Pages

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O Homem dos Olhos Vermelhos



Leitos de hospitais geralmente são lugares tristes durante o dia. A noite essa tristeza se intensifica, solidificando-se nas paredes recobertas de limo, no teto mal iluminado pelas lâmpadas fluorescentes, na camada de tinta que escapa das paredes. Fiz essa pequena constatação pessoal quando passei três dias e três noites inteiras, devidamente hospitalizado, graças a um calculo renal de aproximadamente dois milímetros, semelhante a um grão de arroz alojado em meus rins. Dizem que a dor do parto é uma das maiores dores que o ser humano pode sentir. Besteira! Passei dois anos nutrindo esse “filho bastardo” em meu “ventre”, e no fim me vi obrigado a expulsá-lo já em fase adulta. Cinco milímetros em forma de uma pequena pedra pontuda, formada basicamente de oxalato de cálcio e acido úrico...


            O fato é que durante aqueles três dias em que passei acordado, me virando interminavelmente sobre os lençóis novos, recém estirados, recebi basicamente duas visitas. Uma delas, é claro, era minha mãe. Chegava às dez e saia pontualmente às doze, quando terminava o horário matinal de visitas. Trazia meu almoço e enquanto me alimentava ela checava com cuidado os curativos provocados em meu punho esquerdo pela mão desajeitada de uma enfermeira descuidada. Minha mãe era uma boa pessoa e agradeço a Deus por ela. Mas o fato é que sempre tive medo do tempo e do que ele poderia fazer comigo. Mais ainda, do que ele poderia fazer com ela.

Fui testemunha ocular do quanto o tempo pode ser cruel logo no primeiro dia de internação no hospital Santa Maria, naquele inverno de 1967. O homem era um senhor já de idade. Tinha no rosto um aspecto cansado, com profundas olheiras marrons.  A pele flácida, repuxada drasticamente para baixo, formando uma papada enorme e disforme logo abaixo do queixo. As costas arqueadas e o andar lento, vagaroso. Estava acompanhado por uma garota extremamente bonita, que o ajudava a carregar o suporte metálico do soro. Seus olhos eram tão verdes e brilhantes quanto duas bolinhas de gude.
- Por aqui senhor. – Disse educadamente a outra mulher, que entrou no quarto logo em seguida, tomando a frente e indicando uma das camas ao meu lado. Usava um grande jaleco branco, que descia pelos contornos magros de seu corpo, quase até os joelhos. Seu rosto parecia tão cansado quanto o do senhor de idade, mas ela conseguia (ou pensava que conseguia) esconder isso muito bem com o blush e o pó compacto, espalhado pelo rosto como massa corrida em uma parede esburacada.
- Tem certeza de que vai ficar bem vovô? - Perguntou a garota dos olhos de bolas de gude. O velho balbuciou algo inaudível e se deitou, cruzando as pernas e os braços, encolhendo o corpo de lado em posição fetal. A mulher de jaleco o ajudou a tirar os sapatos e as meias, largando-os ao pé da cama após notar com crescente interesse a camada marrom de sujeira, semelhante à marca deixada em suas roupas intimas após uma incursão mal sucedida ao mundo da higiene pessoal.
- O horário de visitas é das dez às doze, querida. – Nesse ponto a voz da enfermeira oscilou, e por Deus... Que todos os santos me perdoem, mas eu juro que senti uma pontada de prazer despontar de seus lábios.
A garota corou e procurou, provavelmente nos recantos mais profundos de sua mente, se lembrar de como deveria ser um sorriso sincero. Tentou reproduzi-lo com o máximo possível de fidelidade, mas o que conseguiu foi apenas um ligeiro entreabrir de lábios.
Alguns minutos depois a enfermeira saiu, deixando o senhor de idade aos cuidados da garota dos olhos de bolas de gude.
- O que ele tem? – Perguntou minha mãe, rompendo o silêncio monótono do quarto.
- Alzheimer... – Disse ela. O tom parecia inarticulado, sussurrando as palavras, espalhando-as pelo quarto com o temor carregado na voz. Uma furtiva lágrima passeou por sobre suas bochechas.

