de gasolina e voltei para certificar-me de que o tanque estava cheio. Desliguei a bomba e guardei a mangueira no suporte, ao lado do banco do frentista. O sol já começava a despontar no céu, com sua beleza irradiando o meio dia, quando pensei ouvir algo. Um nítido ruído de passos, de pés sendo penosamente arrastados pelo chão e que vinha do interior escuro da loja de conveniências.
Pensei em entrar no carro, dar meia volta e ir embora. Porém, minha curiosidade pecaminosamente burra, fora maior. E se houvessem outros? E se, além de mim, outros tivessem sobrevivido a praga? Então minha longa espera por ajuda não teria sido tão infrutífera quanto eu imaginara. Viver na completa solidão nas ultimas semanas não significava necessariamente que eu fora o único sobrevivente. Talvez outros também pensassem assim. Talvez, assim como eu, também se escondessem durante a noite e boa parte do dia, esperando pelo melhor e preparando-se constantemente para o pior. 
Enchi-me de coragem e caminhei devagar, até a porta da loja de conveniências.

Demorou para que meus olhos se acostumassem com a mudança brusca na iluminação. O lugar estava escuro. O pouco de luz que ultrapassava o buraco feito na vitrine incidia diretamente sobre o balcão no lado oposto. Ali a caixa registradora estava rudemente aberta, e as notas (algumas bem grandes) haviam sido espalhadas pela mesa do balcão e pelo chão sujo, grudadas a uma grossa camada de poeira. Um monitor antigo de computador estava jogado ao pé do balcão, com o vidro trincado num intrigante emaranhado de oscilações que se entrecruzavam, ao lado do teclado já desprovido de algumas teclas. Um suporte de metal caira sobre ele, esparramando os pacotes amassados de salgadinhos sobre o chão. Uma teia de aranha brilhava no canto, parcialmente desmanchada pela ação do vento e provavelmente já abandonada há muito pela sua dona.
- Olá... – Disse, procurando manter o tom calmo de voz. – Tem alguém ai?
Nada. Nenhuma resposta. Apenas o silencio monótono da devastação. Caminhei devagar por sobre os destroços, cadeiras empilhadas, pacotes de salgadinhos, refrigerantes estourados... Uma maquina havia sido quebrada com o impacto da cadeira que atravessara a janela e despejava para fora algumas latas de refrigerante quente, formando uma camada de “coca-colas”, “fantas” e “goianinhos” pelo chão. E as únicas cadeiras que não estavam completamente destruídas eram as que estavam grudadas ao chão, pelo suporte de metal que atravessava o solo. Apenas uma fileira de três, no Maximo quatro, em frente a TV de plasma que jazia, abaixo do suporte original do qual pendera e caira. Um emaranhado de poucos fios, amarelos, azuis e verdes, se desprendia do interior da TV, como cobras multicoloridas mortas, consumidas pelo horror da destruição.
- Olá... Tem alguém ai? – Repeti, tomando o cuidado de espreitar cada canto obscuro, mantendo a arma pressionada de leve sobre a cintura. Não percebi, durante um primeiro momento de adrenalina inconsciente, mas meus braços tremiam. Em parte por nervosismo. O receio do desconhecido aflora sentimentos que sempre tencionamos manter reprimidos. Por outro lado, deveria saber que tremiam, acima de tudo, por medo. Medo de não encontrar ninguém, medo de descobrir que todas as minhas esperanças haviam sido drenadas pela ação do tempo e do vírus mortal. Medo de ter de encarar a verdade. Medo de descobrir que eu fora o único sobrevivente de uma catástrofe global e que era apenas questão de dias, para que toda a raça humana se extinguisse comigo, em meu ultimo suspiro mortal.
- Oláááá... – Gritei, sem me importar que ouvissem. Que viessem todos eles. Que me atacassem e me destruíssem. Que acabassem logo com esse sofrimento mortal e me transformassem em um deles. Ao menos assim eu me enquadraria nas estatísticas e deixaria de lado essa vida monótona e sem sentido. Todos os meus amigos estavam mortos. Todos os meus parentes, primos, tias, pais, irmãos... Todos mortos e enterrados.
- DESGRAÇADOS! SEUS DESGRAÇADOS FILHOS DA PUTA! APAREÇAM MISERAVEIS! APAREÇAM E FAÇAM O QUE TEM DE FAZER...
Mais uma vez não obtive resposta. Enfim, parecia que eu me enganara e tudo não passara de fruto da minha imaginação. A solidão faz isso com as pessoas. Brinca com a mente. Provoca alucinações auditivas, visuais, as vezes as duas coisas. A solidão nos deixa loucos. Consome o pouco de sanidade que resiste bravamente as intempéries do tempo.

