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Parte 1/Parte 2
Aline abriu os olhos sem a menor vontade de voltar a dormir, apesar
de ainda se sentir sonolenta. Olhou para o relógio no móvel ao lado
da cama e viu que acordara pouco antes dele tocar. Muito pouco tempo
para tentar voltar a dormir, decidiu. Alcançou o relógio e desligou
o despertador.
Espreguiçou-se na cama e viu que seu marido ainda dormia a sono
solto. Decidiu deixar o alarme acordá-lo e sentou-se e ficou por
alguns minutos parada, sentindo um gosto ruim, amargo, em sua boca.
Enfim se levantou, esticando o corpo todo, tentando dissipar a
preguiça entranhada em seus músculos e foi ao banheiro. Olhou-se no
espelho e não gostou muito do que viu. Estava com uma cara amassada
e cheia de olheiras.
- Quem consegue estar linda e maravilhosa antes das cinco da manhã?
- perguntou ao seu reflexo, e não obtendo resposta completou. -
Talvez a Gisele Bündchen.
Sua figura no espelho lhe deu um pequeno sorriso, como que para não
deixar a piada passar sem graça.
Começou a escovar os dentes, para se livrar daquele gosto horrível
da boca. Afinal, de onde vinha aquele gosto? Só tomara duas cervejas
na noite anterior, não podia estar de ressaca por tão pouco, não
é?
Aline jogou uma água no rosto, tentando melhorar o aspecto da cara
no espelho e não viu muita mudança, pelo menos além do fato de
agora estar amassada, com olheiras, e molhada. Foi nesse momento que
viu, pelo canto do olho, no reflexo do espelho algo se movendo. Por
um instante achou ser apenas a sua imaginação, tentando ignorar,
mas logo em seguida percebeu outro movimento no mesmo ponto do
banheiro, atraindo a sua atenção. Quando fixou o olhar, um arrepio
subiu por sua espinha, suas mãos fecharam em garras na pia, o corpo
todo se tencionou até explodir em um grito.
Um instante depois André entrava aos tropeços no banheiro da
suíte, encontrando sua esposa em cima da privada aos berros
apontando para um ponto do chão próximo do box. Quando seu cérebro
ainda sonolento conseguiu se dar conta do tipo de emergência em que
se encontrava voltou ao quarto retornando devidamente armado para
enfrentar a criatura que morreu esmagada após uma feroz batalha sob
seu chinelo.
Quando a adrenalina baixou, André explodiu em uma gargalhada. Aline
deu dois tapas em seu marido, enfezada.
- Não tem graça!
- Claro que tem. - ele respondeu entre explosões de riso. - Você
já invadiu favela, já peitou traficante, participou de negociação
de refém e se apavora diante de uma simples barata?
E voltou a rir.
Aline sentia a face arder e abriu a boca, mas sua fala foi
interrompida pelo ranger da porta do quarto se abrindo, o que
capturou a atenção do casal que ficou em silêncio, dirigindo suas
atenções para fora do banheiro da suíte em direção a origem do
som. Uma pequena criatura vinha cambaleando em sua direção.
- Mamãe, você me acordou! - resmungou Cristina esfregando os olhos
abraçada ao seu ursinho.
Aline se aproximou da filha emburrada, agachando-se a sua frente,
passou a mão pelos cabelos desgrenhados.
- Ô minha dorminhoca, é que a mamãe viu uma barata desse tamanho.
- disse abrindo os braços.
- Verdade? - a criança arregalou os olhos, apertando mais o bicho
de pelúcia nos braços.
- Verdade! Mas pode deixar que o papai já matou aquele bicho feio e
nojento.
A menina olhou para o pai atrás de Aline, que mostrava com os dedos
o real tamanho da ameaça matutina. Pai e filha trocaram um sorriso
enquanto Aline a pegava no colo para irem tomar o café da manhã.
* * *
- Você estava agitada esta noite. - André perguntou enquanto
ligava a cafeteria. - Sonhou alguma coisa?
Aline ficou pensativa por alguns instantes, antes de responder.
- Não sei. Na verdade, nunca lembro dos meus sonhos. Só sei que
acordei pensando na minha irmã.
- Também, com tudo que está acontecendo na vida dela.
- É. Mas ainda não acredito que aquele canalha a largou assim.
Cristina, sentada ao lado da mãe na mesa da cozinha, tentou falar
alguma coisa, mas apenas fez sons indistintos.
