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domingo, 19 de maio de 2013

O Caminho da Água


Desperto assustada com o inconveniente toque do telefone. O radio relógio me alerta de
quão tarde está e no fundo concordo com ele, mas minha consciência não me permite deixar de
atender. Tiro o fone do gancho e não ouço nada, ou quase nada, o som de água corrente é a
única voz ali. Espero mais alguns instantes e ninguém se pronuncia. Irritada pelo repentino
despertar não consigo mais pegar no sono, acendo então um cigarro e me sento à beira da janela
aberta. Sem nada especial em pensamento, apenas sinto a brisa morna me tocar o rosto enquanto
quase podia descrever o caminho daquela fumaça em direção aos pulmões, levando aos poucos
minha vida. Observo as poucas luzes acesas daquela imensa cidade que parece tão só na
madrugada. Depois de quase duas horas sem devaneios me deito e espero pacientemente pelo
sono que se recusa a vir.
Como em varias outras noites o telefone toca e leva meu sono sem cogitar devolver. O
som da água em todas as chamadas que parece ser o único a querer me dizer algo garante que
eu não desligue o cabo do telefone. Sendo já um costume, quase um ritual, me ponho à beira da
janela com o cigarro aceso. Prometo mais uma vez abandonar o fumo, tendo sã consciência que
ele acaba comigo, mas ele insiste em ficar e ser um fiel amigo. Desta vez a cidade não tem
minha atenção já que noto um vulto escondido no breu sob um poste defeituoso do lado aposto à
minha janela. Contemplo a desconhecida silhueta entre as sombras tentando adivinhar seu rosto,
seu corpo e seus porquês. Fecho então a janela e desço à passos apressados, saio pela porta da
frente do velho sobrado e vou sem nenhuma discrição até abaixo do poste sem luz. Não
encontro ninguém, nem pessoa, nem sombra. Volto frustrada pra minha cama fria onde apenas
espero o dia vir.
Por incontáveis noites os acontecimentos que narro se repetem, decido então tomar
outras estrategias para descobrir quem é o indivíduo que me aplica trotes tão estranhos. Quando
o telefone volta a implorar por atenção atendo normalmente, mas não me dou ao trabalho de
ouvi-lo, deixo-o fora do gancho e desço lenta e silenciosamente as escadas. Rangidos naturais
daquela madeira já antiga denunciam minhas intenções. Quando me vejo mais uma vez sob o
poste sem luz, estou sozinha outra vez. Volto outra vez para cama, mais uma noite sem
respostas. Me deito e decido abandonar os planos de descoberta, assim como o sono me
abandona diante da vinda dos primeiros rios de sol.

Antes de me deitar, desconecto o fio do telefone e imagino que esta seria uma noite de
sono, depois de tantas sem o ele. É incrível como a mente humana é capaz de criar ilusões. Não
me lembro bem quando levantei, mas logo me pego na rua silenciosa e escura. Caminho
devagar até o outro lado. Há alguém sob a inexistente luz do poste. Alguém me espera ali. Já
estou próxima quando a “sombra” se põe a correr me deixando mais uma vez sozinha. Então me
vem a ideia de que ele queira dizer algo. Ideia que não levo muito tempo para confirmar. Uma
vez de volta à meu quarto encontro recado sobre minha cama desforrada. Escrito com letras
grandes naquela papel amarelado, sujo e molhado: Ouça quem lhe fala. Faço uma bola com o
recado e jogo pro lado. Tento dormir, em vão, é claro.

Tantas noites sem dormir acabam com minha disposição, decido então mesmo depois de
um exaustivo dia de trabalho, encontrar o maldito que me liga e não tem ao menos coragem
para falar. Desta vez não desligo o cabo, apenas me deito e fico pensado naquele recado. Ouvir
quem? Não gosto de enigmas, e não pretendo perder muito tempo com este. Como espero o
telefone não tarda a tocar, desço em disparada, já sabendo que não poderia esconder minha
presença. Já à rua vejo alguém fugindo sob as sombras noturnas dos sobrados. Corro atrás, é
uma noite fria, só então me dou conta de que estou somente com uma fina camisola. Quase
alcançando-o estaco repentinamente e observo o chão ao meu redor. Quase posso contar o
tempo que meu coração incrédulo se recusa a bater. Está ali todas a noites, está ali desde que me
mudei pro sobrado pra esconder meus erros. Água. Não se tratam de poças e sim uma corrente
vinda de algum vazamento, mas em nada aquilo me assusta e sim as lembranças que traz.
Desejo acordar daquele terrível pesadelo. Alguém que conhece meu passado e sabe do meu
ultimo crime está fazendo aquilo. Parece não haver espaço para arrependimentos.
Lembranças daquela noite fria invadem minha mente, sinto o vento gelado me castigar.
Revejo a cena passando no turvo reflexo abaixo de mim. Vejo outra vez aquele sangue
manchando o nobre caminho da água. Uma vida banal, um motivo banal pra destruí-la. Quase
posso sentir aquele mesmo punhal cravando-se em mim pelas costas , fazendo a água levar meu
sangue e minha vida. Meu corpo todo treme, me dou conta de que dor é real, que o sangue é
real. Caio de joelhos no chão ladrilhado, aquela mesma cena se repete seguidamente, posso ver
em câmera lenta um punhal penetrando uma pele macia que logo perde o brilho da vida.
Repentinamente meu corpo se torna mais pesado e logo me vejo involuntariamente deitada na
água fria que tenta em vão aliviar minha dor. Não existe alivio para dores na alma. Fecho os
olhos e espero, minha divida está paga.
Desperto repentinamente por sobre a água que já não molha mais meus pés agora.

2 comentários:

  1. Uau Vinicius, ficou muito bom! Adoro contos desse tipo e adorei tudo que vc escreveu até hoje e tive a oportunidade de ler. bjs

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