Com o passar do tempo as visitas de ambas tornaram-se menos freqüentes. O leito do hospital tornou-se mais vazio. Cerca de uma semana depois o avô da garota dos olhos de bolas de gude e eu recebemos a segunda visita da qual falei no inicio desse relato. Não citei nomes pois não me atrevi a nomeá-lo, tamanho fora o terror que se alojara em minha mente. Mas se for necessário fazê-lo, prefiro chamá-lo de “O homem dos olhos vermelhos”, mesmo sabendo, inconscientemente, que a criatura que nos visitara aquela noite era tudo, menos humana.
A lua cheia despontava no céu, grande e redonda, ofuscando parcialmente o brilho das estrelas. As persianas, como sempre, estavam abertas, e pequenas tiras de luminosidade se atreviam a invadir a escuridão parcial do quarto. Assim como nas outras noites, eu não conseguira pegar no sono.
Já passava das duas da madrugada quando a porta do quarto foi aberta. Um frio cortante pareceu inundar o quarto, de repente, antes que eu me desse conta de que o vulto parado em frente a porta não era o da enfermeira. Seus contornos eram másculos e bem definidos.
O homem de jaleco moveu-se, sentando-se com cuidado no mesmo banco de madeira que a garota dos olhos de bolas de gude sentara apenas alguns dias atrás, deixando que um pequeno feixe de luminosidade que atravessara a persiana iluminasse parcialmente seu rosto. Fora apenas por uma fração de segundos, mas eu vi. O sangue de meu corpo gelou por completo. O olhos do homem de jaleco eram vermelhos, como brasas retiradas das profundezas do inferno. Fitavam o velho com alucinado interesse, enquanto pareciam queimar viva e dolorosamente sobre seu rosto.
Pensei em levantar e fugir. Correr. Me esconder em qualquer lugar onde o homem dos olhos vermelhos jamais poderia me encontrar, mas o medo me paralisou. O senhor do destino, que no final sempre comanda nossas ações, me fez permanecer ali, de olhos arregalados, fitando os contornos demoníacos do homem dos olhos vermelhos, enquanto sua cabeça se inclinava ameaçadoramente em direção ao velho. Suas mãos de dedos finos e longos tinham garras nas pontas. A pele dos dedos era flácida, enrugada e cinza, semelhante a pele em decomposição de um cadáver. Abraçou o punho do velho com seus dedos mortos e removeu com cuidado a agulha. Elevou-o até a boca, envolvendo o pequeno orifício provocado pela agulha com seus lábios ressecados e cinzas. O que se seguiu posteriormente fora um verdadeiro teatro de horrores. Eu podia ver o sangue fluindo nas veias do velho, indo de encontro aos lábios mortos do demônio de olhos vermelhos. Uma pequena poça de sangue se formou ao pé da cama, e quando pensei que o demônio dos olhos vermelhos havia terminado, algo mais aconteceu. Ele abaixou-se, inclinando seu corpo em um movimento humanamente impossível, sem dobrar os joelhos, até o chão. Uma enorme corcunda apareceu em suas costas e o jaleco de doutor que usava tornou-se pequeno, revelando uma massa de ossos magros, visivelmente desproporcionais, grudados à pele morta. Uma coisa grotesca e disforme, que jamais ousarei chamar de língua, saiu do interior de sua boca, contornando o ar em movimentos delicados e ao mesmo tempo horriveis, como uma cobra manipulada por um encantador de serpentes, e lambeu o chão. Seus olhos brilharam novamente, com o fogo oriundo das profundezas do inferno, e por um momento apenas me encararam, como se dissessem: “Você é o próximo.”
Mas eu não fui o próximo. Ao menos não naquela noite. O demônio dos olhos vermelhos se levantou, satisfeito, virou as costas e saiu, largando o velho morto atrás de si.
Muitos anos se passaram desde o acontecido. Na época tinha apenas dezoito anos e toda uma vida pela frente. Uma vida que ficaria marcada para sempre pela presença do demônio dos olhos vermelhos, durante uma noite escura, num leito frio e solitário de hospital. Hoje tenho noventa e dois anos e me encontro deitado no mesmo leito. Esqueci-me do gosto da comida que minha mãe preparava, do rosto da garota, mas do demônio dos olhos vermelhos eu jamais me esqueci. É o mesmo que se encontra parado agora, na porta do quarto, me observando com curiosa atenção.

FIM

9 comentários:

  1. Adorei o texto e principalmente a naturalidade com que narra em primeira pessoa! Pelos deuses, eu senti realidade em cada palavra narrada!

    Só o final que ficou um pouco frio, distante demais. Talvez ficaria mais satisfeito se os últimos dois parágrafos não existissem.

    Se assim o fosse, sentiria o mesmo que senti no final de Inception (A Origem) - "O que será que to aconteceu?" - e o texto se perpetuaria em mim!

