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segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Miyabi Doll

  
     Havia a muito tempo atrás, uma rica família, que vivia numa casa muito grande. O homem era um comerciante, casado com a filha de um fazendeiro. Eles tinham dois filhos: O mais velho se chamava Kameo e a mais nova, a princesinha da casa se chamava Okiri. 
     Os irmãos eram muito ligados; Kameo passava horas brincando com a irmã, sempre que podia. Quando atingiu certa idade, seu pai começou a leva-lo para o trabalho com ele, para que o garoto aprendesse os negócios da família o quanto antes, deixando a pequena sozinha a maior parte do dia. As vezes, Kameo e o pai chegavam em casa muito tarde, e a menina já tinha ido dormir. 
      Numa manhã, Okiri acordou e viu uma carta ao seu lado; era dos eu irmãozão. Ele tinha deixado para ela na noite passada. Na carta ele dizia o que estava fazendo no trabalho e como sentia a falta dela. Okiri ficou tão feliz que resolveu fazer o mesmo e deixou uma cartinha para ele, sobre a cama dele. A troca de cartinhas virou costume, e assim, mesmo não se vendo tanto, Okiri não se sentia tão sozinha.
      Infelizmente, em 1932, aos 8 anos, Okiri ficou muito fraca por causa de uma doença misteriosa que medico algum sabia dizer o que era. Kameo tentava passar o maior tempo possível com a irmã, sempre lhe dizendo que logo ela ficaria bem. Mas ele sabia da verdade, não havia cura para Okiri e a cada dia, ela ficava pior, mas nunca deixava de sorrir, sempre que o irmão chegava em casa.
      Alguns meses depois, a criança morreu. Seu corpo foi cremado junto com todas as cartinhas que tinha do seu irmão. A família ficou muito triste; a mãe chorava muito, o pai passou a beber e o irmão, ficava horas sozinho, lendo e relendo as cartinhas deixadas pela irmã, onde contava o que ela fazia em casa o dia todo quando ele não estava.
      O quarto da menina continuava intocado, suas roupas e seus brinquedos e suas bonecas. Numa noite, quando estava sem sono, o rapaz teve a ideia de organizar as bonecas na prateleira. As bonecas eram feitas de madeira e todas vestiam quimonos muito bonitos. Com paciência,  Kameo arrumou todas as bonecas de modo que ficasse alinhadas. Quando terminou ele estava para sair do quarto quando resolveu dar uma ultima olhada nos quimonos da sua irmã e foi ai que ele teve uma grande ideia: iria contratar o construtor de bonecas para lhe pedir uma boneca que tivesse exatamente o mesmo tamanho de Okiri, com cabelos do mesmo comprimento e olhos de vidro, seria perfeito! Vestiriam ela com as roupas da garota, e ela seria imortalizada como uma verdadeira boneca, a maior de todas.

        No dia seguinte, o rapaz fez o pedido da boneca e em menos de um mês, lá estava ela: vestida e penteada como Okiri, de joelhos em uma almofada, cercada por todas as outras bonecas. Todas as noites antes de ir dormir, Kameo abria a porta do quarto e dava boa noite à boneca. Numa noite em particular, quando abriu a porta, notou que a cabeça da boneca estava numa posição um pouco diferente do que de costume. Ficou furioso; alguns dos empregados deve ter tocado nela. Entrou no quarto e arrumou-a como deveria ser. Quando estava saindo, notou que a mão dela movia-se lentamente, fechando e abrindo os dedos. Deu um pulo com o susto; olhou bem para a boneca, que não mais movia os dedos. Bobagem, pensou, fechou a porta e foi para o quarto.
       Quando foi deitar-se, viu que havia uma pedacinho de papel branco dobrado em sua cama. Abriu-o e era uma cartinha escrita com a letra de Okiri: " Kameo, não!". Ele tinha certeza que nunca havia visto aquela carta antes, talvez estivesse perdida e algum dos empregado a achou e colocou sobre sua cama para que ele pudesse guardar com as outras. 
         No outro dia, logo que acordou, Kameo encontrou outro papel dobrado sobre sua coisas. A letra também era igual a de Okiri, mas desta vez, parecia que havia raiva na escrita, as letras estavam maiores: " Eu não sou ela!".
         Amassou o papel com raiva, alguém estava brincando com ele. Se vestiu e saiu para ir trabalhar, e ao passar pela porta do quarto da irmã, ouviu um barulho lá dentro, como se fosse algo caindo no chão. Abriu a porta e viu a boneca grande caída. Com paciência, ajeitou-a na almofada como sempre. Foi até a porta do quarto, e pelo espelho, viu a boneca levantar o rosto e olhar para ele com seus frios olhos de vidro. Deu um grito e olhou para trás: a boneca estava como ele havia deixado. Olhou mais uma vez para o espelho... estava tudo ok. Trancou a porta do quarto da menina e levou a chave consigo para o trabalho.
        Naquela noite quando voltou pra casa, sua mãe lhe disse que os empregados ouviram barulhos estranhos no quarto dele durante a tarde. Ao entrar em seu quarto, Kameo se deparou com uma mensagem escrita na parede " Eu odeio aquela boneca! eu não sou ela!"
         Agora a coisa estava séria: ou alguém tava muito afim de morrer ou... Deu uns tapas no próprio rosto, por pensar bobagem. Com pano e agua, removeu a mensagem. Decidiu não dizer nada a sua mãe. Antes de dormir, foi olhar as bonecas. Tudo estava em ordem.
          Mais e mais mensagens começaram a aparecer para ele; em forma de cartas ou nas paredes. As vezes, os empregados ouviam barulhos e gemidos vindos do quarto de Okiri, até que, as mensagens começaram a aparecer pela casa. Kameo não podia mais esconder ou ignorar, quando as paredes da sala estavam cobertas de tinta preta e uma mensagem " Odeio aquela boneca!". Junto à frase, marcas de mãozinhas de criança. Um a um, os empregados abandonaram os patrões.
         A noticia se espalhou de que a filha dos Sato havia voltado para assombra-los e todos pareciam acreditar nisso. Todos menos Kameo e seu pai. Eles estavam certos de que tinha sido uma brincadeira de mal gosto de alguns dos empregados. A senhora Sato, no entanto não gostava nada disso. Numa tarde, ela implorou para o filho queimar a boneca, pois ela não estava deixando sua irmã descansar. A senhora Sato estava ruim da saúde, e o rapaz não queria piorar sua situação, então, decidiu se livrar da boneca naquela noite.
        Quando entrou no quarto, Kameo deu um pulo para trás: todas as bonecas pequenas estavam amarradas pelo pescoço, penduradas no teto. O coração dele acelerou ainda mais quando notou a boneca maior, de pé, no canto do quarto, com o rosto virado para a parede... na verdade, duas delas. No outro canto do quarto, estava uma segunda boneca, na mesma posição, com a mesma roupa e cabelos, exatamente igual.
         "Kameo" disse uma voz. " Qual delas sou eu irmãozão? Você sabe dizer? qual sou eu e qual é a impostora feita de madeira? Sei que sabe, não sabe?" uma risadinha de criança preencheu o quarto, e logo em seguida, a voz tomou um tom mais sério. " Não erre!".
          O rapaz estava apavorado de verdade agora; aquelas bonecas enforcadas sobre ele e aquelas duas bonecas no canto do quarto... e a voz de Okiri... Olhou para as duas: eram idênticas de costas. Fechou os olhos, tentou se concentrar e caminhou ate uma delas. Quando estava perto o bastante para toca-la, ouviu mais uma vez a voz: "Eu sabia que não iria me decepcionar. Obrigada Kameo, eu te amo" e então, a boneca a sua frente sumiu no ar. Soltou o ar que estava preso em seu peito e se deixou chorar.
          Do lado de fora, acendeu uma fogueira para queimar a boneca. Finalmente tinha entendido os sentimentos de Okiri,e poderia deixa-la descansar em paz agora. O fogo consumiu rapidamente o corpo de madeira. Porém, enquanto queimava, aqueles olhos de vidro, tão iguais aos dela, continuavam a olha-lo...