- Ô meu amor. Mamãe já não disse que é feio falar de boca
cheia?
A menina bebeu uma golada de leite, e depois de engolir, soltou um
suspiro sonoro antes de perguntar:
- Mamãe, o que é um canalha?
Aline e André se entreolharam por um instante, buscando ajuda um no
outro. Por fim foi Aline quem respondeu a filha.
- Canalha é uma pessoa muito feia que parece legal mas faz os
outros chorarem.
- Então um canalha é uma pessoa má?
- É. Pode-se dizer que sim.
- Então eu espero nunca encontrar com um.
- Eu tbm espero, querida. - disse acariciando os cabelos da filha. -
Mas agora a senhorita precisa se arrumar senão vamos chegar
atrasadas na escola.
E a menina saiu correndo para o quarto com o urso a tiracolo.
- Acho que você devia ligar pra ela. - disse André enquanto
tiravam a mesa.
- Eu estava pensando em passar lá depois do trabalho, mas vou ligar
antes, é claro.
- Se quiser, pode deixar que eu pego a Cristina quando sair da
escola hoje.
- Obrigado, querido. - ela disse, envolvendo seus braços nas costas
largas dele. - Sabia que você é o melhor marido do mundo?
- Sabia!
- Convencido. - disse soltando-o.
Em um movimento inesperado ele girou o corpo, agarrando-a e
tascando-lhe um beijo.
- Estou pronta! Vamos pra escola, mamãe.
Desfizeram o beijo e viram a filha vestida com a fantasia de
princesa do seu aniversário na porta da cozinha com o eterno
companheiro de pelúcia nas mãos. Depois de algumas risadas,
começaram a árdua tarefa de explicar para a menina que precisava
vestir o uniforme da escola, além deles mesmo se arrumarem para seus
respectivos empregos.
* * *
Aline chegou na delegacia um pouco atrasada, mas como seu chefe
estava ocupado em sua sala nem percebeu e ela pôde se dedicar a
revisar as investigações em que estava trabalhando. Ela estava com
dificuldade de se concentrar, pensando na irmã. Tentara ligar para
ela duas vezes, mas a ligação caiu na caixa postal.
Estava tão entretida em seus pensamentos que levou um susto quando
Daniel chegou batendo com o jornal em sua mesa.
- Onde essa porra de cidade, vai parar?
- Bom dia, pra você também Daniel. - ela falou sem lhe dirigir o
olhar. Estava acostumada com o jeito do colega.
- Bom dia é o cacete! Olha só que absurdo na capa desse jornal de
hoje!
Aline pegou o jornal, um daqueles que se refestelam com a desgraça
alheia e se você o espremer poderá ver o sangue escorrendo dele. Na
primeira página, uma foto de um homem retalhado em cores bem vivas
sob a manchete: “PROMOTOR QUASE VAI PARAR NA VALA DE INDIGENTE”.
- Dá pra acreditar? Um dos poucos promotores decentes dessa cidade
acabar desse jeito?
- Diz aqui que só reconheceram ele por causa da aliança que ele
ainda usava.
- Eu li. Se não fosse por isso ele teria ido pra vala como um
indigente. Impressionante, né?
- Mais impressionante é nenhum vagabundo ter arrancado o dedo dele
pra roubar a aliança.
A porta do delegado se abriu, dando passagem ao próprio,
acompanhado de um jovem arrumado, de olhos cabisbaixos. Os dois se
aproximaram da mesa de Aline. O delegado cumprimentou os agentes,
dando-lhes bom dia, ao que foi retribuído e apresentou o rapaz ao
seu lado como sendo Alan, um “carne-fresca recém-saído da
Academia de Polícia, pedindo a eles que apresentassem a delegacia e
mostrassem como tudo funciona por ali.
Aline se levantou para cumprimentar o novo colega e notou que a mão
dele estava suada, e que ele evitava olhar nos olhos dela ou dos
demais, mantendo o olhar baixo. Lembrou-se do seu primeiro dia, e
como se sentiu nervosa e ansiosa.
- Então ele é o “fraldinha” que mandaram pra cá? - Daniel
disse alto batendo no ombro do novato.
- “Fraldinha”? - repondeu Alan, soltando a mão de Aline.
- Liga não. É o apelido da sua turma. O grupo mais jovem a ter se
formado na Academia nos últimos anos. Não tinha ninguém com mais
de trinta na sua turma, não é? - Aline interveio.
O rapaz acenou a cabeça, concordando.