Apanhei alguns pacotes de salgadinho, tomando o cuidado de verificar a data de validade, e sai, encarando novamente o sol do meio dia que lançava ondas de calor por sobre o horizonte. Entrei no carro e voltei para casa, desviando dos corpos em decomposição largados no meio das ruas.

27 de Janeiro, 7:45.

Acordei de um sonho perturbado, precisamente as 03:00, sentindo que o silencio do lado de fora era estranhamente anormal. Geralmente eles gemiam, sons distorcidos, palavras inarticuladas que acompanhavam seus gestos desconexos. Mas naquela madrugada não havia nada daquilo. Nada que denunciasse a presença deles do lado de fora. Teriam evoluído? Teriam tomado as devidas precauções a fim de não denunciarem a presença deles ali? Seria possível? Será que em algum ponto, num canto obscuro de suas mentes perturbadas, eles ainda eram capazes de raciocinar em um nível mais elevado do que o simples “agir instintivamente?”. Não sei. Definitivamente, acredito que jamais obterei a resposta para essas perguntas. Isso me aflinge um pouco. Me torna impotente diante da situação. Preciso saber um pouco mais sobre com quê estou lidando. Mas como? O pouco de informação que me foi passado morreu, junto com as mídias jornalísticas. Minha fonte de conhecimento se limita a um emaranhado de jornais amassados e um caderno velho, com duas ou três paginas de anotações, que tão logo tomarei o cuidado de transcrevê-las nas linhas desse diário. A comida está acabando. Preciso voltar ao Supermercado.

29 de Janeiro, 22:50.

Depois de dois longos dias, 48 monótonas horas, eles voltaram a fazer barulho. Fui até a janela, devidamente lacrada com ripas de madeira e olhei por uma brecha. A luz fraca dos postes, que nunca se apagava, iluminava-os. Se juntaram em um pequeno amontoado de pessoas, espreitando as portas das casas, do lado de fora, caminhando com seu andar lento, vagaroso, quase hipnótico, desprovido de energia, mas extremamente enganado. Sussurram suas palavras desconexas, em tons de vozes guturais, que fazem o sangue gelar nas veias de qualquer ser humano normal. Seus rostos estão machucados, e a pele parece querer desprender-se do corpo. Alguns não tem braços, outros não tem pernas. Se arrastam pelo chão, deixando um rastro vermelho de sangue, como cobras venenosas prontas para dar o bote. Mulheres, crianças, adultos e idosos. Nenhum deles foi poupado pela praga. Vi uma antiga namorada entre eles. Estava, é obvio, muito diferente. Os olhos se reviravam nas orbitas, deixando a mostra apenas o branco da esclera. Seus braços estavam largados preguiçosamente ao lado do corpo, balançando como pêndulos de um relógio cuco defeituoso. Um grande corte varava seu peito, deixando a mostra os ossos, encobertos pela camada grossa de carne, rodeada pelo vermelho-escuro do sangue coagulado. Desviei o olhar, sentindo uma furtiva lagrima escorrer por sobre meu rosto e voltei para a cama. Não consegui dormir nessa noite.

5 de Fevereiro de 2012.