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Harvest Moon: a maldição


    Você já ouviu falar em Harvest Moon? costumava ser meu jogo favorito quando criança, na época do super nintendo. No jogo, você é um garoto da cidade que herda uma fazenda do seu avó, em uma cidadezinha chamada Mineral Town. O objetivo final do jogo é fazer com que a fazenda volte a ser produtiva como era antes, dentro de 3 anos ( em tempo de jogo). Nesse tempo, você pode plantar todo tipo de vegetais para vender, cuidar de animais, participar de brincadeiras e competições na cidade, fazer amigos, namorar e casar. Eu gostava dessa interação, dessa possibilidade de escolher como prosseguir no jogo, coisa que muitos jogos modernos hoje não oferecem. Claro, existem versões modernas e harvest moon, que continuam nos moldes antigos. Elas são ótimas, pelo que pude ver, mas ainda assim, eu sentia falta da versão que eu jogava no super nintendo. 
     Fiquei na vontade por tanto tempo que até esqueci, até um dia que um amigo meu me disse que um conhecido dele estava vendendo um super Nintendo por um preço muito baixo. Na mesma hora, a nostalgia caiu sobre mim e eu soube que era minha chance de voltar a jogar meus jogos favoritos, que infelizmente eu não tinha mais nenhum; meu console assim como meus jogos foram todos vendidos a muito tempo.
      Entrei em contato com o cara, marcamos de nos encontrar para fazer negocio. Cheguei a pensar que ele nem iria aparecer, ou que o console estaria em péssimo estado, mas para minha surpresa, estava muito bom; obviamente usado, mas inteiro. Por aquele preço, valeria a pena. 
      No caminho de casa, eu passei numas lojinhas no centro da cidade, onde é possível encontrar coisas eletrônicas antigas, entre elas, cartuchos de videogame. Encontrei alguns jogos interessantes, mas nada de Harvest moon. Fui para uma outra loja, depois outra e outra. Estava sem sorte. No entanto, em uma das lojas, a moça do caixa disse que poderia procurar esse jogo pra mim com o vendedor dela. Deixei meu telefone e fui pra casa, com esperanças.
      Para minha surpresa, no dia seguinte a moça da loja me ligou, dizendo que o rapaz que vende jogos pra ela achou uma copia desse jogo, ele levaria pra loja a tarde, o preço: 30 reais. Quase dei um grito de alegria no meio do escritório, mas me contive; esse jogo estava sendo vendido por 90 dólares no ebay, e 30 reais era um preço incrível.
       Eu esperava por um cartucho pirateado ou em péssimas condições, mas, de novo para minha surpresa, eu estava com sorte: o jogo era original, era quase novo. Comprei-o, agradeci a moça e fui pra casa.
         Liguei aquele cartucho no videogame. No começo, deu uma demorada, uma longa tela preta, mas ai, o logo da Natsume apareceu e me aliviou, o jogo funcionava.  Apertei o start para começar e vi que já havia um save no cartucho, de um jogador chamado Zalgo. Eu não queria pegar um jogo começado, queria fazer o meu, desde o começo, então ignorei Zalgo e criei o meu arquivo com meu nome. Joguei por umas horas, cultivei nos campos, cuidei dos animais; o tempo voou. Numa hora, quando o comprador de mercadorias chegou para coletar os produtos do dia, ele não falou sua fala de sempre, ao invés disso, ele ficou em frente a caixa de coleta, parado. Fui falar com ele, mas sua resposta foi uma longa linhas de pontos: "............."
      Não era como se ele estivesse me ignorando, era como se não estivesse podendo falar. Apertei o botão para voltar a falar e desta vez, ao invés dos pontos, vieram vários símbolos, como se fosse outra língua. Tentei ler aquilo, mas não era língua alguma que conhecia. No meio das letras e símbolos, reconheci uma palavra "ZALGO". Esse era o nome do outro save game que já estava no cartucho. Era um bug, pensei, acho que o save anterior tinha corrompido o meu. Reiniciei o jogo e deletei o arquivo Zalgo. Voltei ao meu save e o comprador estava normal como sempre, pegou os produtos do dia e se foi. Salvei o jogo e desliguei para ir descansar um pouco, não estava com nem um pouco de pressa em terminar esse jogo.
        No outro dia, eu estava de bom humor: trabalhei bem e foi um ótimo dia pra mim. Quando voltei pra casa, comi alguma coisa e fui jogar. Dei um pulo da poltrona, quando carreguei o jogo e vi que o arquivo Zalgo estava lá de novo. Fiquei curioso sobre o save e o selecionei para ver o que o antigo jogador estava fazendo. Logo que o jogo carregou, eu note que algo estava bem errado: toda a plantação estava morta, a casa estava em ruínas, os animais tinham sumido. Entrei na casa, que estava destruiria por dentro também, e vi Ann, a esposa do personagem, parada em frente a um berço vazio. Um dos objetivos do jogo era ter um filho, e nesse save o antigo jogador já deveria ter conseguido, ou não. Não havia nada no berço. Tentei falar com Ann, mas ela não respondia, apenas permanecia ali, imóvel, com uma expressão triste, que, apesar dos pixels do 16-bits, era claro que ela estava triste.
       Tentei falar com ela varias vezes, mas nada acontecia. Decidi sair da casa para olhar a cidade, mas quando estava saindo da casa, a caixa de dialogo de Ann abriu, como se estivesse falando do quarto: " é assim que acaba?" disse ela. Voltei para falar com ela, mas o mesmo se repetiu; permaneceu estática na frente do berço. Saí da casa e fui para a cidade. Não fiquei surpreso ao ver tudo como na fazenda: ruínas destruídas. Todas as casas estavam fechadas, o único lugar que pude acessar era a igreja. Entrei nela e vi todos os personagens da cidade, ali dentro, com o padre à frente. Uma musica aguda começou a tocar, parecia uma bug no jogo, porém, ele rodava normalmente. Uma caixa de diálogos apareceu, com aquelas letras e símbolos da outra vez, como se todos estivesse orando. Nesse momento, eu comecei a sentir medo mesmo, mas queria ver onde isso iria parar.
       Me aproximei do altar, e então o padre falou:
     - Zalgo está aqui! Já podemos começar.
       O personagem andou sozinho, foi ate o altar, onde um bebê estava deitado, então, o padre lhe deu uma faca. O fazendeiro a ergueu sobre a cabeça.
     - Vamos Zalgo. É o melhor para todos. - disse o padre.
       E ai, ele enfiou a faca no peito do bebê, espalhando seu sangue sobre o altar. Nesse momento, tentáculos negros saíram da ferida no peito do bebê. Uma caixa de texto apareceu com o nome ZALGO em caixa maior, como se todos estivessem gritando seu nome. Os tentáculos cresceram e se espalharam por toda a igreja e logo, pela cidade toda. 
        Eu nunca se quer tinha pensado que uma coisa daquelas pudesse ser real, era pra ser só um jogo, mas aquilo ja tinha passado dos limites! Se nao bastasse, todos os personagens da igreja começaram a rir; em suas caixas de texto, apareciam as palavras "hahahaha" e um por um, eles explodiram em pocinhas de sangue pixelado, e de seus cadáveres, mais tentáculos negros se ergueram...
       Soltei o corpo no sofá, e estava muito tenso, mas parece que finalmente havia acabado, a tela ficou escura e a musica parou. Quando pensei em desligar o videogame, Ann, a mulher do fazendeiro apareceu no meio da tela. Seu rosto ainda estava triste e me olhava como se de fato pudesse me ver. " Você foi com isso até o final" disse ela, em texto. Então, a barriga dela foi crescendo lentamente, como se meses de gravides estivesse passando em segundos. Cresceu até que chegou ao tamanho máximo de gravidez no jogo, então Ann voltou a falar: e agora," o que vai fazer?" 
        Tomei um susto com o telefone tocando bem naquela hora. Fui atender e era minha namorada, ela estava nervosa, quase chorando. Ela estava grávida, tinha acabado de confirmar no médico...
         Enquanto a ouvia chorando no telefone, olhei para a Tv, e a mensagem de Ann ainda estava lá " e agora, o que vai fazer?". Ann já havia sumido, mas a mensagem ainda estava ali. Senti o corpo todo tremer. Arranquei o cartucho do videogame e o ataquei na parede, para que aquilo nunca mais pudesse ser jogado por ninguém!
        No dia seguinte corri até a loja, eu queria saber quem era o maníaco que revendeu aquele jogo, eu queria saber qual o problema dele, mas... a loja estava fechada. Tentei olhar pela janela, e vi que estava vazia por dentro... cai em desespero, não fui trabalhar aquele dia.
         Minha namorada está mesmo grávida, ela está muito triste e perdida, assim como eu. E agora, o que eu vou fazer?
     





















quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O Homem dos Sonhos (V) - No Limite dos Pesadelos


Capítulos anteriores:

Parte 1/Parte 2/Parte 3 Parte 4

Quando alguém olha debaixo da sua cama, pode encontrar algumas surpresas. Um sapato sem par que não é usado faz séculos, uma caixa de fotos antigas com imagens de pessoas esquecidas, restos de comida criando mofo, ou até um rato morto. Aline preferia ter encontrado um rato morto. Em vez disso, ela encontrou um buraco aparentemente sem fundo.

