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quinta-feira, 23 de maio de 2013

O Homem dos Sonhos (I) - Corra!



O centro de todas as grandes cidades é sempre apinhado de gente andando em blocos por todos os lados, todos preocupados com seus trabalhos que consideram tão importantes, seja pela soberba onde as pessoas se colocam uns acima dos outros, seja pela importância de pagar contas no final do mês que os faz aturar trabalhos degradantes e humilhantes.
Naquele momento, entretanto, tarde da noite, o centro da cidade se encontrava deserto. Não havia sequer uma viva alma para ser vista ao longo das ruas estreitas dos prédios antigos, datados da época do Império. Nem mesmo as prostitutas, mendigos e outros marginalizados pela sociedade, tão facilmente encontrados neste cenário noturno podiam ser vistos, como se fosse um momento fora da realidade, um sonho.
Mas o que Frederico vivia naquele momento estava mais para um pesadelo!
Cambaleando pelas ruas da cidade, rastejando com um tornozelo torcido, seu terno rasgado e sujo pelas várias quedas ao longo de sua fuga. Um único pensamento em sua mente. “Corra!” E é isso que ele tentava fazer desesperadamente enquanto gritava por ajuda tendo como única resposta o eco das ruas vazias.
Ele estava próximo. Podia sentir. Temia olhar para trás mas sabia que ele estava logo atrás.
A garganta já ardia de tanto gritar por socorro. Mas já não emitia nenhum som. A única prova de sua existência eram os passos reverberando no chão molhado.
O tornozelo latejava, e Fred muitas vezes precisava se apoiar nas paredes dos prédios históricos por onde passava para não cair, de novo. Não podia se dar ao luxo de cair de novo. Se caísse de novo, ele o pegaria, e se isso acontecesse sabia que seria o seu fim.
Em meio a grande praça, a silhueta de uma pessoa apareceu ao longe, próximo a um poste de luz fosca. A alegria dessa visão fez brotar lágrimas em seus olhos e a visão ficou turva. A esperança deu-lhe forças e até anestesiou a dor enquanto atravessava o grande espaço aberto tão rápido quanto lhe era possível.
Mas a esperança aos poucos foi se esvaindo e se transformando em um desespero pesado na boca de seu estômago conforme os passos desequilibrados foram se multiplicando, mas a distância parecia diminuir nem um milímetro sequer.
A imagem de seu salvador foi ficando borrada. Fred achava que era por causa das lágrimas que insistiam em escorrer pelo seu rosto mas conforme se aproximava aos poucos a forma foi tornando-se mais difusa. Próximo do limite da luz do poste que a iluminava percebeu que não era uma pessoa, apenas um jogo de luzes que o enganou em sua aflição.
Neste momento, quando a ilusão se desfez, o tornozelo latejou novamente pela sua perna com força total, fazendo-o tropeçar e cair no meio da praça. Ele sentiu-o as suas costas. Podia ouvir seu sorriso, mesmo ele não emitindo qualquer som, um sorriso viscoso que escorria pelos ouvidos causando arrepios em sua nuca.
Fechou as mãos raladas, apoiando-as no chão irregular e virou-se lentamente, o medo pesando em seu peito. Viu o homem de pé, vestido com um agasalho de capuz. Não era possível ver seu rosto, mas tinha certeza de que ele sorria seu sorriso viscoso, recheado do prazer por vê-lo assim, tão vulnerável caído no chão.
Ele viu o homem erguer o braço e o brilho da faca em sua mão. Respirou fundo e fechou os olhos conforme ela caia de forma violenta, um grito sem som preso em sua garganta.
* * *
Fred abriu os olhos, sua respiração acelerada, seu coração batendo tão forte como um tambor em seus ouvidos. Demorou alguns minutos para perceber onde estava. Em sua cama, em seu quarto, em seu apartamento.
Levantou-se e foi até o banheiro, tentando controlar a respiração. Só começou a se acalmar após jogar uma água no rosto e olhar-se no espelho.
Um pesadelo.
Fora apenas um pesadelo.
Sentia-se um idiota por perder tanto o equilíbrio por causa de algo tão bobo quanto um sonho, como se fosse uma criança assustada, mesmo que já a muitas noites não dormira bem.
Ao voltar para o quarto, olhou para o relógio no despertador do lado da cama que mostrava em letras vermelhas brilhantes que ainda eram por volta de três e meia da manhã. Só de olhar para a cama, um arrepio corria por sua espinha, como uma reminiscência do pesadelo escondida em um canto escuro de sua alma pronta para saltar a qualquer momento, bastando que ele baixasse a guarda. Chegou a conclusão de que não conseguiria voltar a dormir e se era assim era melhor aproveitar o tempo e começar seu dia.