Recolhi todos os papeis e anotações sobre o caso. Acho prudente fazer um resumo despretensioso sobre os acontecimentos. Talvez possa ser útil, num futuro não muito distante.

Começou há quase um ano atrás, aproximadamente. Os primeiros casos surgiram no México, em abril de 2009. O surto da doença que ficou inicialmente conhecida como “gripe suína” matou mais de 100 pessoas no México, mas a estimativa era a de que já passava de 1.500 infectados em todo o mundo. No inicio não houve alarde e nem pânico, como era de se esperar. Afinal, a doença era “apenas” uma variante do vírus da própria gripe comum, que causava riscos para um grupo limitado de pessoas, e que matava menos do que o vírus da gripe comum. Entretanto, já na época, o Centro para Prevenção e Controle de Desastres dos Estados Unidos já havia avisado que era possível que esse “pequeno e controlado” surto desse origem a uma pandemia. Uma propagação da doença em escala global. O aviso não foi levado muito em conta pelas autoridades, mas no balanço que foi publicado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) na manhã de 8 de maio de 2009, o numero de contaminados era de 2.384 e o numero de mortes era de 42. E essa informação ainda não incluía o aumento de casos na América do Norte, América Latina e Europa.
Logo trataram de rebatizar a gripe. Chamaram-na de Influenza (H1N1), temendo a queda vertiginosa da comercialização da carne suína, apesar das insistentes campanhas para disseminar a informação de que a gripe não era transmitida pelo consumo da carne de porco. Os sintomas iniciais eram, assim como a própria gripe, comuns aos olhos desatentos; Febre repentina, fadiga, dores pelo corpo, tosse, coriza, dores de garganta e dificuldade respiratória. 
Já pela metade de julho, antes do São João, com o aumento exponencial dos casos, era comum ver pessoas com mascaras de papel, grudadas ao rosto, andando pelas ruas movimentadas. Campanhas educativas ensinavam que hábitos comuns de higiene, como lavar as mãos, usar lenços descartáveis ao tossir ou espirrar e evitar aglomerações ou ambientes fechados, ajudava a prevenir a contaminação pelo vírus. A doença atravessou as fronteiras éticas e morais, e até mesmo algumas organizações religiosas orientavam seus fieis a evitar abraços, apertos de mão ou qualquer outro tipo de contato físico, a fim de evitar a propagação do vírus.


Nesse estagio intermediário da doença, os grupos de risco foram os que mais sofreram. Gestantes, idosos com mais de 65 anos, crianças menores de 2 anos, doentes crônicos, asmáticos, pessoas com problemas cardiovasculares, portadores de doenças obstrutivas crônicas, com problemas hepáticos e renais, doenças metabólicas, obesos e pessoas com doenças que afetam o sistema imunológico. Foram os primeiros a sucumbir e também foram neles que surgiram os primeiros estágios da nova fase da doença, que disseminaria praticamente toda a população mundial de seres humanos.
Antes mesmo que os pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz terminassem o mapeamento genético dos primeiros vírus Influenza A (H1N1) no Brasil, a primeira morte pelo vírus mutacionado foi registrada. Um garoto de oito anos, numa cidade do interior goiano chamada Santa Clara. No inicio pensaram que era raiva. O garoto apresentava todos os sintomas; Náuseas, vômitos, mal estar moderado, espasmos musculares intensos da faringe e laringe. Porém, o quadro do menino não se desenvolveu como se desenvolveria se fosse raiva. Após aproximadamente dois meses de um tratamento intensivo e desgastante houve uma melhora gradual em seu quadro de saúde. O garoto chegou a recuperar os movimentos dos braços que haviam sido perdidos em uma fase intermediaria da doença e a capacidade de comunicação fora quase que plenamente restabelecida. Teria sido o segundo caso constatado no Brasil de um paciente que conseguiu sobreviver à raiva, o quarto no mundo. Entretanto, uma semana depois o garoto veio a falecer de causas misteriosas. A autopsia não revelou resultado conclusivo algum sobre o motivo da morte, apenas instigou ainda mais a curiosidade dos pesquisadores que descobririam resquícios de uma variante do vírus Influenza A nos nódulos linfáticos do garoto. O novo vírus mostrou-se bem mais “agressivo” do que o seu antecessor e com uma incrível facilidade de propagação. As autoridades responsáveis deram o sinal de alerta. A casa do garoto, assim como todos os lugares que ele visitara durante o período em que permanecera doente, foram isolados. Em meados de novembro o vírus já havia se espalhado e feito novas vitimas. No inicio de dezembro o numero de mortes já passava de 150. Mas foi só a partir do dia 23, véspera de natal, que a sociedade moderna como conhecemos começou a ruir. 
Lembro-me como se fosse hoje. Uma repórter de cabelos curtos e lisos, com o rosto excessivamente maquiado deu a noticia em um plantão extraordinário do jornal Anhanguera. Mais de cinqüenta túmulos haviam sido saqueados e no lugar onde deveriam repousar seus corpos se encontravam apenas caixões vazios, recobertos pela poeira dos cemitérios. Um inquérito fora instaurado para se descobrir os responsáveis por tais afrontas aos mortos. Em pouco mais de duas semanas já não havia mais repórteres trabalhando. O inquérito fora esquecido, deixado de lado diante do problema maior. As cidades estavam destruídas e a onda de pânico se alastrava pelo mundo. Os mortos estavam voltando à vida seguindo a premissa básica de sobrevivência. Buscando alimento e matando.