O grande problema é que ela só descobriu isso quando já estava caindo. E a constatação de não haver fundo vinha do tempo em que ela estava caindo dentro da escuridão, sem nenhum indício de sua queda encontrar seu fim.

E ainda havia o som terrível como um grito de desespero que se ecoava por todos os lados.

O grito era dela mesma, a propósito.

Mas como tudo que tem um começo também tem um fim, seu mergulho nas trevas terminou abruptamente com o som de algo se rachando e ela imaginou serem seus ossos.

Ficou surpresa ao descobrir que não tinha nada quebrado em seu corpo, apenas um pouco dolorida no ponto em que seu corpo atingiu o chão. Por sorte foi um ponto macio. Olhou ao redor e precisou piscar algumas vezes para se adaptar a luz de penumbra do ambiente. Estava em um lugar ambiente escuro e úmido, como o interior de uma caverna.

Aterrissara em uma pilha de grandes pedras escuras, que possuíam uma textura frágil, como a casca de um ovo. Havia uma rachadura sob ela de onde vertia um líquido amarelado nojento, mas não teve muito tempo para entender onde estava, pois o monte começou a desmoronar debaixo dela.

O que pareciam ser um amontoado de pedras revelou-se uma série de carapaças com pernas finas, antenas, olhos e bocas movendo-se. E não pareciam nem um pouco felizes por Aline ter esmagado uma delas com sua queda.

As carapaças, cada uma delas quase o dobro do tamanho de uma pessoa, a rodearam, certamente imaginando que ela seria uma presa fácil. E não estavam enganadas. A visão destes seres despertou um medo primitivo que deixou Aline totalmente paralisada de pânico.

A cada instante o círculo ao seu redor se fechava mais e mais, conforme aqueles seres asquerosos se aproximavam. Suas antenas se movendo de um lado para o outro com cada passo que davam em sua direção.

Ficaram tão próximos que ela podia ver um líquido gosmento escorrer de suas bocas e seu reflexo em seus olhos multifacetados. Mas quando estas mesmas bocas chegaram ao ponto de quase tocá-la, algo dentro dela despertou. Como um animal que, diante de um inimigo superior e ao mesmo tempo tem qualquer possibilidade de fuga negada, ela fez a única alternativa ao seu alcance, e golpeou a criatura mais próxima com qualquer coisa que tivesse a mão.

A cabeça insectóide dobrou-se para o lado com um estalo alto pela com a força do golpe desferido. As demais criaturas ficaram paradas, algumas deram um passo atrás. Aparentemente não esperavam nenhuma resistência.

Diante da hesitação de seus algozes e com o coração batendo acelerado, Aline agarrou o objeto com as duas mãos e partiu para o ataque, golpeando cegamente.

Dois monstros caíram do seu lado antes que os outros começassem a reagir. Alguns se afastaram, possivelmente temendo serem as próximas vítimas de sua fúria assassina. Outros tentaram atacá-la por trás. Girando o corpo, golpeando um deles, o que fez os outros hesitarem por um instante, enquanto suas antenas moviam-se freneticamente.

Aline olhava todos ao seu redor sentindo a tensão em seu corpo, como uma mola pressionada ao seu máximo. Suas mãos erguidas ao lado de sua cabeça unidas ao redor do objeto que lhe servia de arma. Sua respiração arfando, aos poucos foi reduzindo de intensidade, se acalmando. Mas se acalmar era o que ela menos queria nesse momento, porque com a calma viria novamente o medo, e medo era um luxo que ela não podia mais se permitir naquele momento.

- Vocês querem mais? Então venham pegar! - bradou em desafio.

Aparentemente, este era todo o incentivo que as criaturas precisavam, pois como um só eles voaram para cima dela. Ela brandiu sua arma para um lado e para o outro, a cada golpe derrubando um deles.

Mas eles eram muitos, incontáveis.

Era uma batalha condenada desde o início.

Eles a agarraram e puxaram para todos os lados, o objeto que ela usara como arma foi arrancado de suas mãos, e eles continuaram puxando, esticando seus braços e pernas abertos. O movimento das antenas agora parecia uma gargalhada silenciosa, zombando de sua presa. Sentia a dor em suas juntas se espalhando por seu corpo e gritou, certa de seu fim.

Repentinamente, a pressão em seu braço esquerdo afrouxou, e sentiu o movimento ao seu redor, enquanto passaram a puxá-la para uma única direção pelos outros membros de uma forma desajeitada.

Aline foi derrubada quando um vulto negro voou por cima de si sobre seus algozes. Observou perplexa enquanto o vulto pulava de criatura em criatura que saiam em debandada, dispersando-se e enfiando-se em quaisquer buracos escuros que encontrassem para se refugiar. Levantou-se rapidamente e olhou em volta em meio a confusão, procurando lugares para se esconder.

O vulto já se encontrava a uma certa distância quando retornou lentamente. Aline procurou algum objeto com o qual pudesse se defender, mas não havia nada além dos corpos caídos dos grandes insetos que a atacaram, e cujos sobreviventes já não estavam mais a vista. Afinal, não sabia se fora salva, ou se era um aperitivo disputado para o jantar.

Conforme o vulto se aproximava, foi se tornando possível distinguir-lhe as formas, como se ficassem pouco a pouco mais nítidas. Era algo como uma grande pantera, maior do que qualquer uma que Aline já vira, não que ela já tivesse visto alguma pantera em sua vida, mas a criatura de pelos negros que agora se aproximava em passos lânguidos e trazendo algo em sua boca chegava quase a altura de seu peito.

Contraditoriamente, ao olhar para os olhos que pareciam dois brilhantes cristais de âmbar, Aline sentiu uma onda de alívio atravessar seu corpo e relaxou sua guarda. Reconhecera algo neles, algo que sua mente racional insistia em dizer ser impossível, mas sua mente racional não parecia ser a melhor conselheira neste momento.

- Tom!? É você?

A pantera negra estreitou seus olhos, dando a impressão de estar prestes a dar o bote. Soltou o objeto em sua boca e levantou a cabeça de forma imponente.

- Sir Thomas III, cavalheiro da irmandade dos gatos negros. - disse com um forte sotaque, parecendo um ator de um filme antigo. - Sim, sou eu!

- Você não parece com nenhum cavaleiro que eu já tenha visto. - Aline comentou de forma abrupta.

- Eu disse cavalheiro! Ou você consegue me imaginar em cima de algum cavalo?

Ela conseguia. E teve de prender o riso com a imagem que conseguia ser menos surreal do que o fato de que estava conversando com uma versão gigante do gato de sua irmã.

- O que eram aquelas coisas?

- Vermes que infestam todos os mundos, rastejando na escuridão, sobrevivendo da podridão dos outros. Em seu mundo vocês os chamam de baratas. - ele respondeu se abaixando para apontar para o objeto que trouxera em sua boca. - Estavam atrás disso. Você deveria tomar mais cuidado com algo tão valioso.

Aline pegou o objeto do chão onde Thomas o deixara e notou surpresa ser o mesmo que usara como arma, minutos atrás.

- Mas isso é apenas um urso de pelúcia!

- Claro, assim como isso no seu pescoço são apenas duas hastes de metal dourado perpendiculares entre si.

Ela ignorou o sarcasmo na voz do felino e tocou a cruz dourada por um instante como para ter certeza de que ainda estava lá.

- Que lugar é este? O que estamos fazendo aqui?

- Estamos no limiar do reino dos pesadelos, e eu trouxe você aqui para me ajudar a salvar sua filha. Mais alguma pergunta tola ou podemos seguir em frente? - ele respondeu mostrando os dentes e dando-lhe as costas sem esperar por resposta.

Ela ainda tinha muitas perguntas, mas como não sabia qual delas se enquadrava ou não na categoria “tola” preferiu se calar por ora. Pegou o urso ainda caído e seguiu Sir Thomas aonde quer que ele a estivesse guiando. Ele mencionou que estavam ali para salvar sua filha e isso era mais importante do que qualquer outra coisa.

* * *

Nos sonhos, às vezes vamos de um lugar para o outro sem nos darmos conta de como isso aconteceu. Ao tentarmos relatar estes deslocamentos no dia seguinte, nos confundimos, chegando ao ponto de dizer “era ali, mas também era lá”.