Um outro agente deu um aviso para Aline interrompendo a conversa.
- Vamos novato, você vem comigo pegar um depoimento. Mas bico
calado. Hoje você só observa e faz anotações.
* * *
O tal depoimento foi de um senhor Maycom dos Santos, apesar de que
chamá-lo de senhor era algo estranho, já que ele não tinha mais
idade do que Alan. Era a respeito da morte brutal do seu pastor. A
vítima foi encontrada carbonizada no centro da pequena igreja que
ele presidia.
Assim que o depoente entrou na sala, Aline notou as olheiras e olhos
inchados como quem chorou muito e dormiu pouco.
O depoimento dele não estava acrescentando muito às informações
que eles já haviam coletado. Confirmou os conflitos da vítima com
um grupo de travestis que fazia ponto de prostituição próximos da
igreja, por causa dos discursos inflamados em suas pregações.
Pregações essas que também condenavam os traficantes que
alimentavam o vício de drogados nas ruas ao redor. Informações que
já haviam sido fornecidas pelos outros fiéis.
O diferencial era que, ao contrário dos fiéis ele não acreditava
que estes grupos tivessem qualquer ligação com a morte do pastor
Wanderson. Segundo ele, apesar das ameaças, os travestis não teriam
inclinação para um ato tão hediondo quanto queimar alguém daquele
jeito, e já fazia mais de um ano que era o depoente quem tomara a
frente do trabalho de evangelização dos adictos, e, por isso, ele
seria um alvo muito mais provável dos traficantes do que o pastor.
Aline sentiu que havia algo mais. Alguma coisa que Maycom ficava
relutando se deveria ou não falar. O esfregar constante das mãos, o
olhar baixo e hesitante, eram sinais gritantes. Mesmo assim, sabia
que não poderia forçar diretamente sob risco de perdê-lo. Sabia
que precisaria criar confiança e acolhimento para que ele se
abrisse.
Só que foi muito mais fácil do que ela esperava. Bastou segurar
nas mãos dele e perguntar em voz baixa e pausada se havia mais
alguma coisa que ele gostaria de acrescentar para que ele agarrasse
sua mão e começasse a falar “só porque ela era cristã.”
E contou que após a morte do pastor, descobriu que as contas da
igreja não batiam, havendo depósitos muito acima dos recolhimentos
nos cultos, mesmo com o pastor declarando nunca haver dinheiro para
ampliar os projetos sociais. Além disso, quando começou a fazer as
visitas caseiras para o aconselhamento espiritual, como o pastor
fazia, as fiéis lhe confidenciaram que ele tinha “comportamentos
inapropriados” com elas
Por fim, ele disse emocionado que tomar conhecimento deste outro
lado do homem que havia salvado sua alma das drogas era como se ele
houvesse morrido uma segunda vez.
* * *
Após o depoimento, Aline pediu para Alan ir iniciando o relatório
enquanto ela ia fumar um cigarro. Fez isso não apenas porque este
tipo de tarefa era delegada aos novatos, mas porque ela viu a
quantidade extensa de anotações que ele fez.
Do lado de fora da delegacia, como sempre, ela acendeu o cigarro,
deu uma tragada, e deixou-o queimar entre os dedos. Ela não tinha
realmente o hábito de fumar, apenas aproveitava a pausa que isto
proporcionava para se afastar de toda a pressão e stress de seu
trabalho para arejar a cabeça, colocar os pensamentos em ordem.
Naquela tarde
específica, ela
queria aproveitar esses minutos para tentar
falar com sua irmã.
Apenas quando seu cigarro já queimara até a metade é que sua
ligação obteve resposta.
- Alô? - atendeu uma voz sonolenta.
- Leila!? Onde estava? Tentei te ligar várias vezes e você não
atendeu. - disse um pouco mais alto do que pretendia.
- Eu estava dormindo. O remédio que o médico receitou me derrubou.
- Você está bem? - perguntou com a voz um pouco mais controlada.
Ouviu um som de choro por alguns minutos. Sua irmã soluçava e
fungava, aparentemente sem conseguir responder.
- É claro que você não está bem. Pergunta idiota.
- Ai, Aline. As vezes eu acho que nunca vou parar de chorar. Eu
tenho medo de me afogar em minhas próprias lágrimas.
Aline se segurou para não dizer o quanto aquele comentário era
melodramático. Sua irmã estava sofrendo e não queria piorar as
coisas. Mas não sabia muito bem o que dizer para confortá-la.