6 de Fevereiro de 2012.

É véspera do meu aniversário. Amanhã completo 27 anos. Metade do ultimo foi desperdiçado dentro dessa casa, escondendo-me dos mortos que caminham durante a noite. Ocultando-me sobre a camada superficial de proteção que conseguir erguer nos quatro cômodos que ocupo. Receio que ainda tenho muito ainda há fazer, se quiser permanecer sobrevivendo por pelo menos mais um ano inteiro. Meus dedos doem. Estão calejados devido ao excesso de trabalho. Tive que pregar mais uma vez as taboas nas portas e janelas, porque de noite eles sempre tentam arranca-las. Na maioria das vezes não conseguem, porque eu tomei o cuidado de grudar barrar de metal entre as ripas, reforçando a proteção. Mas eles são fortes. Os desgraçados são extremamente fortes e no dia seguinte, quase sempre preciso refazer o serviço. Recomeçar do zero. É um trabalho desgastante e enfadonho, mas é necessário. Acho que vou me mudar. Talvez não consigam me encontrar. Talvez um novo lar traga um pouco de paz e aconchego durante a noite.

7 de Fevereiro de 2012.

Acabei de voltar do Supermercado. A comida vem ficando escassa. O prazo de validade da maioria delas venceu e até mesmo a comida enlatada, cuja vida útil é bem mais longa do que a da comida comum, vem se tornando penosamente intragável. Pensei em montar uma orta nos fundos da casa, com o pouco de habilidade que tenho em se tratando da cultivação de legumes, mas acho que não seria uma boa idéia. O solo provavelmente está envenenado. Pelo pouco que sei, o vírus pode se espalhar de diversas maneiras, e o alimento é uma delas. Se você for mordido, se transformará em um deles. Se comer algo infectado, também se transformará em um deles. Se não morrer de fome, quando o estoque de mantimentos cessar por completo, ou mesmo se não enlouquecer antes disso, pode ser que morra de desidratação. Não chove há semanas e a água potável também está se tornando escassa.

22 de Fevereiro de 2012.