Desta forma, o cenário ao redor de Aline e Thomas mudou de uma caverna úmida e rochosa para uma densa floresta de plantas semelhantes a trepadeiras petrificadas retorcidas e emaranhadas como uma gigantesca teia de aranha, das quais brotavam frutos murchos enegrecidos, cada um do tamanho de bolas de basquete que exalavam um odor pútrido.

Thomas ia na frente agachado, com passos curtos e lentos, como um gato à espreita de um pombo desavisado. Aline o seguia sem um pio, já participara de tocaias o bastante para saber a importância da discrição a fim de não avisar o alvo de sua presença.

Sentia falta de sua pistola. A segurança do aço frio em suas mãos ajudaria a aquietar seus espírito, além de dar algum senso de realidade a toda aquela loucura.

Virou-se de repente, esquadrinhando a mata ao seu redor. Não vira nada, mas sentira alguma coisa, como um movimento no canto do olho. Voltou-se novamente para o outro lado. A mesma sensação, mas ao olhar, não havia nada lá.

Pensou em avisar Thomas, mas viu que ele já se distanciara, aparentemente não se importando em deixá-la para trás. Rangendo os dentes de raiva ela apertou o passo para alcançá-lo. Sentia que algo a observava e olhava para os lados sem enxergar nada por entre as folhagens. Sem perceber, apertou mais o urso em suas mãos, como quem segura uma arma em uma situação de risco, ou como uma criança com medo do escuro.

Na pressa ela pisou em um dos estranhos frutos enegrecidos que estava espatifado no chão em seu caminho. Seu rosto se contorceu de nojo quando sentiu um cheiro de ovo podre, vinagre alguma coisa excessivamente doce se espalhar. Ergueu o pé de onde escorria um líquido viscoso e conteve uma ânsia de vômito.

Novamente teve a sensação de ser observada, mas diferente de antes ela ficou etática, fingindo prestar atenção nos pequenos fragmentos brancos como ossos que não pareciam nem um pouco com sementes dentro do fruto em que pisara. Enquanto isso, tentava enxergar o que quer que despertava os seus instintos com o canto dos olhos.

E foi assim que ela viu o vulto.

Não podia distingui-lo muito bem, parecia ser uma pessoa, mas tinha certeza de que estava ali. Viu que Thomas se distanciara de novo, e contra toda a prudência chamou por ele.

O grande gato negro levantou suas orelhas e voltou-se em sua direção, ao que ela lhe fez um sinal para que retornasse, o que ele fez após apenas um momento de hesitação.

- O que foi? - ele perguntou com um leve rugido quando já estava próximo dela.

Ela fez um sinal discreto para o lado em que vira o vulto, mas Thomas continuava olhando para ela de forma inquisidora. Aline tentou mais uma vez, fazendo um gesto com a cabeça, nem tão sutil, na esperança que ele caísse em si. Quando isso não deu certo ela soltou um suspiro, vencida.

- Tem alguma coisa ali. - e apontou, claramente dessa vez.

Thomas respirou fundo e olhou rapidamente para a direção para onde ela apontava antes de responder.

- Não há nada ali. Nada importante, pelo menos. Apenas alguns sonhos perdidos. É com os corvos que precisamos nos preocupar. Esta área é infestada deles, e já deveríamos ter encontrado alguns a esta altura.

- E o que faremos agora, então?

- Nós não faremos nada. Você fica aqui e aguarda. Eu vou na frente para tentar descobrir o que está acontecendo.

- Ficar aqui? Por que não posso ir com você?

- Porque iria me atrasar, como já está fazendo. - ele respondeu dando-lhe as costas. - Permaneça na trilha e ela te protegerá.

Aline abriu a boca para dizer o que pensava para aquele gato vira-lata, mas com um salto ele já havia desaparecido, como se feito de sombras. Deixando-a sozinha resmungando sobre como iria transformá-lo em tamborim assim que voltassem para casa.

Então olhou para a vegetação ao seu redor e deu-se conta de estar completamente só em um lugar estranho e desconhecido e se perguntou se conseguiria voltar para casa.

A sensação de estar sendo observada se intensificou e ela inconscientemente apertou o urso de pelúcia em seus braços. Sentia-se desolada como uma criança perdida em um lugar escuro. Parecia sentir um vulto se movendo ao seu redor sempre que não estava olhando.

Quanto tempo já havia se passado desde que Thomas havia partido? Ela não sabia dizer. E se ele não voltasse? E se sua filha já estivesse morta? Conforme as perguntas se acumulavam em sua mente, sua respiração acelerava.

Dizia para si mesma que estava imaginando coisas. Thomas dissera que não havia nada lá.

Nada de importante, ele dissera.

Em meio a estes pensamentos inquietantes, ela ouviu algo. Primeiro achou que fosse o vento, mas percebeu que as folhas não se moviam. Prestou atenção e notou se tratar de uma voz. Tentou identificar o que dizia e ficou surpresa ao notar que chamava por um nome.

Seu nome!

Aline levantou-se em alerta e apurou os ouvidos para ter certeza de ter escutado certo.

Sim, a voz sussurrava seu nome. Aline. Aline. E não era uma voz qualquer. Ela a reconhecia.

Com pouco esforço conseguiu determinar de onde vinha. Cada vez mais a voz ia se tornando mais nítida, mesmo que parecesse distante.

Quando ia entrar na mata, ela hesitou. Olhou para a direção por onde Thomas partira e lembrou-se de sua recomendação para permanecer onde estava. Mas a voz insistia e ela tomou sua decisão.



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Sem saída


    A  sala era pequena, com paredes brancas. Uma mesa de madeira no meio e duas cadeiras. Uma terceira parede, era na verdade um grande vidro espelhado. Ele sabia que havia uma câmera ligada do outro lado do vidro, filmando e gravando tudo naquela sala.
     Estava com os braços abaixados. Olhar triste, acabado. Nada mais importava pra ele; responderia todas as perguntas que lhe fizessem.
     O detetive Carter entrou na sala e fechou a porta atrás de si. Olhou para o vidro e fez um sinal coma  mão, depois voltou-se para ele, puxou a cadeira e sentou-se.
    - Ok senhor Levin, pode me dizer o que aconteceu ontem a noite na sua fazenda?
    Ele olhou com olhos muito tristes para o detetive e soltou um longo suspiro.
    - O mesmo que eu ja disse antes, detetive. Mas ninguém acredita. Não tem mais nada que eu possa fazer.
    - Apenas responda as perguntas no melhor que puder, tudo bem? O que fazia ontem, a essa hora da noite?
      Mai um longo suspiro. Olhou para o detetive respondeu:
     - Estava na minha casa, na fazenda. Ouvia o jogo no rádio, em minha sala.
     -  Pistons contra Atlanta?
     - Sim.
     - E sua família, o que faziam?
     - A Cassidy tava pondo a mesa do jantar. Ela tinha em chamado pra ir comer, mas eu queria ouvir o fim do jogo.
     - E sua filha?
     - A Sara... - pausa.
     -  Sim senhor Levin, a Sara. O que a Sara estava fazendo?
     - No quarto dela, eu acho... conversando com alguma amiga pelo telefone.
     - A ultima ligação do celular dela era para uma garota chamada Ellen Tallarasse.É alguma amiga que o senhor conheça?
     - Ellen, sim, eu a conheço. Eram amigas.
     - Ela foi interrogada hoje mais cedo. Disse que estavam ao telefone quando ouviu Sara gritar e em seguida a ligação caiu.
     O homem baixa a cabeça e não diz mais nada.
     Depois de um breve silencio, o detetive continuou.
     - Por que a Sara gritou, senhor Levin?
     - Porque o homem comprido estava na janela dela...
     - O Homem comprido.... - repetiu o detetive, num tom de desdém. - Já ouvi a lenda: um homem bem alto, com braços e pernas bem longas não é?
     - Sim. Ele mesmo. Desde que eu era criança eu o via rodando a fazenda, mas todos me diziam que era só coisa da minha cabeça.
     - Não! - respondeu num tom de raiva. - ele é real.
     - Então foi o homem comprido que matou Cassidy e Sara?
     - Não foi....
     - Então quem matou elas?
     - Eu... - disse com voz tremula, cheia de dor e pesar.
     - Então o senhor admite ter atirado nas duas?
     - Sim.
     - E por que as matou?
     - Porque elas pediram...- respondeu baixo.
     - Por que?
     - Porque elas me pediram! - levantou a voz.
     - Como assim, elas pediram para o senhor pegar seu rifle e as matar?
     - Sim. Eu estava na sala quando ouvi o grito de Sara. Foi só um grito. Minha mulher foi ver o que era, e ai, eu ouvi o grito dela também. Peguei meu rifle de caça e sai correndo e gritando o nome delas e entao...
     - Então o que...?
     - Eu vi ele. Ele era enorme, parecia estar em toda parte. A luz do quarto oscilava com a presença dele. Desde criança, quando a luz falhava, eu sabia que era ele por perto.
     - Pode descrever ele?