Sempre fora Leila quem cuidara dela e não o contrário.
- Oi, Sir Thomas. - Leila disse de repente, parando de soluçar.
- Quem é Sir Thomas, Leila? Tem alguém aí com você?
- É o meu gato, você lembra dele?
- Você está falando daquele gato preto insuportável que me
odeia? Claro que lembro.
- Não fala assim dele. Não sei se suportaria passar por tudo isso
se não fosse por ele. Não é meu fofo?
O jeito que sua irmã falava, e a forma como o gato ronronava em
resposta, trouxe a sua mente a imagem de um antigo desenho animado em
que uma menina abraçava os animais com todas as forças.
- Mas Leila, o nome dele não era Tom? Que história é essa de Sir
Thomas, agora?
- É que eu achei que merecia um nome mais condizente com o seu
porte. Ele é quase um lorde. - respondeu rindo.
Aline acabou rindo também. Ficou feliz com o tom de voz da irmã,
mais leve, menos triste do que quando a ligação começou. Talvez
aquele gato idiota servisse para alguma coisa, afinal.
Olhou
para o cigarro e viu que já estava quase na guimba. Não demoraria
muito para virem procurá-la. E
não estava com muita paciência para ouvir sermão.
-
Leila, eu tenho de ir, mas passo na sua casa mais tarde para tomarmos
um café, pode ser?
-
Está bem. Eu também tenho que ir. Sir Thomas se meteu debaixo da
cama e está miando abeça. Acho que está com fome, o coitadinho.
-
Você mima demais esse gato. - Aline riu. - Te vejo mais tarde.
Beijo.
-
Até mais tarde, mana. Beijo.
Quando
Aline voltou para sua mesa, seus pensamentos ainda estavam com sua
irmã, falar
com
ela não diminuiu a angústia que sentia desde que acordara naquela
manhã. Talvez por isso, não escutou de primeira quando Daniel a
interpelou.
-
O Fraldinha aqui estava me atualizando sobre o depoimento. - disse em
tom jocoso, apontando para Alan. - Quer dizer que o tal pastor não
tinha nada de santo?
-
É o que parece. Ainda temos que checar, mas agora temos duas linhas
de investigação. O assassino pode ser um dos maridos traídos, ou
alguém envolvido em qualquer fraude de onde ele tirava os grandes
volumes de dinheiro.
-
Você quer saber o que eu acho?
Aline
respirou fundo, e olhou primeiro para Alan, como se dizendo “vai se
acostumando que a peça é essa mala sem alça todos os dias”, para
só depois se voltar para Daniel.
-
O que você acha, Daniel?
-
Eu acho esses pastores são todos uns pilantras que se aproveitam
desses evangélicos pra tomar uma grana e conseguir o que mais
quiserem.
Nesse
momento, Alan que permanecera calado, levantou-se de repente.
-
Pois o senhor fique sabendo que na minha igreja é bem diferente. O
meu pastor e eu trabalhamos juntos para recuperar crianças
abandonadas e abusadas, dando a elas acesso a educação e
acolhimento as custas de doações e muito trabalho voluntário.
Agora se me dá licença, vou arrumar essas pastas no arquivo.
E
saiu com um bolo enorme de pastas nas mãos. Aline tinha certeza de
que ele tremia, e quando ele já estava distante, voltou sua atenção
para Daniel, que permanecia boquiaberto e sem fala, um feito até
hoje só conseguido pelo delegado na
base da autoridade.
-
E não é que o Fraldinha tem bolas? - disse por fim. - Gostei do
garoto.
*
* *
No
caminho para a casa de sua irmã, Aline se sentia cansada. O dia fora
corrido, e curto demais para fazer tudo o que precisava ser feito,
como sempre. As pessoas reclamam da polícia não fazer nada, mas não
fazem ideia do quanto os policiais trabalham. Mas com tão pouco
pessoal e recursos era impossível dar conta de tudo.
E
além do seu trabalho normal, ainda teve que acompanhar o novato.
Ainda mais depois dele e Daniel terem se estranhado pouco antes do
almoço. A
partir disso, ele grudou nela e perguntava tudo e mais alguma coisa.
No
final do expediente, ele pegou sua mão e disse o quanto estava feliz
por ter encontrado uma alma cristã como ela para ajudá-lo nessa
nova fase de sua vida. Ao que Daniel, depois que o novato se afastou,
comentou, do
seu jeito peculiar,
que ela havia adquirido um admirador.