Depois de quinze longos dias, pouco mais de duas semanas, voltei a escrever em meu diário. Passei todo esse tempo distante das palavras pois estava ocupado, procurando um novo lugar para me esconder. Eles estão se tornando mais audazes, mais corajosos. Alguns já saem durante o dia. Provavelmente perceberam que o sol nada pode fazer contra eles, há não ser provocar uma incomoda ardência nos olhos. E creio que para eles, tanto faz. A maioria sequer ainda usa os olhos. Sentem a presença dos outros pelo olfato, pelo tato. Seus sentidos são extremamente aguçados e por Deus... Eu juro que ontem vi um deles correndo atrás de uma mulher. Ela também estava contaminada. Soube disso porque pude ver a espuma branca escorrendo dos seus lábios, por entre os dentes serrados de fúria. O homem atacou-a, sem piedade, sem se importar se era ou não da sua “espécie.”. Rasgou a carne do pescoço da mulher com os dentes extremamente afiados, como se cortasse um pedaço de papel com um canivete. Os dois rolaram pelo chão, com o sol queimando seus rostos manchados de sangue. A mulher cravou as longas unhas avermelhadas sobre o globo ocular do homem que urrou, mas não de dor. Eles não sentiam dor. Urrou de desapontamento. Em seguida foi a vez do homem revidar. Seguindo apenas seus instintos básicos de sobrevivência saltou por sobre a mulher, jogando o peso de seu corpo obeso sobre os contornos magros da outra. Os corpos de ambos chocaram-se contra o chão duro do meio da rua com um baque surdo, o homem gordo espremeu o corpo da mulher entre o chão e o seu peito, impossibilitando que ela se movesse mais do que deveria. Ergueu os braços, segurando os dela na altura dos punhos e cravou os dentes em seu rosto. Um enorme naco de carne saltou por entre seus lábios e o sangue esguichava do rosto da mulher feito tinta de um tubo de aerossol. Outra vez o homem gordo abaixou o rosto, investindo com fúria contra o da mulher. Dessa vez um dos seus olhos saltou para fora das orbitas enquanto ela se contorcia e se esperneava com o corpo preso pelo peso do homem gordo, impossibilitada de revidar. A cena se prolongou por aproximadamente 10 minutos. Nos últimos 5 a mulher já não existia mais. O que sobrara dela tornara-se irreconhecível. Apenas uma massa pastosa de carne, queimando em meio ao sol quente de verão numa cidade fantasma.

3 de Março de 2012.

Estou infectado.

5 de Março de 2012.

Foi ela. A ex namorada com o corte varando o peito e os olhos revirados nas orbitas. Eles são espertos. Sempre foram. Me enganaram desde o inicio. Preciso ser rápido e escrever tudo antes que me encontrem. Eles sentem o cheiro dos seus. Sabem que estou aqui e sabem que não precisam esperar até que a noite chegue para me atacarem. Não se importam mais se estou ou não “limpo”. Sabem que estou fragilizado emocionalmente. São capazes de compreender isso e muito mais. Deus... Como pude ser tão burro? A doença não os impossibilitou de agir como humanos racionais, apenas limitou suas capacidades intelectuais. Preciso me esconder e terminar antes que a noite chegue. Receio que já tenham descoberto meu rastro e logo chegaram até mim, sedentos, ávidos por carne fresca.

5 de Março, 21:35.

Aconteceu ontem de madrugada. E só existe uma única explicação plausível. A idéia surgiu em minha mente como um clarão de luz que ofusca os outros pensamentos. Ela me encontrou no posto de gasolina. Era dela o ruído de pés movendo-se pelo chão. Sabia que se me atacasse ali, durante o dia, seria um alvo fácil para o revolver calibre 38 que eu carregava na cintura. Por isso arquitetou um plano. Se escondeu enquanto eu vasculhava o lugar, e num horrível momento de distração de minha parte esgueirou-se pela escuridão e arrastou-se para dentro do carro. Passou por sobre o vidro quebrado e se escondeu no banco traseiro. Não percebi nada de diferente porque minha mente estava vaga, dispersa, distante, alheia a tudo e a todos, com um único propósito em mente; Sobreviver até onde fosse possível.

5 de Março, 22:12.