   - A janela tava aberta, ele tava com o corpo pra dentro, esticado, magro e comprido. Ele tinha braços muito longos, mas tinha uns tentáculos ou algo assim, que saiam das costas dele... eles se agitavam e preenchiam todo o quarto.
     - E sua familia?
     - Cassidy e Sara estavam nos braços dele. Elas me olhavam com um olhar vazio e perdido. Ouvi a Sara me chamando, mas parecia que ela tava sonhando e não acordada. A Cassidy pedia socorro, mas também não se mexia, tava no braço dele.
    - E depois?
    - Ele virou o rosto pra mim. Não tinha nada na cara dele. era como um saco de pano branco. Não tinha nariz, nem boca nem olhos. Nada. E ai ele puxou o corpo pra fora e levou elas. Eu corri pra fora também, pulei a janela. Ele tinha uns 3 metros ao todo e as carregava para a floresta.
   - Foi aí que você atirou nelas?
   - Sim... Eu tentei acertar ele, mas não consegui. As balas pareciam passar direto. Como se ele nem fosse real. mas então, a Cassidy pediu, chorando, para eu a matar. Eu nunca a vi tão desesperada. Ela gritava, dizendo que não queria ser levada. Ela me implorava para mata-la, para permitir que ele a levasse para a floresta escura. Eu fecho os olhos e escuto o grito dela.
   - E então, voce atirou nas duas.
   - Eu não quis! Mas era isso ou deixar ele as levar. Não tinha mais nada que eu pudesse fazer, entende? Ele iria sumir com elas pra sempre! eu queria pelo menos ter um cadáver pra poder enterrar!
     O detetive ficou pensativo por uns segundos. Definitivamente não acreditava em nada daquilo, mas não podia negar que aquele homem estava muito alterado. Ele viu algo assustador noite passada, isso era certeza.
    A luz oscilou.
    O senhor Levin deu um pulo da cadeira.
    - É ele! ele veio me buscar!
    - Senhor Levin fique calmo! não existe homem comprido! isso foi só um problema com a energia, acontece sempre!
     Em seguida, a luz apagou completamente: o senhor Levin começou a gritar e chamar o nome de Deus. O detetive gritou para ele se acalmar, mas então sentiu uma força empurrando-o...
    Gritos dos dois e barulhos de tiros. O grito do senhor Levin foi silenciado de repente, como se tivesse sido subitamente interrompido. A luz voltou. Os outros policiais na outra sala, apertaram os olhos contra o vidro para ter certeza do que estavam vendo: A mesa da sala estava quebrada, as cadeiras caídas. O detetive Cartes caído num canto, mole como uma marionete sem cordas... e nem sinal do Senhor Levin.
    Quando investigaram a sala, os policiais não viram nada que pudesse justificar o desaparecimento dele. Nenhuma marca na parece e a janela estava intacta... e o que quer te tenha matado o detetive, tinha muita força, foi muitos dos ossos dele estavam quebrados.
    O caso foi encerrado. O fazendeiro levou a culpa pelo assassinato da sua família e também do detetive. Foi dado como foragido e perigoso, mas nunca mais foi encontrado.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Casper


 -  911 emergência, você precisa de ajuda?
 -  Sim! sim. Tem alguém na minha casa.
 - Ok senhor fique calmo - respondeu a operadora - Eu já notifiquei a policia, eles estarão aí em alguns minutos. Eu preciso que confirme seu endereço.
  - Oh Deus Oh Deus... - o homem respirava fundo, tentando manter a sanidade.
  - Senhor? por favor, o senhor está falando da Rua Elm numero 1413, apartamento 2?
  - Sim! - respondeu ele impaciente, levantando o tom de voz. - Rua Elm apartamento 2! manda logo alguém pra cá!
   - A policia já foi notificada e estarão aí em alguns minutos, mas agora eu preciso que o senhor fique calmo, está bem? o Senhor viu se é um homem ou uma mulher?
    - Eu não sei! eu só vi de costas. Só deu pra ver que era alguém sem cabelo. Quando se virou na minha direção eu corri pro quarto.
    - Sem cabelo?
    - Sem cabelo! nada na cabeça, nenhum cabelo, só pele. - estava notavelmente alterado.
    Barulho de vidro quebrando ao longe, acompanhado de uma breve interferência na ligação, que cortou a descrição que o homem fazia.
     - O que foi isso?
     O homem continuou como se não tivesse percebido nada:
     - ... tudo. Começou a tremer tudo a minha volta.
     - O que começou a tremer e que barulho foi esse, senhor.
     - Você não tá me ouvindo?  Tudo começou a tremer! não sei explicar!
     - Você consegue chegar à alguma saída?
     - Não, eu to no armário. Ah meu Deus...
     - Tá certo. Eu preciso que fique calmo. Você algo que possa usar para se defender?
     - Hun... tem uns cabides aqui...
     - Ok, pegue um dos cabides...
     - Eles são de plástico!
     - Ok, tem algo mais...
     Barulho de coisas quebrando, dessa vez bem mais perto.
     - Vai embora! - gritou ele.
     - O que está acontecendo?
     - Vai embora! - gritou de novo, dessa vez coma  voz quase sumindo.
     - Senhor?
     Barulho alto, depois silencio.
     - Senhor? 
     - Ele ta na porta. - respondeu, bem baixinho. - ele ta no quarto.
     Sons estranhos de metal batendo ecoam pelo telefone. A operadora tenta não demonstrar medo, e continua com voz firme.
    - A policia está a alguns minutos daí, eu só preciso que o senhor aguente um pouco mais.
    - Por favor... por favor eu to com tanto medo, eu...
    Rangido de porta abrindo.

    " Oi! eu sou Casper!"
    - AH MEU DEUS! - gritou ele. Foi o grito mais assustador que ela já ouviu desde que começou com esse trabalho.
     Sons de metal batendo, coisas quebrando: obviamente uma luta. A voz do homem ainda podia ser ouvida, mas ao longe, gemendo e gritando.
    - VAI EMBORA!
    - Senhor?
    A voz dele foi ficando mais distante, como se tivesse sendo levado pra longe, apesar de ainda estar gritando, a voz dele foi sumindo. Risadas de crianças ecoaram do outro lado da linha. A operadora deu um pulo de susto com o coração na mão. Os gritos pararam. Silencio.
  - Alô? quem está ai? - perguntou ela.
  Ouviu mais uma vez uma risadinha abafada ao longe. 
  - Quem está ai!? - quase gritando.
  - Olá! - uma voz fina e feliz respondeu do outro lado. Uma voz que lhe causou frio na coluna e que vai tirar o sono dela por muitos dias.
  - A policia está chegando, não tem pra onde correr. 
  - Eu sou Casper!
  A linha fica muda antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.

***

    Alguns minutos depois, a policia chegou ao local. A porta do apartamento estava aberta, mas nenhum vizinho acordado. A casa estava revirada, mas ao que parecia o intruso não buscava por algo, mas sim, destruir coisas.
    No quarto, encontraram a porta derrubada e mais uma vez, tudo revirado. Houve luta ali. A porta do armário estava aberta e um rastro se sangue seguia direto para o espelho de parede, terminando nele. O lençol da cama tinha sido arrancado como se alguém tivesse se agarrado a ele. O lençol estava esticado no chão, a alguns centímetros do espelho.
    Ele aponta sua lanterna para o espelho. Uma marca de mão pôde ser vista nele. Uma marca de mão do tamanho da mão de um adulto. Analisou a marca com cuidado... quase não reparou no sorriso largo e cheio de dentes que apareceu no reflexo do espelho.
   "Oi!"



   

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Escute os mais velhos

Sandro Quintana

 Nos dias de hoje, ninguém escuta ninguém. Principalmente os mais velhos. Se as pessoas escutassem, muitos situações terríveis poderiam ser evitadas. Esta é uma história de uma dessas situações.

***

A vizinhança parecia saída de algum filme americano. Sem grandes prédios que impedissem de ver o céu azul, apenas grandes casas com portões altos e jardins na frente. Os brinquedos da pracinha estavam cheios de crianças acompanhados de suas mães ou babás, e os bancos com namorados de várias idades, desde adolescentes até um casal de idosos que davam pipoca na boca um do outro.

