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Quanto tempo já havia se passado desde que Thomas havia partido? Ela não sabia dizer. E se ele não voltasse? E se sua filha já estivesse morta? Conforme as perguntas se acumulavam em sua mente, sua respiração acelerava.
Quando alguém olha debaixo da sua
cama, pode encontrar algumas surpresas. Um sapato sem par que não é
usado faz séculos, uma caixa de fotos antigas com imagens de pessoas
esquecidas, restos de comida criando mofo, ou até um rato morto.
Aline preferia ter encontrado um rato morto. Em vez disso, ela
encontrou um buraco aparentemente sem fundo.
O grande problema é que ela só
descobriu isso quando já estava caindo. E a constatação de não
haver fundo vinha do tempo em que ela estava caindo dentro da
escuridão, sem nenhum indício de sua queda encontrar seu fim.
E ainda havia o som terrível como um grito de desespero que se
ecoava por todos os lados.
O grito era dela mesma, a propósito.
Mas como tudo que tem um começo também tem um fim, seu mergulho nas
trevas terminou abruptamente com o som de algo se rachando e ela
imaginou serem seus ossos.
Ficou surpresa ao descobrir que não
tinha nada quebrado em seu corpo, apenas um pouco dolorida no ponto
em que seu corpo atingiu o chão. Por sorte foi um ponto macio. Olhou
ao redor e precisou piscar algumas vezes para se adaptar a luz de
penumbra do ambiente.
Estava em um lugar
ambiente escuro e úmido,
como o interior de uma caverna.
Aterrissara
em uma pilha de grandes pedras escuras, que possuíam uma textura
frágil, como a casca de um ovo. Havia
uma rachadura sob ela de onde vertia um líquido amarelado nojento,
mas não teve muito
tempo para entender onde estava, pois o monte começou a desmoronar
debaixo dela.
O que pareciam ser um amontoado de
pedras revelou-se
uma série de
carapaças com pernas finas, antenas, olhos e bocas movendo-se. E não
pareciam nem um pouco felizes por Aline ter esmagado uma delas com
sua queda.
As carapaças, cada uma delas quase
o dobro do tamanho de uma pessoa, a rodearam, certamente imaginando
que ela seria uma presa fácil. E não estavam enganadas. A visão
destes seres despertou um medo primitivo que deixou Aline totalmente
paralisada de pânico.
A cada instante o círculo ao seu
redor se fechava mais e mais, conforme aqueles seres asquerosos se
aproximavam. Suas antenas se movendo de um lado para o outro com cada
passo que davam em sua direção.
Ficaram tão próximos que ela podia ver um líquido gosmento
escorrer de suas bocas e seu reflexo em seus olhos multifacetados.
Mas quando estas mesmas bocas chegaram ao ponto de quase tocá-la,
algo dentro dela despertou. Como um animal que, diante de um inimigo
superior e ao mesmo tempo tem qualquer possibilidade de fuga negada,
ela fez a única alternativa ao seu alcance, e golpeou a criatura
mais próxima com qualquer coisa que tivesse a mão.
A cabeça insectóide dobrou-se
para o lado com um estalo alto pela com
a força do golpe
desferido. As demais criaturas ficaram paradas, algumas deram um
passo atrás. Aparentemente não esperavam nenhuma resistência.
Diante da hesitação de seus
algozes e com o coração batendo acelerado, Aline agarrou o objeto
com as duas mãos e partiu para o ataque, golpeando cegamente.
Dois monstros caíram do seu lado
antes que os outros começassem a reagir. Alguns se afastaram,
possivelmente temendo serem as próximas vítimas de sua fúria
assassina. Outros
tentaram atacá-la por trás. Girando o corpo, golpeando um deles, o
que fez os outros hesitarem por um instante, enquanto suas antenas
moviam-se freneticamente.
Aline olhava todos ao seu redor
sentindo a tensão em seu corpo, como uma mola pressionada ao seu
máximo. Suas mãos erguidas ao lado de sua cabeça unidas ao redor
do objeto que lhe servia de arma. Sua respiração arfando, aos
poucos foi reduzindo de intensidade, se acalmando. Mas se acalmar era
o que ela menos queria nesse momento, porque com a calma viria
novamente o medo, e medo era um luxo que ela não podia mais se
permitir naquele momento.
- Vocês querem mais? Então venham pegar! - bradou em desafio.
Aparentemente, este
era todo o incentivo que as criaturas precisavam, pois como um só
eles voaram para cima dela. Ela brandiu sua arma para um lado e para
o outro, a cada golpe derrubando um deles.
Mas eles eram
muitos, incontáveis.
Era uma batalha
condenada desde o início.
Eles a agarraram e
puxaram para todos os lados, o objeto que ela usara como arma foi
arrancado de suas mãos, e eles continuaram puxando, esticando seus
braços e pernas abertos. O movimento das antenas agora parecia uma
gargalhada silenciosa, zombando de sua presa. Sentia a dor em suas
juntas se espalhando por seu corpo e gritou, certa de seu fim.