Acordei as 3 da manhã, assustado, sentindo o toque frio de algo metálico em meu rosto. Levantei-me assustado, sentindo o coração acelerar dentro do peito, arfando de surpresa, procurando recobrar a lucidez o mais rápido possível. O colchão estava molhado. Lá fora a chuva caia em grossas gotas, misturando-se a poeira, manchando os telhados das casas de vermelho. Sobre a minha cama havia uma enorme goteira que deixava a água da chuva me atingir em cheio o rosto. Suspirei aliviado, levantei-me, calcei o par de velhas havaianas e fui até a cozinha. Abri a geladeira e apanhei a jarra de suco de laranja. Enchi um copo e tomei o liquido de uma vez, fazendo-o descer frio e sem rodeios pela garganta cansada. Sentei a mesa, abaixei a cabeça e levei um dedo indicador tremulo até a têmpora direita. Uma veia latejava constantemente, e ali a dor era demasiadamente desconfortável. O ruído de um trovão soou distante, e por um momento pensei ter ouvido o rugido manso de um cão de rua sendo acuado. Não... Claro que não! Deveria ser minha imaginação, mais uma vez pregando peças. Não podia me dar ao luxo de divagar sobre isso. Não as três da manhã com a cabeça quase explodindo de dor.
Fui até o armário e vasculhei, em busca de algo que pudesse ao menos minimizar a dor. Encontrei dois comprimidos de dorflex. Abri o lacre metálico que envolvia os comprimidos e joguei ambos goela abaixo, acompanhados com um longo gole de suco de laranja, direto da jarra. Queria que surtissem efeito imediato. Queria que a dor passasse e eu pudesse voltar a dormir, tranqüilo, dessa vez longe da goteira que pingava em meu rosto. Mas sabia que não funcionava assim. Sabia que precisaria de tempo até que o remédio surtisse efeito, se é que realmente surtiria.
Caminhei até a sala e larguei meu corpo cansado sobre o estofado do sofá. A dor era tanta que eu sentia o mundo girar. Pequenos círculos amarelos pontilhavam o ambiente ao meu redor, como fogos de artifícios espalhando uma fraca camada de luminosidade pelo ar. Fechei os olhos e procurei descansar. Não demorou para que eu ouvisse o ruído dos pés. Arrastavam-se devagar e preguiçosamente, do lado de fora da casa, quase sem fazer ruído. 
Levantei-me e fui até a janela. Espiei por uma das frestas e os vi, parados, há aproximadamente três metros da entrada da casa, sobre a calçada. Dois homens altos e fortes. Estavam parados, apenas observando a porta da frente com seus olhares vazios e sem significado. Do canto da boca de cada um deles escorria um pequeno filete de baba, que logo sumia, apagado pela força das gotas da chuva que açoitavam seus corpos com força. Seus braços estavam largados ao lado do corpo e nenhum deles arriscava a fazer qualquer tipo de movimento. Pareciam petrificados, absortos em seus próprios pensamentos delirantes, encarando a porta a frente deles. 
Fui até a cômoda e peguei a arma. Tirei as balas do bolso da calça e recarreguei o tambor. Voltei até a janela e com mais uma olhadela atenta vasculhei o exterior da casa. Nada. Nenhum outro ser vivo, ou morto. Apenas os dois homens, parados a luz dos postes, com seus corpos em decomposição encharcados pela água, encarando a porta. Caminhei até a porta, e respirando fundo, girei aos poucos a maçaneta, tomando o cuidado de prender a porta parcialmente com o peso do meu corpo. Nenhum deles se moveu. Meu coração batia a mil por hora, quando percebi que um deles não tinha olhos. Apenas duas profundas covas no lugar onde deveriam estar os globos oculares. Reconheci-o quase que imediatamente. Era o homem que matara a mulher ainda naquela tarde.
Abri devagar a porta, me preparando para fechá-la ao menor movimento dos dois visitantes indesejados. Nenhum deles se moveu. Ergui ia arma e fiz mira. Procurei manter uma distância segura, pois sabia que era instintivo. Com certeza um deles tentaria me agarrar depois do que eu faria. Teria de ser rápido. Uma mão na arma, outra na maçaneta. Puxei devagar o gatilho, com o dedo indicador tremendo convulsivamente. Pensei que não conseguiria, até que ouvi o estampido, o clarão ofuscante saindo do cano do revolver e o tremor que jogou meu corpo para trás. Fechei a porta, antes mesmo de saber se havia ou não acertado o alvo. Esperei pelo ataque do outro, que não veio. Somente o eco do barulho feito pela arma reverberava dentro de minha cabeça. De resto, tudo era silencio.
Esperei alguns minutos, e antes de abrir a porta me certifiquei de que não havia risco em fazê-lo. Fui até a janela e vi o homem da esquerda, sem olhos, parado, encarando inconscientemente a entrada da minha casa. Ao seu lado, deitado no chão, repousava o corpo inerte do outro, com um grande buraco na testa e uma poça de lama rodeando a cabeça. Seus olhos estava abertos, numa expressão de horror indescritível.
Voltei até a porta e abri, mais uma vez, tomando o cuidado de revelar-me apenas parcialmente para o homem que permanecera em pé, fitando com impassividade a porta da minha casa. Nada. Nenhum movimento involuntário de espasmo. Era de se esperar que ao menos o ruído, o barulho gutural da explosão provocado pela arma o fizesse se mover. Mas nem isso aconteceu. Voltei a erguer a arma e fiz mira. Foi então que aconteceu.
Foi estranho. Principalmente porque eu jamais esperaria por aquilo. Enquanto fazia mira, procurando acertar entre os olhos do homem parado a minha frente, ele sorriu. Primeiro abriu os lábios devagar, quase imperceptivelmente. Aos poucos seu sorriso se alargou, repuxando os cantos da pele morta, deslocando um conjunto de caninos e molares do lugar. Logo o homem não apenas sorria. Gargalhava histericamente, com o eco de sua voz gutural invadindo meus tímpanos. Atirei. O tiro acertou em cheio sua cabeça. Entre os olhos, pouco acima das sobrancelhas, um pequeno ponto vermelho surgiu do nada. Suas risadas cessaram e ele jogou a cabeça para trás. Seu corpo cambaleou, involuntariamente, para logo em seguida cair de costas no chão, ao lado do outro amigo que agora jazia morto. Em seu rosto uma horrenda expressão de satisfação perfazia o sorriso exibido em seus lábios.
Admito que não tratei de examinar os corpos. Não me importava se estavam ou não mortos. Se sobreviveram ou não aos tiros desferidos a queima roupa. A única coisa que pretendia fazer era tirar o sorriso dos lábios daquele infeliz. Caminhei devagar, pisando na calçada suja de lama, sentindo o toque suave dos pingos de chuva sobre o meu corpo. Os dois estavam mortos. Agora eu tinha certeza. Não era precisava de um exame mais detalhado para me certificar disso. Mas apenas para ter certeza, finalizei o trabalho, dando dois tiros em cada uma das cabeças mortas na minha calçada. Porém, nem assim consegui tirar o sorriso sádico dos lábios de um deles.

