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segunda-feira, 13 de maio de 2013

Lírio

Por: R. Giraldi


 Em cima de um muro, num lugar escuro, foi onde eu a encontrei. Um único poste iluminava o lugar, eu mal conseguia ver seu rosto. Era pequena, braços e pernas miúdas. Estava sentada no alto do muro, balançando os pezinhos. A pouca luz me revelou cabelos castanhos, olhos gentis e um sorriso brincalhão. Olhei-a. Meus olhos miravam seu rosto, estava quase à minha altura, Senti um arrepio na espinha, não era normal uma menina daquele tamanho, sozinha num lugar como aquele.
    Abri a boca, mas palavra nenhuma me veio a mente para falar, eu realmente não consegui pensar em nada.
    "Boa noite" ela me disse fechando os olhos e sorrindo.
    “Quem é você?” tentei perguntar.
    Ela abriu seus olhos, ainda agitando os pés.
     "Alguém", respondeu-me.
     Desci meus olhos por seu corpo pequeno. Ela tinha a pele muito branca e manchas de sangue nas pernas.
    “Quer ajuda?” Perguntei. Ela sorriu mais uma vez.
    "Não. Quero um amigo. Brinca comigo?"
    Emudeci.
    Arrisquei um passo à frente, meus olhos já estavam se acostumando com a baixa luz. Seu rosto ganhou um pouco mais de forma diante de meus olhos; era redondo e branco, sendo os lábios, igualmente, mas o que me chamou atenção foram marcas escuras em suas bochechas, como se fossem hematomas. Não só no rosto. Nos braços e pernas também. Alguém a feriu, definitivamente.
    “Sangue.” gaguejei. Eu não conseguia articular as palavras, o que estava acontecendo comigo?
    " Eu gosto de brincar de esconde-esconde, você gosta?"
    Apenas a olhei. O que ela estava falando?
    “Quem é você?”
    "Eu esqueci! Não lembro meu nome, qual é o seu?"
    Soprei meu nome pra fora da boca, nem ao menos percebi que o tinha pronunciado, estava paralisado.
    Despertei com uma risadinha tímida. Ela ria cobrindo a boca com as mãos.
    "Nome engraçado! Quer ser meu amigo?"
    Respondi que sim com a cabeça, afinal, o que mais eu poderia ter feito? Ela sorriu outra vez; aquele sorriso que me fascinava e aterrorizava ao mesmo tempo. Uma perfeita combinação de temor e admiração me abalavam quando via seu sorriso. Era como ver um anjo sem asas jogado no lixo. Ao menos na minha mente era assim que a enxergava.
    Lixo é o que aquele lugar era. Lixeiras por toda parte e ela ali, descalça, agitando seus pés pequenos em meio à ratos e cacos de vidro.
    Meu coração estava acelerado e eu não parava de suar. Meus olhos estavam travados nela, meus lábios tremiam.
    Senti sua mão tocando meu rosto. Como quem acorda de um sonho, assustei-me: não tinha reparado o quão perto dela eu estava. O toque da sua mão me deu uma sensação de tristeza e vazio. Não senti calor ou frio. Senti nada.
    " Você parece triste, não fica assim. Eu to aqui com você agora."
    Suas palavras acertavam meu coração como uma bala; desestabilizavam minhas pernas e me faziam quase cair.
    “Eu não vou ficar triste”, disse à ela.
    "Você fica bem melhor quando sorri."
    Eu nem tinha percebido meu sorriso. Ela continuou:
    "Me dá sua mão?"
    “Minha mão?”
    "Sim, me deixa segura-la?"
    Levantei a mão para ela.
    Segurou minha mão com suas duas mãos. Olhou para mim.
    "Obrigada!"
    “Pelo quê?”
    "Por não me deixar sozinha, por ter sido meu amigo."
    Soltou minha mão gentilmente. Seus dedos deixaram em mim marcas de sangue.
    Lentamente, ela tirou de um dos bolsos uma flor e a estendeu; era um lírio, vermelho e murcho.
    “Claro que sou seu amigo”, disse.
    "Eu sei que você é. Amigos dão presentes, certo? Isso é tudo que eu tenho, fique com ele, por favor."
    Segurei o lírio e o fechei na palma da mão. Pensei em dar algo a ela, mas o que? Procurei nos bolsos e achei uma barra de Lolo que ainda não tinha comido.
    “Eu só tenho isso.” Entreguei a barra a ela.
    "É meu favorito! Macio e doce, do jeito que uma criança gosta."
    Também é meu favorito.
    "Obrigada"
    Sorriu outra vez, me fazendo sentir um pesar muito grande. Um pesar e uma dor, como saudades. Tudo à minha volta escureceu, só conseguia ver o rostinho dela. Tinha o pressentimento de que nunca mais voltaria a vê-la.
     “ Ela também sente sua falta”
    "O que?" Perguntei. "Quem?"
    “ Sua filha.”
    A escuridão cobriu tudo; não vi mais nada, não a senti mais. Escuro.

    Acordei. Estava deitado em minha cama, no meu quarto. O sol entrava pela minha janela. Foi só um sonho. Senti uma dor no coração. Saudades. Sentei-me na cama e tudo que conseguia pensar era naquele rosto feliz com corpo torturado. Esfreguei a mão no rosto e me arrepiei ao sentir cheiro de flor nas mãos, cheiro de lírio talvez?
      “Não foi um sonho?”
     Lágrimas escorreram timidamente dos meus olhos. Pulei da cama. Tinha vontade de correr até aquele beco, encontrá-la, gritar por ela. Queria vê-la sorrindo pra mim outra vez. Mas não fui, nem ao menos lembro onde a vi, ou se a vi. Desde de que perdi Vanessa vejo e ouço coisas, principalmente ligadas à crianças. Esta seria apenas mais uma dessas visões, ligadas ao meu sentimento de culpa pela morte da minha filha? Olhei mais uma vez para a palma da minha mão.
    Sentimentos de culpa não costumam ter cheiro de lírio.
    O dia passou lentamente, um dia ruim para mim. Liguei a televisão para tentar pensar em outra coisa e então recebi a noticia: Noite passada, uma garotinha de 8 anos fora violentada; morrendo no hospital, naquela mesma madrugada. O noticiario exibiu uma foto e um nome: “Bianca”, e a foto, era exatamente como a menina da noite passada, principalmente o sorriso.
Sua mãe disse num depoimento que em suas últimas palavras, a menina disse que sentiria falta do novo amigo dela, apesar de não ter ideia de quem ela falava.
    Meu corpo todo se arrepiou como se minha coluna estivesse totalmente congelada. O que foi aquilo tudo? Um fantasma? Talvez o espírito da garota, que tinha muito medo de morrer sozinha?
    Não sei dizer se foi real, mas naquela tarde mesmo, desci no centro e comprei um vaso com uma flor... Um lírio vermelho.
    As vezes eu olho para ele, converso... Tento não deixar mais a tristeza e a culpa me consumirem. Por Vanessa e por Bianca. Espero que estejam juntas agora...


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