Para Roberto que nascera e crescera em apartamentos a sua vida toda, aquile lugar parecia saído de um sonho. Ele não acreditou quando o corretor lhe falou da casa a venda nesta vizinhança. Precisava ver com seus próprios olhos, e agora que vira, tentava controlar a empolgação que lhe invadia. Não queria que o corretor percebesse quão interessado estava e aumentasse o preço.

Mas não demonstrar sua emoção seria uma tarefa quase impossível! Conforme estacionava o carro, ele ia olhando cada uma das casas, tentando identificar aquela cujas fotos o corretor lhe enviara dias antes.

Descobriu que a sua casa era a única casa branca na rua. Uma bela casa de dois andares, com um muro de pedras na frente e um portão igualmente branco. Havia um pequeno canteiro entre a casa e o muro que podia ser visto da rua e onde um jardim modesto mas de muito bom gosto estava plantado.

Eduardo, o corretor, ainda não havia chegado, mas não estava atrasado. Roberto que saíra do escritório mais cedo, cancelando seus compromissos para a tarde, e assim não correria o risco de se atrasar, caso se perdesse nos caminhos ainda pouco conhecidos, mas que ele já imaginava se tornando familiares depois que ele e a noiva se mudassem para lá.

- Bom dia! Você é o doutor Roberto? - perguntou uma voz de dentro do portão.

Roberto se sentiu arrancado do seu sonho em que via um futuro brilhante a frente por aquela voz. Não tinha visto ninguém quando chegara, mas agora vira um senhor de cabeleira bem branca que chegava a refletir o sol forte daquele dia. Ele usava uma camisa branca suja de terra.

- Sim, sou eu sim! - Roberto respondeu, para depois completar. - Aliás, bom dia, desculpe a falta de modos, mas não tinha visto o senhor.

- Senhor, só no céu, doutor. Minha graça é Erasmo. O senhor não me viu porque estava abaixado atrás das orquídeas. - e fez um gesto indicando o grande arbusto que ficava a um canto do jardim com lindas e delicadas flores rosadas.

- É o senhor quem cuida do jardim? Faz um excelente trabalho.

- Muito obrigado. Faço o que posso, já não sou mais tão jovem quanto antigamente. - e tirou um pano do bolso de trás da calça para secar a testa suada. - Mas já faço isso desde a época do seu Domingos.

- Seu Domingos? - indagou curioso Roberto.

- Sim. Era o antigo dono dessa casa. Ele amava essa casa! - disse Erasmo com um tom saudoso na voz. - Foi muito triste quando tiraram ele daqui. Ele não queria sair de jeito nenhum! Dizia que preferiria morrer na casa que ele mesmo construiu.

- E ele morreu do que?

Nessa hora, Roberto sentiu uma mão puxando ele com força pela manga do terno.

- Eu disse pra ele! Eu disse! Eu disse pra ele não entrar! - Roberto era sacudido por uma mulher idosa, vestida em maltrapilhos típicos de uma mendiga. Ela segurava uma boneca com uma das mãos, enquanto a outra segurava o terno dele com força. - Ele não me ouviu! Mas eu disse! Eu disse!

- Calma, minha senhora! - Roberto falava para ela surpreso pelo estranho ataque.

Ele tentava puxar o braço que a mendiga segurava, mas as mãos dela pareciam mais garras, podia sentir as unhas dela apertando sua carne por baixo do tecido. Ele estava se segurando para não machucá-la, mas ela não parecia ter a mesma preocupação e acabou por empurrá-lo contra a grade do portão. Roberto se perguntava como uma velhinha podia ser tão forte assim?

Erasmo ainda estava enrolado com as chaves para tentar abrir o portão, ambos tentando acalmar a velha com palavras sem muito sucesso, quando Eduardo chegou correndo por trás dela e segurando firme no seu ombro lhe falou da forma mais tranquila que conseguiu:

- Ei, Maria, calma, calma! Não quer que eu tenha que te tirar daqui a força, não é? Vão tirar o seu filhinho de você.

As palavras pareceram surgir algum efeito nela, que foi soltando o braço de Roberto enquanto se afastava do portão. Ela então abraçou a boneca em seus braços e começou a murmurar:

- Não, meu filho não. A gente ia ter um filho. - ela observava os três homens com olhos esbugalhados que não pareciam vê-los realmente. - Mas eu disse pra ele não entrar, eu disse, eu disse...

E foi se afastando e murmurando de forma repetitiva pra si mesma.

- Tudo bem, Roberto? Ela não te machucou não é? - Eduardo se virava para seu cliente que ainda estava pasmo se recuperando do ocorrido.

- Estou bem. - Ele olhou para o braço, puxando a manga para ver apenas algumas pequenas marcas avermelhadas. E completou com um sorriso nervoso - Ela machucou mais o meu orgulho do que qualquer outra coisa. Quem era essa doida?


- Normalmente ela é calma, vive aqui na rua. Ela costuma dormir na igreja próxima. Acho que só fica nervosa quando aparece alguém estranho por aqui. - Eduardo explicava.

- Não é só alguém estranho, mas toda vez que alguém vem ver essa casa. - disse Erasmo que finalmente tinha conseguido abrir o portão.

- Ora, Erasmo, não me venha dizer que você acredita nas histórias que o povo daqui conta?

- Que histórias? - Foi a vez de Roberto interceder. Recuperado do ataque e interessado no assunto.

- De que a Maria louca era amante do velho Domingos - Eduardo respondia enquanto apontava para a mendiga que já se encontrava um pouco afastada. - E que ela teria matado o velho pra ficar com a casa.

- Claro que não, seu Eduardo, até porque ela só apareceu por aqui tem uns três meses, e já vai pra quase um ano que o seu Domingos partiu, que Deus o tenha. - explicou Erasmo fazendo o sinal da cruz pelo falecido. - Mas que é esquisito que ela só fique violenta assim com quem vem ver a casa, eu acho que é!

- Não ligue pro Erasmo, Roberto. Senão daqui a pouco ele vai estar te contando histórias de fantasmas que arrastam correntes pelo sótão, e mulas sem cabeça. - riu Eduardo.

Os outros dois homens também riram. Até Erasmo deu uma risadinha apesar de parecer não ter gostado tanto assim da brincadeira. Roberto já pensava se não podia tirar proveito disso para fazer uma proposta pela casa por um valor menor.

- Mas com exceção da nossa excêntrica Maria. - Acrescentou Eduardo. - Acho que você viu que a nossa vizinhança é bem tranquila, não é, Roberto? Gostaria de ver a casa por dentro para podermos começar a ver os últimos detalhes do negócio?

- Vocês está mesmo com pressa, hein, Eduardo? - retorquiu Roberto de forma divertida.

- Como dizem os americanos: “Tempo é dinheiro!” - Eduardo respondeu rindo divertido.

- Bom, eu só estou esperando a minha noiva que ficou de me encontrar aqui. Mas vocês sabem como é mulher, né? - Comentou Roberto, arrancando risadas dos outros dois.

Nesse exato momento o refrão da música “Gatinha Manhosa” encheu o ar. Roberto alcançou o bolso interno de seu paletó, tirando seu celular.

- Falando do diabo, ou melhor, da diaba... - Roberto brincou, o que fez os outros dois darem novas risadas. - Alô, querida! Onde você está?

- Oi, docinho. Desculpe, mas eu vou demorar mais do que eu esperava. Uma das madrinhas, passou mal então atrasou tudo. Você me perdoa?

Mesmo falando com ela apenas pelo telefone, Roberto podia vê-la fazendo aquele beicinho que gostava tanto.

- Está bem, querida. Mas é que eu já estou aqui com o Eduardo vendo a nossa futura casa e...

- E ela é bonita? - Eliana o interrompeu.

- É linda! É tudo que nós vimos nas fotos e mais. Tem até uma pracinha onde nossos filhos vão poder correr e brincar.

- Filhos, senhor Roberto? - Eliana questionou dando ênfase ao “S” de filhos.

- Sim, senhora Eliana. - ele respondeu brincalhão. - Algo contra filhos?

- Vamos tentar UM filho, primeiro, senhor Roberto? E depois vemos no que dá, ok?

- Sim, senhora! - ele bateu uma pequena continência involuntária. - Mas agora, a pergunta do momento: Quanto tempo a senhorita irá se atrasar? Pois o Eduardo está ansioso pra me mostrar o interior da casa.

- Ah! - e lá veio a voz do beicinho de novo. - Eu queria ver a casa com você.

- Mas você não está enrolada aí com a sua amiga?

- Pois é. - e ela completou após uma pausa. - A Marta tinha que ficar doente logo hoje? 