Voltei para dentro da casa e fechei a porta. Guardei a arma na cintura e parei, perplexo, finalmente entendendo o motivo do sorriso sarcástico e cruel nos lábios do homem morto. Quando me virei a vi, parada em frente à porta que dava para o quarto. Seu corpo estava ligeiramente curvado, seus olhos revirados nas orbitas. A baba escorria dos seus lábios semi-cerrados, manchando a ferida no peito, que parecia ter aumentado consideravelmente de tamanho. O osso no fundo dela brilhava. 
Ela avançou para cima de mim, com um urro gutural. Ergui a arma e atirei. A explosão foi ensurdecedora. A bala acertou minha antiga namorada no peito, empurrando seu corpo para trás. Seus seios, outrora duros e inflexíveis, balançaram, pendendo moles como gelatina. Ela arqueou o corpo, se endireitando, e contra-acatou. Pulou sobre mim, conseguindo se desviar do segundo tiro, que passou apenas a alguns centímetros de sua cabeça e me agarrou pelo pescoço. Suas unhas longas e pontiagudas cravaram-se sobre a pele mole do meu pescoço, aprofundando-se. Gemi. Gritei de dor, procurando desvencilhar-me de seu abraço mortal. Soquei sua cabeça repetidas vezes, enquanto ela tentava a qualquer custo cravar os dentes pontiagudos sobre meu pescoço, na jugular, onde uma grande veia marrom transportava o liquido tão precioso para ela. 
Senti suas unhas se aprofundarem mais ainda em minha carne, e num gesto desesperado agarrei seu pescoço, procurando infringir o mesmo mal a ela. Era extremamente forte, mas no final das contas consegui fazer o nó em meu pescoço afrouxar. Joguei-a com força contra a parede, ouvindo o horripilante ruído que alguns de seus ossos frágeis fizeram ao se quebrarem. Mergulhei sobre a arma, largada no chão, levantei, quase que ao mesmo tempo que ela, fiz mira e atirei. 
Nada. Nem o ruído ensurdecedor, nem o clarão característico da bala sendo expelida para fora do cano. Apenas o “clic” metálico do gatilho sendo pressionado. Não me restavam mais balas.
Aproveitando-se de minha distração fatal a mulher pulou por sobre mim. Seu corpo cresceu e me envolveu. Num único e rápido movimento seus lábios se cravaram à pele frágil do meu pescoço, arrancando um grande naco de carne. Gemi novamente de dor, sentindo seus lábios passeando por sobre a carne do meu pescoço, sugando-me vorazmente o sangue. Ergui a arma e com a coronha da pistola soquei sua cabeça. Uma... Duas... Três... Repetidas vezes, até sentir que seus ossos se decompunham, transformando-se numa massa pastosa e brilhante de carne podre. Senti seus dentes afrouxarem e seus braços me largarem. Matei-a dessa forma, com a fúria instintiva que tentara a qualquer custo evitar. E agora estava contaminado. Era um deles e não tinha sequer uma bala para dar um tiro na própria cabeça.