Repentinamente, a
pressão em seu braço esquerdo afrouxou, e sentiu o movimento ao seu
redor, enquanto passaram a puxá-la para uma única direção pelos
outros membros de uma forma desajeitada.
Aline foi derrubada
quando um vulto negro voou por cima de si sobre seus algozes.
Observou perplexa enquanto o vulto pulava de criatura em criatura que
saiam em debandada, dispersando-se e enfiando-se em quaisquer buracos
escuros que encontrassem para se refugiar. Levantou-se rapidamente e
olhou em volta em meio a confusão, procurando lugares para se
esconder.
O vulto já se
encontrava a uma certa distância quando retornou lentamente. Aline
procurou algum objeto com o qual pudesse se defender, mas não havia
nada além dos corpos caídos dos grandes insetos que a atacaram, e
cujos sobreviventes já não estavam mais a vista. Afinal, não sabia
se fora salva, ou se era um aperitivo disputado para o jantar.
Conforme
o vulto se aproximava, foi se tornando possível distinguir-lhe as
formas, como se ficassem pouco a pouco mais nítidas. Era algo como
uma grande pantera, maior do que qualquer uma que Aline já vira, não
que ela já tivesse visto alguma pantera em sua vida, mas a criatura
de pelos negros que agora se aproximava em passos lânguidos e
trazendo algo em sua boca chegava quase a altura de seu peito.
Contraditoriamente,
ao olhar para os olhos que pareciam dois brilhantes cristais de
âmbar, Aline sentiu uma onda de alívio atravessar seu corpo e
relaxou sua guarda. Reconhecera algo neles, algo que sua mente
racional insistia em dizer ser impossível, mas sua mente racional
não parecia ser a melhor conselheira neste momento.
- Tom!? É você?
A
pantera negra estreitou seus olhos, dando a impressão de estar
prestes a dar o bote. Soltou o objeto em sua boca e levantou a cabeça
de forma imponente.
-
Sir Thomas III, cavalheiro
da irmandade dos gatos negros.
- disse com um forte sotaque, parecendo um ator de um filme antigo. -
Sim, sou eu!
- Você não parece
com nenhum cavaleiro que eu já tenha visto. - Aline comentou de
forma abrupta.
- Eu disse
cavalheiro! Ou você consegue me imaginar em cima de algum cavalo?
Ela
conseguia. E teve de prender o riso com a imagem que conseguia ser
menos surreal do que o fato de que estava conversando com uma versão
gigante do gato de sua irmã.
- O que eram aquelas
coisas?
- Vermes que
infestam todos os mundos, rastejando na escuridão, sobrevivendo da
podridão dos outros. Em seu mundo vocês os chamam de baratas. - ele
respondeu se abaixando para apontar para o objeto que trouxera em sua
boca. - Estavam atrás disso. Você deveria tomar mais cuidado com
algo tão valioso.
Aline pegou o objeto
do chão onde Thomas o deixara e notou surpresa ser o mesmo que usara
como arma, minutos atrás.
- Mas isso é apenas
um urso de pelúcia!
-
Claro, assim como isso no seu pescoço são apenas duas hastes de
metal dourado perpendiculares entre si.
Ela ignorou o
sarcasmo na voz do felino e tocou a cruz dourada por um instante como
para ter certeza de que ainda estava lá.
- Que lugar é este?
O que estamos fazendo aqui?
- Estamos no limiar
do reino dos pesadelos, e eu trouxe você aqui para me ajudar a
salvar sua filha. Mais alguma pergunta tola ou podemos seguir em
frente? - ele respondeu mostrando os dentes e dando-lhe as costas sem
esperar por resposta.
Ela
ainda tinha muitas perguntas, mas como não sabia qual delas se
enquadrava ou não na categoria “tola” preferiu se calar por ora.
Pegou o urso ainda caído e seguiu Sir Thomas aonde quer que ele a
estivesse guiando. Ele mencionou que estavam ali para salvar sua
filha e isso era mais importante do que qualquer outra coisa.
* * *
Nos
sonhos, às vezes vamos de um lugar para o outro sem nos darmos conta
de como isso aconteceu. Ao tentarmos relatar estes deslocamentos no
dia seguinte, nos confundimos, chegando ao ponto de dizer “era ali,
mas também era lá”.
Desta
forma, o cenário ao redor de Aline e Thomas mudou de uma caverna
úmida e rochosa para uma densa floresta de plantas semelhantes a
trepadeiras petrificadas retorcidas e emaranhadas como uma gigantesca
teia de aranha, das quais brotavam frutos murchos enegrecidos, cada
um do tamanho de bolas de basquete que exalavam um odor pútrido.
Thomas
ia na frente agachado, com passos curtos e lentos, como um gato à
espreita de um pombo desavisado. Aline o seguia sem um pio, já
participara de tocaias o bastante para saber a importância da
discrição a fim de não avisar o alvo de sua presença.
Sentia
falta de sua pistola. A segurança do aço frio em suas mãos
ajudaria a aquietar seus espírito, além de dar algum senso de
realidade a toda aquela loucura.