Mas,
enquanto dirigia, ela não conseguia parar de pensar nesse
comentário dele.
Um depoente mais cedo também a chamara de cristã. Logo ela que
fazia anos não pisava em uma igreja.
Uma
olhadela pelo espelho retrovisor deu-lhe a resposta na forma da
pequena cruz de ouro em seu pescoço, e um sorriso triste surgiu em
seus lábios. O que para Maycom e Alan simbolizava adesão
ao grupo dos cristãos,
para ela era uma lembrança de sua mãe. Lembrou-se
qual
fora
a
última vez que pisara em uma igreja, na
missa de
sétimo dia dela.
Enquanto
estacionava o carro pensou no quanto gostaria que ela estivesse ali
naquele momento e beijou a pequena cruz, como outrora beijara o rosto
da mãe quando esta a acalentara no meio da noite após um pesadelo.
*
* *
Na
natureza, alguns animais aprendem a pressentir quando há um predador
a espreita, pronto para dar o bote. Foi essa a sensação que Aline
teve ao descer do elevador no andar da irmã. Apesar de seus olhos
não perceberem nenhuma ameaça, seu trabalho na polícia civil a
ensinou a confiar nesses instintos. Por isso, discretamente pegou a
arma em sua bolsa, usando esta para escondê-la.
No
exato momento em que
tocou a campainha de Leila, a porta do apartamento vizinho se abriu e
uma senhora enrugada saiu de lá como um rinoceronte em fúria.
-
Aline, querida! Há quanto tempo! Você engordou.
-
Oi, dona Doralice. Uma boa tarde para a senhora. - ela respondeu,
enquanto tocava a campainha pela segunda vez.
-
Boa tarde, não, querida. O sol já se pôs, então é boa noite. - e
deu uma risada esganiçada, como se tivesse dito uma piada muito
engraçada.
-
É verdade. Desculpe o meu erro. - respondeu com seu melhor sorriso
amarelo.
-
Não precisa se desculpar, querida. Vocês jovens estão sempre com a
cabeça nas nuvens e não sabem aproveitar o tempo de forma correta.
"Será
que eu poderia alegar legítima defesa contra sufocação por chatice
se metesse uma bala nela agora?" Pensou e achou melhor guardar a
arma antes que a ideia se tornasse tentadora demais. Virou-se de
costas para a senhora que continuava a tagarelar.
-
Você por favor avise a sua irmã que o seu Marcelo do andar de baixo
ligou reclamando que está pingando água no apartamento dele. Eu
disse que do meu não podia ser, pois eu não abri nenhuma torneira
hoje. Nem tomar banho eu tomei.
"Disso
eu não duvido." pensou, e ficou na dúvida se chegou a falar em
voz alta. Se o fez, a vizinha não fez qualquer menção de ter se
tocado, pois continuou na sua ladainha.
-
E esse gato dela? Jesus, o bichinho está miando faz horas. Nem me
deixou ver a minha novela em paz.
Quando
mexeu na bolsa, Aline viu seu molho de chaves e lembrou que a irmã
lhe dera uma cópia da chave de sua casa, e este era o momento
perfeito para usá-la.
-
Aham, dona Doralice. Pode deixar que darei todos os seus recados para
ela. - e bateu a porta praticamente
na
cara da senhora.
"Que
figura."
Sem
o falatório constante em seus ouvidos, Aline pôde voltar a escutar
os próprios pensamentos e se perguntar do porquê de sua irmã não
ter atendido a porta, mesmo ela tendo tocado a campainha tantas
vezes. Aquela estranha sensação ainda a acompanhava, porém ao
ouvir o barulho do chuveiro, descartou-a como sendo apenas a sua
imaginação.
Foi
quando chegou ao corredor do apartamento que percebeu algo de errado.
O chão estava todo molhado com água que brotava por debaixo da
porta do banheiro. Em um impulso correu para tentar
abri-la
e nem notou o gato preto deitado próximo, arfando.
Depois,
quando perguntada sobre como tudo aconteceu, Aline não saberia
responder muito bem. Só lembraria que, de alguma forma, conseguira
abrir a porta do banheiro, e de dentro dele saíra um enorme volume
de água. E que
ela
vira o
corpo de sua
irmã,
e o
agarrou e sacudiu, chamando o nome dela
e
pedindo socorro.
Mas
já era tarde demais.
Muito interessante... Aguardando continuação.
ResponderExcluirJá trabalhando nela.
ExcluirObrigado pelo feedback. :)