    Anyway está fantástico. Eu realmente invejo violentamente sua capacidade narrativa!

    ResponderExcluir
  2. A narrativa realmente ficou ótima. Não vejo o mesmo que o Rainier, pois o final encerra o ciclo prometido pelo demônio. Houve coerência e a trama está boa, principalmente a parte descritiva. Parabéns...

    ResponderExcluir
  3. Fico feliz que tenham gostado pessoal. Esse e outros contos tão - e muito provavlmente mais rs - interessantes podem ser encontrados na antologia "O Grimoire dos Vampiros" da Editora Literata (o conto original era um pouco maior. Tive que diminui-lo para que coubesse nas especificações exigidas pela coletânea).

    Franz, desculpe-me pela demora para responder, mas já estou trabalhando no banner e assim que chegar em casa passo ele para você.

    Abraço grande!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Edilton, todos trabalhamos muito, não se preocupe com o tempo de envio do banner. Quando chegar, coloco na frente de batalha.
      Novamente, parabéns pelo conto. Não sabia que ele era parte de uma antologia. Show!!!

      Excluir
  4. Ah, desculpa ae mas não tenho como não dizer isso depois que terminei a leitura: FODA! hahahahaha :D
    Cara, o jeito que terminou foi tudo de bom (ou de ruim né! rs). Aterrorizante. Muito bom. Só de pensar em hospital já me dá calafrios... é um lugar horrível que só traz coisas ruins a minha mente. Mas a sua leitura foi fantástica. Demais!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir
    2. kkkkkk O curioso é que eu fiquei mesmo internado em um hospital que tinha essas características quando tive pedra nos rins. Foi dai que tirei a ideia para o conto rs.

      Excluir
  5. Gostei e muito, não sou fã da narrativa em primeira pessoa, mas podem ser feitas grandes histórias através desta ferramente. Resumindo, o seu texto PROJETA uma história de terror, e essa projeção é perfeita, mas faça melhor ainda, nos faça viver as próximas histórias, nada de projeção. Por se tratar de um demônio já torna o conto perturbador. Divido a mesma opinião que Rainier, o conto não precisa ter um fim tão exato, pois exatidão quebra todo o clima. O ar de suspense tem que ser mantido. No quesito de ideia você é genial, na descrição é incrível.

    Parabéns!

    ResponderExcluir
  6. Edilton, como disse no twitter eu tb estive internada por conta de crise renal (estava gravida na epoca) e no hospital que estava aconteceram também coisas absurdas... Fiquei uma semana internada e uma amiga me fazendo companhia (pois tenho horror a hospitais, se me vejo sozinha em um eu tenho crises de panico) e até alguém deitar no sofá cama com ela aconteceu... detalhe, estavamos sozinhas no quarto! Seu conto me lembrou muito isso, porque eu vi alguem no banheiro e ela sentiu alguem empurrando ela pra fora do sofa a noite inteira e ambas ficamos apavoradas rs

    Mas devo te dizer que algumas repetições no texto ficaram meio cansativas. Usar mais sinonimos ou buscar novas maneiras de explicar alguma coisa já fazem a coisa fluir mais... Adorei a comparação que fez aos olhos da garota "a garota dos olhos de bolas de gude" mas achei que utilizar o termo mais de 2x já ficou meio pesado... Por ser um conto curto não dá tempo de o leitor esquecer uma determinada expressão como daria num conto maior, e isso acaba afastando um pouco quem lê da historia... Fazendo com que a pessoa que estava mergulhando no enredo comece a sair das aguas turbulentas da sua narrativa.

    O clima todo ficou muito bom, você realmente conseguiu trazer aquela atmosfera da noite num hospital e eu discordo do Rainier e do Mauricio em parte, acredito que se tivesse terminado na parte do "Você é o próximo" já daria um grande final... Ficaria realmente com aquela sensação de "será que foi??? Será que aconteceu??? Ai que agonia!!!!" Mas eu gostei do modo como terminou, dele ja velhinho sabendo que a morte agora é certa e que só resta rezar pra que não sinta dor...

    Minha dica é essa, explorar mais as diferentes formas de dizer algo... Fugir um pouco da zona de conforto de uma expressão que funcionou e brincar mais com as possibilidades.

    De resto, muito bom, imaginação mil! Você fez algo que prezo muito que é justamente pegar algo que te dá medo e brincar com isso, escrever sobre aquilo que você conhece (no seu caso a internação do hospital) e enxergar isso com os olhos do personagem... Parabéns!

    ResponderExcluir