Roberto pode ouvir uma voz chamando por sua noiva do outro lado da linha.

- Já vou! Querido, tenho que ir. Mas me promete que não vai entrar na casa sem mim?

- Mas, querida, o Eduardo está querendo...

- Dane-se o Eduardo! Eu quero ver a casa com você! Promete que não vai entrar?

Ele deu um longo suspiro antes de responder:

- Prometo, querida! Vou ver com ele se marco um outro dia para fecharmos o negócio. 

Eliana agradeceu feliz, e se despediram.

Quando ele desligou o telefone percebera que Eduardo o observava com uma cara não muito boa. Com certeza ele havia ouvido parte da ligação, e não parecia feliz em ter ido até ali por nada. Ele tentou explicar ao corretor o que havia ocorrido, mas esse não se sensibilizou.

- Olha, Roberto, gosto muito de você, mas já tenho outra proposta por essa casa. Recusei por sua causa, mas o cara continua insistindo. Não posso ficar segurando um negócio por causa da sua noiva.

Roberto não tinha muito o que argumentar. Eduardo estava certo. Afinal, era o trabalho dele.

- É uma pena. Realmente gostei dessa casa. - ele olhou para a construção de dois andares.

- Vamos fazer o seguinte, Roberto: Eu posso segurar o outro comprador até amanhã de manhã, mas se você for fechar o negócio tem que ser ainda hoje. Você e sua noiva podem passar aqui mais tarde e pegar a chave com o Erasmo, ele mora naquela casa amarela do outro lado da pracinha, que tal?

- Acho ótimo! - e não podia se conter na sua felicidade. - Muito obrigado, Eduardo. Obrigado mesmo!

- Só não faça eu me arrepender, ok? - falou enquanto apertavam as mãos. - Bom, como eu ainda tenho um tempinho, não quer dar uma olhada?

- Mas eu prometi...

- Ela não precisa saber, cara! Aí quando vocês vierem juntos você já vai poder apresentar a casa pra ela melhor.

Roberto olhou para a casa e não conseguiu resistir a tentação. Resolveu mandar um torpedo para a noiva avisando que conseguira uma nova visita mais tarde com todos os detalhes. Achou melhor não ligar tanto pelo fato dela estar ocupada quanto pela possibilidade de que ela pudesse perceber alguma coisa em sua voz, denunciando a quebra na promessa.

Erasmo pediu licença aos dois para ir em casa almoçar, e Eduardo o avisou que mais tarde Roberto e a noiva viriam de novo ver a casa.

Depois disso, Eduardo lhe dera passagem para que ele conhecesse aquela que seria, ele já tinha certeza, a sua nova casa.

Roberto sentiu algo estranho ao passar pelo portão. Como se a casa já fizesse parte dele e ele nunca mais sairia de lá. Mal sabia o quão verdadeiro era esse sentimento. Esta emoção, ao invés de assustá-lo, apenas o impeliu adiante. Entrando pelo corredor que serviria de garagem para o seu carro em poucos dias até a porta lateral que servia de entrada principal.

- Quer fazer as honras? - Eduardo perguntou após destrancar a porta.

Ele colocou a mão na maçaneta, sentindo uma eletricidade percorrendo todo o seu corpo. Como se a casa lhe desse boas vindas. Igual a aranha dizia para a mosca que caía em sua teia.

A entrada da casa era um corredor, não muito longo, nem muito curto. A maioria das pessoas poderia cruzá-lo em uns dez passos. Roberto atravessou-o com apenas oito. Ao longo do corredor, haviam duas passagens, a da esquerda era larga, com uma porta dupla e levava a uma sala ampla onde uns poucos móveis estavam cobertos com lençóis brancos que ondulavam com a brisa que vinha da porta recém-aberta. Havia um cheiro de poeira e coisas velhas no ar.

- São os móveis que os familiares não quiseram ou não puderam levar. - explicou Eduardo entre um acesso de tosse e outro. - Desculpe, eu não sabia que estava com tanta poeira assim.

Roberto olhava a longa mesa que tomava todo o canto esquerdo da sala. Podia imaginar uma grande família sentada ao redor daquela mesa para jantar como uma imagem de antigos senhores feudais de quadros antigos. Não importava o que Eliana dissesse. Ele queria uma família grande, não queria passar a solidão de ser filho único como herança aos seus descendentes. Se fosse por ele, encheria aquela mesa de filhos e netos. Seu feudo!

Estava tão envolvido em seus devaneios que não escutara quando Eduardo lhe falara algo.

- Desculpe, pode repetir?

- Perguntei se você gostaria de ver a cozinha ou os quartos agora?

- Os quartos, acho melhor. Não sou um cara muito de cozinha. - sorriu disfarçando o momento de ausência.

- Então vamos subir. - apontou para a escada que terminava o corredor.

Quando iam saindo da entrada da sala, uma coisa chamou a atenção de Roberto.

- Por que só tem uma cadeira na mesa?

- Os filhos dividiram as outras cadeiras, mas nenhum deles quis mexer na cadeira do velho Domingos. Uma forma de respeito, eu acho.

O andar de cima era dividido em quatro quartos, sendo um deles uma suíte com banheiro próprio. Os outros três quartos dividiam o outro banheiro do andar que ficava próximo da escada.

Eduardo, entre tosses e espirros por causa da poeira no ar, contava de como era quando o velho Domingos ainda era vivo com sua mulher e seus três filhos, fazendo piadas sobre a briga pelo banheiro de manhã cedo, quando seu celular tocou.

- Desculpe, Roberto, mas eu tenho de atender. Você  se importa de deixá-lo sozinho? Mas a poeira está me matando e o sinal aqui dentro não é dos melhores com a minha operadora.

Roberto não se importou. Na verdade, ele não teria se importado se um meteoro caísse na terra e este fosse o último refúgio da humanidade. De forma que mal percebeu sua própria aquiescência a saída do corretor. Ele estava envolvido em seu próprio mundo naquele momento.

O que ele via não era a casa vazia e empoeirada de agora, ou a casa da família do velho Domingos. Era a sua casa que enxergava pelos seus olhos naquele momento. Em um dos quartos, o menor deles, já imaginava um escritório para ele, seu recanto, onde faria seu trabalho. Nos outros dois quartos já visualizava duas camas beliche em cada um. Criaria algum sistema para que seus filhos não se matassem pelo banheiro como os filhos do antigo dono. Na sua casa reinaria a ordem criada e mantida por ele, como o senhor do castelo.

E no último quarto, a suíte, ficaria o seu ninho de amor com sua amada esposa. Via a cama de casal no meio do recinto, onde os pombinhos teriam suas noites de amor. Entrou no banheiro da suíte e ficou surpreso ao ver uma banheira antiga, de louça. Não lembrava de ter visto isso na descrição do imóvel. Será que pensaram que isso reduzir o valor do imóvel? Uma bela relíquia como essa?

Ele passou a mão na louça antiga, impressionado com a qualidade do material e da conservação. Ergueu a mão até a altura dos olhos e viu a grossa camada de poeira nela. Pensou que a imobiliária deveria ter tido um mínimo de cuidado para limpar o interior da mesma forma que cuidavam do jardim.

Seria difícil precisar qual fora a causa, se fora a poeira, ou se ele tivera a impressão de ouvir algum barulho. O que quer que tenha sido, arrancou-o de seu estado de sonho. Roberto percebeu que havia alguma coisa errada. Em um primeiro momento, ele não conseguiu discernir o que era, mas depois ficou claro.

Ou melhor dizendo, ficou escuro.

Roberto olhou para a janela do quarto e viu a luz do dia já se extinguindo, cobrindo tudo com uma luz alaranjada de final de tarde. Mas como, pensou, se ainda era de manhã quando entrara na casa? Para onde teria ido o resto do dia?

Quando se aproximou da escada para voltar ao primeiro andar, ouviu novamente um barulho. Não chegou a distinguir exatamente o que era antes de balançar a cabeça e chegar a conclusão de que o papo de Eduardo de fantasmas com correntes no sótão estava fazendo-o ouvir coisas.

Conforme descia os degraus, casa passo era acompanhado de um estalo. Nos primeiros, o som era sutil, quase inaudível. Mas enquanto se aproximava do primeiro andar, ele podia sentir os estalos em seus ossos.

O mais estranho é que não ouvira qualquer ruído quando subira.

Parou para respirar um pouco. Sentia o ar entrando com dificuldade, como se acabasse de correr uma maratona e não descer um mero andar de escadas.