6 de Março, 03:00.

Acho que tenho que me despedir por aqui. Eles estão lá fora, batendo nas portas e janelas. Poderia ficar e resistir, até me transformar em um deles. Mas receio que isso seja algo inaceitável. Portanto prefiro encarar meu destino. Tenho uma corda grande e forte. Acho que é o suficiente. Se alguém, por ventura, sobreviver e encontrar esses relatos, saiba que tentei... Por Deus! Juro que tentei.

FIM

2 comentários:

  1. Caaaaaaaaara!!!! Isso daria um ótimo filme de carnificina rs

    Particularmente n gosto de zumbis e carnificna, mas seu conto está muito bem estruturado, bem escrito e gostei de boa parte dele (morri de nojo nas descrições, mas a intenção era essa rs)

    Quando vi o nome do virus, poxa... Eu poderia ser uma dessas "zumbestas" agora! Meu irmão e minha cunhada tiveram H1N1 e quando tive meu filho (em dezembro de 2009) uma das mulheres que estavam no quarto comigo tinha ficado internada durante a gravidez por causa disso... Todas ficamos revoltadas porque ela ainda não estava 100% e o hospital a tinha posto junto com a gente, correndo o risco de infectar no minimo mais 14 pessoas...

    Parabéns pelo conto.

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  2. Fico feliz que tenha gostado Engel. Procurei mesclar alguns fatos reais com a parte de ficção, pra dar mais verossimilhança ao texto. O H1N1 caiu como uma luva, porque o conto foi escrito na época em que as pessoas estavam amedrontadas com a possibilidade de uma epidemia global.

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