Preparou um café bem forte, tinha a certeza de que precisaria para se manter ao longo daquele dia. Sentou-se na mesa da sua sala para rever os autos do processo em que estava trabalhando. A sala, assim como todo o apartamento era simples e funcional, sem decorações ou fotografias. Demonstravam a casa de alguém que vive para o trabalho e não passa tempo suficiente naquele ambiente a ponto de torná-lo um lar. A única marca clara de que alguém vivia naquele ambiente de forma regular eram as pastas e mais pastas de documentos dos processos em que trabalhava espalhadas por cada cômodo.
O réu fora acusado de estuprar e matar sete mulheres, três delas menores de idade, e essas eram apenasas que foram descobertas. Poderiam haver muitas outras. E haveriam muitas outras se ele não conseguisse fazer seu trabalho no fórum neste dia. Como promotor, era seu trabalho impedir que essa escória andasse pelas ruas. Fred dificilmente admitiria para alguém, mas o que o impulsionava não era determinação, mas o medo de que um desses monstros escapasse pelos seus dedos.
* * *
Foi um dos primeiros a chegar ao fórum naquele dia. Quando sua secretária entrou, ele já estava revisando seus documentos pela terceira vez.
- Bom dia, Doutor Frederico.
- Bom dia, Alícia.
- Já vi que não está com uma cara muito boa. Dormiu bem?
- Nem comece. - Respondeu sem levantar os olhos dos papéis. - Pegue pra mim os testemunhos dos policiais que prenderam o estuprador e faça mais um café porque o que eu fiz já acabou.
- Mas já? Assim o senhor vai se matar. Aposto que não comeu nada. O senhor é muito jovem para arrumar uma úlcera.
- E você é muito jovem para ser minha mãe, não acha. - disse enquanto apertava os olhos.
Alícia não disse mais nada. Fez o café e o serviu junto com um analgésico.
- Tome. O senhor sempre fica com dor de cabeça em casos que envolvem menores, não é? - ela disse em uma voz mais apaziguadora.
- Obrigado. - tomou o remédio com um gole de café antes de responder. - É verdade. Não durmo direito a dias, e essa noite ainda tive aquele sonho esquisito.
- Sonho? Com o que?
- Nada. Não deve ser nada. Apenas bobeira. Agora deixe eu revisar isso aqui porque não quero deixar nenhuma brecha para a defesa poder livrar esse canalha.
* * *
Fred estava muito satisfeito. O estuprador pegara a pena máxima. Ficou tão satisfeito que até topou quando o pessoal da promotoria o chamou para um chopinho depois do expediente a fim de comemorar.
Um chopinho levou a outro, e a outro. Quando viu, já era de madrugada. Ele se despediu de todos e foi pegar o seu carro que deixara em uma rua próxima.
Caminhava calmamente, evitando as poças d'água que se formaram com a chuva que castigou a cidade no final da tarde. Assobiava alegre por mais um trabalho bem feito quando percebeu algo estranho no ar.
Em um primeiro momento ele não conseguia discernir o que havia de errado, o mundo parecia o mesmo conforme olhava ao redor, os mesmos bares, os mesmos carros estacionados. Só percebeu o que estava diferente quando se deu conta do silêncio. Não havia mais ninguém na rua, mas tinha certeza de ter visto pessoas apenas alguns segundos atrás. A luz e a música dos barzinhos também havia desaparecido como por encanto.
Virou-se para continuar seu caminho em direção ao carro acelerando o passo quando tropeçou em algo de repente, como se um obstáculo tivesse surgido do nada, atirando-o ao chão. Tentou se erguer, mas sentiu uma dor atravessando sua perna e sabia que o seu tornozelo estava torcido.
Gemendo de dor, apoiou-se com as mãos machucadas no chão de pedras portuguesas e viu um homem de agasalho de pé ao seu lado lhe mostrando seu celular. O homem o jogou no chão e pisou forte sobre ele, espatifando-o.
Fred não sabia o que percebera primeiro. Se o brilho ofuscante da faca, ou o som viscoso do sorriso do agressor. Ainda tentou argumentar, perguntava quem ele era, porque estava fazendo isso. A única resposta veio em uma voz amarrotada e úmida:
- Corra!
E com o medo explodindo em seu peito foi o que ele fez.

3 comentários:

  1. Opa! Quem será o perseguidor de Frederico e onde pretende levá-lo? Aguardo a continuação desta história que começou muito bem!

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    1. Oi Ana,
      Pensei que o destino de Frederico estivesse óbvio, mas sabe que a sua questão me deu ideias? :)
      Obrigado pelo elogio. :)

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  2. Interessantíssimo! Adorei a estrutura do texto. Me lembrou a faixa de Möbius. rs

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