Durante a sua descida, a luz do entardecer praticamente se extiguira, mergulhando a casa em sombras, e por isso passou a usar a luz do celular para se guiar pelo corredor. 

Ele seguiu pelo corredor em direção à porta. No fundo do seu ser, alguma coisa dizia que, se saísse da casa, tudo ficaria bem.

O corredor parecia mais comprido agora do que quando entrara na casa. Não importava quantos passos desse, a porta parecia se manter além do seu alcance.

Quando seus dedos tocaram a maçaneta, soltou um suspiro de alívio tão profundo que parecia ter prendido a respiração por horas. Estava a salvo.

Só havia um problema, a porta estava trancada.

“Eduardo!”, ele pensou. “Ele deve ter levado as chaves.”

A mente humana precisa constantemente que as coisas façam sentido, e quando não fazem, nos agarramos a qualquer explicação, por mais ilógica que ela seja, para preencher este vazio. Roberto formulava, contrariando qualquer bom senso, que tudo aquilo só podia ser algum tipo de brincadeira do corretor de imóveis, talvez até junto com o jardineiro.

“É isso! Eles ficaram falando aquelas histórias sobre fantasmas para me assustar.”

Mas não ocorrera a ele que nenhum dos dois teria o poder para fazer o se pôr mais cedo.

Dotado desta nova compreensão sobre os acontecimentos, tentou usar o celular para ligar para o seu suposto piadista, mas o aparelho estava sem sinal, e a bateria já se aproximava do fim.

Voltou a ouvir os ruídos de antes. Agora mais altos. Pareciam gemidos e vinham da cozinha.

- Eduardo? - ele chamou enquanto caminhava na direção do outro cômodo. - Vamos parar com essa palhaçada! Você já deu as suas risadas, mas já perdeu a graça!

Na luz fraca do celular, ele teve a certeza de ver um vulto no canto do corredor que formava a cozinha. Mas ao chegar perto, não havia nada lá. Nada além de alguma coisa escrita com garranchos vermelhos na parede. 

“Uma lembrança da infância dos filhos do antigo proprietário?” Pensou enquanto lia em voz alta a letra tremida:

- Eu... disse... não en...

Ouviu-se um grito de algum lugar da casa. Um grito sofrido de dor, quase um uivo.

Instintivamente ele agarrou a grande faca de carne largada sobre a pia sem sequer se dar conta dela estar suja, como se tivesse sido usada a pouco tempo.

Ao sair da cozinha, a primeira coisa que percebeu foi a luz do sol nascente vindo das janelas.  E a segunda coisa foi a enorme mancha vermelha no chão do corredor, perto da saída.

Afastou essa imagem da cabeça, pois a luz do sol deu-lhe uma ideia esperançosa. Talvez pudesse chamar a atenção da janela. Em breve as pessoas iriam começar a sair para o trabalho, e a pracinha em frente da casa estaria apinhada de gente. Alguém que o visse, poderia ajudá-lo a sair daquele inferno.

Achou melhor tentar realizar seu plano do segundo andar, de onde teria uma maior chance das pessoas verem-no pela altura e sem  o jardim da frente atrapalhando.

Subiu a escada com enorme dificuldade, chegando a usar os dois braços para se apoiar nos corrimãos. E o fato de se recusar a soltar a faca de carne que pegara tornava este esta empreitada ainda mais difícil.

Quando chegou ao topo da escada, limpou o suor da testa enquanto tentava recuperar o fôlego. Começou a prestar atenção na própria mão. Estava mais enrugada, as veias mais saltadas, cheia de pequenas manchas.

“O que essa casa está fazendo comigo?”

Dirigiu-se para um dos quartos da frente, de onde poderia chamar a atenção das pessoas na rua, quando voltou a ouvir ruídos. Muito mais nítidos agora, como se estivessem bem próximos. Pareciam um choro.

Pelo canto do olho, percebeu um vulto. Virou-se para aquela direção por impulso, pois imaginava que, a exemplo do que acontecera na cozinha, ele desapareceria.

Só que não desapareceu.

O vulto era uma mulher, sentada no chão, os braços cruzados sobre os joelhos, a cabeça enfiada nos braços, e uma vasta cabeleira branca caindo, esparramada e desgrenhada, caindo para todos os lados. Ela chorava baixinho enquanto murmurava impossível de entender.

Aproximando-se com cuidado daquele estranho vulto, Roberto não saberia dizer se sentia-se aliviado ou assustado por encontrar outra pessoa naquela bizarra situação. Ao menos, ele esperava que fosse outra pessoa.

- Ei! Você! - chamou.

Sua voz parecia estranha aos seus ouvidos. Pigarreou, tentando limpar a garganta.

- Senhora!? - fez nova tentativa, aproximando-se um pouco mais.

A figura levantou a cabeça, mas não parecia realmente vê-lo. Seus olhos estavam inchados como se de tanto chorar, mas ele a reconheceu. Era a mesma velha que o agarrara às portas da casa. Mesmo com o rosto marcado, sem o seu “bebê”, com um vestido azul velho e puído, ele pôde reconhecê-la. E se ainda havia alguma dúvida, ela estava repetindo a sua ladainha de antes para confirmar sua identidade:

- Eu disse pra ele não entrar. Eu disse! Nós íamos ter um filho. Eu disse pra ele não entrar.

- Senhora, nós precisamos sair daqui. - ele a segurou, tentando trazê-la a razão.

Se os dois gritassem juntos, teriam mais chance de chamar a atenção e conseguir ajuda, ele pensou. No entanto, ela continuava no seu mantra, reagindo o mínimo para tentar se desvencilhar dele. Por fim, ele perdeu a paciência, e a agarrando com as duas mãos a sacudiu com força.

- Acorda, sua velha maluca!

Ela pareceu acordar assustada e olhou para ele, com uma mistura de pânico e ódio.

- Você! - ela vociferou. - Foi você! A culpa é sua!

Com uma velocidade surpreendente, ela agarrou a faca de carne que ele soltara para sacudi-la, e atacou-o causando um corte em seu braço. 

O terror de toda aquela situação, aliado à ira que vira nos olhos dela só lhe deixou uma opção: fugir! Levantou-se e correu tão rápido quanto pôde, só parando à porta do quarto para vê-la vindo em seu encalço, faca em punho.

A escada que ele subira tão dificilmente foi transposta de forma ligeira e trôpega, terminando os últimos degraus com um tombo. O pânico deu-lhe forças para se levantar de um pulo. Infelizmente a fúria havia tido um efeito similar sobre a velha, e ela saltou os últimos degraus atrás dele com um rosnado.

Os pulmões ardiam, a respiração acelerada, e a perna direita mancava dolorida enquanto ele corria em direção à porta, sem ao menos pensar na possibilidade dela ainda estar trancada. Tudo em sua mente era que precisava fugir para salvar sua vida.

O som metálico de um trinco reverberou pelo corredor, a porta estava sendo aberta por fora. Diante dele, a esperança se materializou na forma de um anjo azul. O seu anjo azul.

- Oi, querido! Surpresa! - Eliana entrou gritando, mas estancou com a cena a sua frente.

Roberto tinha lágrimas nos olhos, e sentiu o ar lhe faltar, mas não pela emoção, e sim pela faca alojada em suas costas, perfurando-lhe o pulmão, e fazendo-o cair de cara no chão, com a velha sobre ele.

A faca subia e descia de forma rápida e descompassada, enquanto o alvo de seus ataques lutava desesperadamente para segurar-se ao seu último fio de vida.

A velha parou, arfando e olhou Eliana paralisada pela primeira vez, mas tudo o que viu foi um obstáculo no seu caminho para fora daquela casa maldita. Como um animal, ela saltou sobre mulher mais jovem, jogando-a para o lado e alcançando a liberdade.

Eliana ainda estava atordoada com tudo o que acabara de ocorrer, quando a porta da frente bateu, ainda com a chave na fechadura. Não conseguia entender, fugira da prova de roupa e encontrara o corretor do lado que contara tudo. Decidira fazer uma surpresa, mas se deparou com esta cena de tamanha violência sem sentido.

- Eliana... - O velho esfaqueado sussurrou, chamando a sua atenção.

Ao som do seu nome, a jovem se aproximou do homem a tempo de vê-lo rejuvenescer diante dos seus olhos e assumir as feições do seu amado, enquanto a vida se esvaia de seus olhos.

- Não! Não! Ó meu Deus! Eu disse para você não entrar! Eu disse! Nós íamos ter um filho, meu querido.

Ela repetia sem parar, colocando a cabeça do noivo em seu colo, enquanto o sangue deste se espalhava formando uma grande mancha vermelha.