Virou-se
de repente, esquadrinhando a mata ao seu redor. Não vira nada, mas
sentira alguma coisa, como um movimento no canto do olho. Voltou-se
novamente para o outro lado. A mesma sensação, mas ao olhar, não
havia nada lá.
Pensou
em avisar Thomas, mas viu que ele já se distanciara, aparentemente
não se importando em deixá-la para trás. Rangendo os dentes de
raiva ela apertou o passo para alcançá-lo. Sentia que algo a
observava e olhava para os lados sem enxergar nada por entre as
folhagens. Sem perceber, apertou mais o urso em suas mãos, como quem
segura uma arma em uma situação de risco, ou como uma criança com
medo do escuro.
Na
pressa ela pisou em um dos estranhos frutos enegrecidos que estava
espatifado no chão em seu caminho. Seu rosto se contorceu de nojo
quando sentiu um cheiro de ovo podre, vinagre alguma coisa
excessivamente doce se espalhar. Ergueu o pé de onde escorria um
líquido viscoso e conteve uma ânsia de vômito.
Novamente
teve a sensação de ser observada, mas diferente de antes ela ficou
etática, fingindo prestar atenção nos pequenos fragmentos brancos
como ossos que não pareciam nem um pouco com sementes dentro do
fruto em que pisara. Enquanto isso, tentava enxergar o que quer que
despertava os seus instintos com o canto dos olhos.
E
foi assim que ela viu o vulto.
Não
podia distingui-lo muito bem, parecia ser uma pessoa, mas tinha
certeza de que estava ali. Viu que Thomas se distanciara de novo, e
contra toda a prudência chamou por ele.
O
grande gato negro levantou suas orelhas e voltou-se em sua direção,
ao que ela lhe fez um sinal para que retornasse, o que ele fez após
apenas um momento de hesitação.
-
O que foi? - ele perguntou com um leve rugido quando já estava
próximo dela.
Ela
fez um sinal discreto para o lado em que vira o vulto, mas Thomas
continuava olhando para ela de forma inquisidora. Aline tentou mais
uma vez, fazendo um gesto com a cabeça, nem tão sutil, na esperança
que ele caísse em si. Quando isso não deu certo ela soltou um
suspiro, vencida.
-
Tem alguma coisa ali. - e apontou, claramente dessa vez.
Thomas respirou
fundo e olhou rapidamente para a direção para onde ela apontava
antes de responder.
- Não há nada ali.
Nada importante, pelo menos. Apenas alguns sonhos perdidos. É com os
corvos que precisamos nos preocupar. Esta área é infestada deles, e
já deveríamos ter encontrado alguns a esta altura.
- E o que faremos
agora, então?
- Nós não faremos
nada. Você fica aqui e aguarda. Eu vou na frente para tentar
descobrir o que está acontecendo.
- Ficar aqui? Por
que não posso ir com você?
- Porque iria me
atrasar, como já está fazendo. - ele respondeu dando-lhe as costas.
- Permaneça na trilha e ela te protegerá.
Aline
abriu a boca para dizer o que pensava para aquele gato vira-lata, mas
com um salto ele já havia desaparecido, como se feito de sombras.
Deixando-a sozinha resmungando sobre como iria transformá-lo em
tamborim assim que voltassem para casa.
Então
olhou para a vegetação ao seu redor e deu-se conta de estar
completamente só em um lugar estranho e desconhecido e se perguntou
se conseguiria voltar para casa.
A
sensação de estar sendo observada se intensificou e ela
inconscientemente apertou o urso de pelúcia em seus braços.
Sentia-se desolada como uma criança perdida em um lugar escuro.
Parecia
sentir um vulto se movendo ao seu redor sempre que não estava
olhando.
Quanto tempo já havia se passado desde que Thomas havia partido? Ela não sabia dizer. E se ele não voltasse? E se sua filha já estivesse morta? Conforme as perguntas se acumulavam em sua mente, sua respiração acelerava.
Dizia
para si mesma que estava imaginando coisas. Thomas dissera que não
havia nada lá.
Nada de
importante, ele dissera.
Em
meio a estes pensamentos inquietantes, ela ouviu algo. Primeiro achou
que fosse o vento, mas percebeu que as folhas não se moviam. Prestou
atenção e notou se tratar de uma voz. Tentou identificar o que
dizia e ficou surpresa ao notar que chamava por um nome.
Seu nome!
Aline
levantou-se em alerta e apurou os ouvidos para ter certeza de ter
escutado certo.
Sim,
a voz sussurrava seu nome. Aline.
Aline.
E não era uma voz qualquer. Ela a reconhecia.
Com pouco
esforço conseguiu determinar de onde vinha. Cada vez mais a voz ia
se tornando mais nítida, mesmo que parecesse distante.
Quando ia
entrar na mata, ela hesitou. Olhou para a direção por onde Thomas
partira e lembrou-se de sua recomendação para permanecer onde
estava. Mas a voz insistia e ela tomou sua decisão.
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